Título: No País das Lágrimas e Outros Contos
Autor: José Viale Moutinho
ISBN: 9789892311173
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Quando me deram a espingarda e o saco de cartuchos, estava já bem claro eles não quererem intrusos na vinha. A área era grande, um chão limitado por pequeno muro de pedras sobrepostas. Pagavam razoavelmente e não me encontrava em condições de recusar. Apenas quatro dias de vigilância, até à chegada dos vindimadores. Fiz que sim com a cabeça, agarrei na arma e meti os cartuchos nas algibeiras, deitando fora o saco. O feitor foi-se embora ao pôr-do-sol. Logo que se apagou o trote do cavalo, fechei o portão de madeira e dirigi-me à cabana de tecto de palha.
Era então Setembro e as noites começavam a refrescar. Dentro de uma hora anoiteceria completamente. Dentro de três horas, o luar branco, limpo e frio. Comi o pão com toucinho, bebi um golo de aguardente. Depois saí. Levava a espingarda na mão. Fui sentar-me numa pedra, mesmo no meio da vinha. De quando em vez mudava de posição, e assim logo veria caso alguém tentasse entrar na propriedade. Luar tão claro, tão claro, como aquele nunca vira. Tudo desenhado, com os contornos definidos. Precisamente pela claridade me apercebi de umas mãos de súbito fincadas no muro, diante de mim, a uns vinte metros.
Não ergui logo a espingarda, à espera que emergisse a cabeça. Porém, em vez dela surgiu, um pouco mais afastado, outro par de mãos sobre o muro. Depois outro. E outro. Ainda outro. Rodei um pouco o rosto e notei que o muro em torno da vinha estava coroado de mãos enclavinhadas, como se centenas de pessoas estivessem dependuradas ou subindo do outro lado.
Achei que a espingarda de pouco me poderia servir. Se, de repente, todos os intrusos se erguessem a um tempo e corressem na minha direcção, e eu disparasse, talvez caíssem dois ou três, com um pouco de sorte três ou quatro, ficando alguns feridos, mas os outros dominar-me-iam com facilidade. Lembrei-me então de fugir. Fugir para dentro da terra. Cavar rapidamente uma cova e enterrar-me antes dos outros se aperceberem.
De qualquer modo, não me interessava ser visto. Poderia até perder o lugar, mas isso era preferível a ser atacado de modo tão desigual. Todo aquele jogo deveria ser previamente combinado. Tanto mais que nenhuma cabeça aparecia.
Em determinada altura, duas das mãos, talvez as primeiras a surgir, separaram-se do muro e deslocaram-se, semoventes, na minha direcção. O solo era muito duro para poder escavar com rapidez, pelo que disparei, por instinto, a caçadeira, premindo simultaneamente os dois gatilhos. Assim, fiquei desarmado, mas as mãos, avermelhadas, tombaram junto das videiras mais próximas, salpicando de sangue alguns cachos de uvas brancas. As outras mãos, todas, quietas, ainda fincadas no muro, pareciam aguardar. Aproveitei a pausa para substituir os cartuchos queimados por outros com zagalotes.
Durante uns vinte minutos fiquei imóvel, em posição defensiva. Quando as cartilagens dos joelhos e dos braços, toda a espinha, os músculos das costas e os nervos do pescoço, começaram a ressentir-se do esforço, com o corpo todo a doer, disparei para o ar, tentando chamar a atenção mas ninguém deve ter escutado. Então, as mãos aproximaram-se muito rapidamente e tiraram-me a espingarda. Levaram-na não sei para onde. Eu fugi.
Meti-me na cabana e fechei a porta com uma pequena tranca. Acendi a pilha para ver o interior: uma cama de campanha meio desconjuntada, a laje onde se acendiam pequenas fogueiras, a panela dos três pés, uma almotolia, um frasco de vinagre e a caixa do sal, ao lado da qual havia um garfo grande de ferro. Auscultava as possibilidades do refúgio. Mas por quanto tempo e com que sentido? Deveria haver um certo sentido, mesmo que fosse aparente.
Nunca tivera semelhante problema no tempo em que andava pelas feiras a tocar flauta para o urso dançar. O urso não era exactamente um animal desses, antes um tipo qualquer, não podia ser sempre o mesmo porque se despediam quando arranjavam quem lhes pagasse mais do que eu. A minha vontade naquele momento era ir-me embora, à taberna da aldeia, pegar nas minhas coisas e arranjar quem vestisse a pele do urso e fazer a feira da vila. Mas isso tornava-se já impossível.
Fui ao postigo da porta e através das grades observei a vinha. Centenas de mãos vindimavam. E eu na cabana. As mãos assim sem corpo. O feitor dissera que não queria intrusos na vinha e ali estavam aquelas mãos todas a arrancar os cachos. Sem espingarda não valia a pena atacar nem defender-me. Ficaria ali escondido e, no dia seguinte, diria ter adormecido ou que fora atacado por uma centena de mãos. Claro, poderiam acreditar no meu argumento, mas isso não impediria despedirem-me em consequência. Pensava assim quando descobri o alçapão. A boca larga de um corredor subterrâneo, ao longo do qual segui, às escuras, como se soubesse o caminho, andando com firmeza. Foram quilómetros.
E quando, exausto, cheguei ao fim, havia uma portinhola que me apressei a abrir. Diante de mim, a aurora sobre o Vale Feliz. Mas não se via ninguém. Porém, pelos indícios, descobri dali terem partido as mãos para o cerco da vinha que eu queria guardar. Por isso, seguindo o rasto, dirigi-me para lá.
O sol erguia-se bem alto e com velocidade vertiginosa quando cheguei ao portão de madeira. Espreitei por entre as estacas: toda a vinha estava vindimada e a terra tinha a cor do sangue, os bagos dos cachos amontoados, ei-los esmagados um a um. O veio do mosto ia alimentar a torrente de água suja das chuvas, na base do muro.
Ajoelhei e meti o rosto na lama de vinho e terra e sangue e uvas. Nunca experimentara semelhante sabor e é possível que jamais o experimente. Mas também não regressarei aos espectáculos pelas feiras, como no tempo do urso falso.
A Casa dos Patos fica no meio de um lago de águas verdes e escuras. Os patos e as rãs defendem a casa. O dono da casa é um gnomo que se chama Apeles. Rés-do-chão sem janelas nem portas e primeiro andar cercado por uma varanda. Nas águas-furtadas, um postigo por onde assoma o gnomo. O brilho dos seus pequenos olhos alcança-se desde muito longe. Três pontos em que o Sol e qualquer outra luz se reflectem. Os dois olhinhos vivos e a ponta da flecha da besta do gnomo. Espera algo ou alguém.
Desde há muito que Apeles abandonou a ideia de ser ele próprio a mola da armadilha. Por isso se mostra, conquanto de rosto fechado e um tanto enrugado. Mas da janela o gnomo desaparece à hora das refeições.
Os caçadores evitam aproximar-se da Casa dos Patos porque ser fixado pelo vivo olhar de Apeles não deve trazer nada de bom. Não que os caçadores acreditem em mau-olhado, não será bem isso. Talvez o contrário. Não sei. Os caçadores residentes na povoação que fica a um quilómetro da casa lacustre, Palmeda, são, digamos por hipótese, um tanto racionalistas. Racionalistas empíricos, se assim se poderá completar. Creio que me estão a entender.
Pouco depois do meio-dia, o fumo da chaminé da Casa dos Patos conduz um cheiro manso de comida muito bem confeccionada. É a fama do odor dos cozinhados de Apeles, cozinhados que ninguém provou, a chamar a atenção destas pessoas.
São catorze homens e mulheres vestidos de ganga verde, como se vivessem num bailado. O chefe chama-se Roberto e é o mais inteligente do grupo. A sua obra O Culto do Sol entre os Antropófagos Polares é considerada, ainda hoje, um dos mais extraordinários estudos sobre aquela matéria específica. O nome de Roberto Loto ocupava, ainda há muito pouco tempo, um lugar de destaque nas montras e escaparates das livrarias, ao lado de Flaubert, Levi-Strauss e Pedro Vaz de Caminha. E Pedro Vaz de Caminha foi o percursor dos estudos etnológicos da Europa Ocidental, como calculam. Tacticamente, os outros três haviam dado a Roberto a chefia das operações. Sua mulher, Carmélia da Luz, pesa cento e quarenta quilos. Os outros são monitores de tubagens aerodinâmicas, arqueiros do Governo, saltimbancos e vereadores municipais no gozo de licença. Há um destes que foi reformado dos Caminhos-de-Ferro. A principal actividade do grupo é comer bem e ver museus.
Roberto e os seus companheiros chegaram esta manhã a Palmeda e confirmaram, pelo meio-dia, as informações que dispunham acerca de Apeles na sua qualidade de cozinheiro. Especialistas, saborearam o cheiro. Decidiram ir falar com o gnomo.
No seu posto, o gnomo reflecte as luzes nos olhos e na ponta da flecha. Indiferente aos ruídos dos patos e das rãs, Apeles observa a movimentação na margem do lago. Assim fica até às dezassete horas, indiferente também aos berros do grupo que come e vê museus. Por dentro de Apeles não há nada que pergunte:
«Afinal o quê?»
Há muitos anos que ninguém entra na clareira do lago da Casa dos Patos. Roberto fora o primeiro a aventurar-se entre os renques de japoneiras, no limite, e à borda da água. Depois a Carmélia da Luz. Finalmente, os outros, de mãos dadas. Rostos maravilhados, mas aquela baba sinistra que não escapava à agudeza do olhar de Apeles, que os observava.
De repente, até se surpreendendo a si próprio, o gnomo pousou a besta no peitoril e gritou pelo megafone das suas mãozinhas:
«Que pretendem daqui?»
Como flotilhas de guerra, os patos distribuíram-se, sulcando a escura verdura das águas, colocando-se em pontos estratégicos, enquanto as rãs, já silenciosas, formaram um anel viscoso em torno da casa. Os pássaros, os répteis quedaram na expectativa. Roberto entrou no lago, já com água pelos tornozelos e imitou o gesto do gnomo para responder:
«Queremos comer dos teus cozinhados!»
O gnomo:
«Querem o quê?»
Roberto:
«Somos a Sociedade Gastron....»
O gnomo:
«Querem o quê?»
Roberto:
«Comer dos teus cozinhados!»
O gnomo:
«Desapareçam!»
Roberto, gesticulando:
«Não! Não nos vamos embora sem entrar na tua casa e comer dos teus cozinhados. Pagaremos bem! Um bom subsídio, mesmo que não tenhas museu....»
O gnomo:
Desapareçam!»
Roberto e os outros afastaram-se até às japoneiras, reunindo para deliberação. O gnomo não estava interessado no dinheiro deles e também os não queria servir. A Casa dos Patos não tinha portas e o aparato quase bélico dos palmípedes e dos batráquios faziam-nos recear. Havia ali uma extraordinária aliança cujo poder não conseguiram apalpar convenientemente. De qualquer modo, passaram a designar a casa por Fortaleza.
O grupo de Roberto voltou a aproximar-se do lago, possivelmente com uma estratégia preparada. Carmélia da Luz aventava a possibilidade de fazer render o gnomo pela fome. O reformado dos Caminhos-de-Ferro e vereador em licença observou a falta de acessos e a possibilidade de isso significar outras vias de abastecimento.
«E não terá apenas uma flecha decorativa?», interrogava-se o monitor de tubagens aerodinâmicas.
«O importante é não liquidarmos aquele gnomo, pois deve ter uma maneira muito sua de cozinhar e vamos convencê-lo a cozinhar para nós....» Aconselhava um dos arqueiros do Governo.
«Uma fortaleza é sempre uma fortaleza», comentava outro vereador.
«Este odor....»
«Não é exactamente um cozinheiro chinês....»
«A minha hipótese... Bem, a hipótese mais provável é aquele indivíduo ser um inexistente!»
«Um mito?»
«Um mito, claro.»
«Acho que se construíssemos uma catapulta e nos lançássemos, um a um, depressa tomaríamos a casa....»
«Pode ser.»
‹Não pode ser! Desse modo, ele poderá trespassar-nos com flechas em pleno voo.»
«Mas ele não tem apenas uma flecha?»
«Pode ser que tenha muitas....»
«Não acredito!»
«Aquela flecha que se vê é simbólica.»
«Vejam!»
Enquanto uns falavam, outros haviam realmente construído uma catapulta e lançavam Carmélia para a varanda. Olharam-na no ar, no voo. E quando ela caiu na varanda, esta desmoronou-se e toda a casa se voltou para dentro, como se das profundezas do lago algo estivesse a sugar o centro da casa, da Fortaleza. Em poucos segundos a superfície do lago aquietou-se, nada se via na Casa dos Patos, nem ninguém. Apenas todos os olhos postos na tona verde da água. Mesmo os patos e as rãs, que se haviam refugiado nas beiras do lago, aguardavam.
De repente, emergiu Apeles logo seguido de Carmélia, que com os bracinhos gordos agitando a água e o ar segurava o cozinheiro na dextra.
«O gnomo está em nosso poder!»
Agarrava-o com força, enquanto nadava para junto dos companheiros. Apeles nada podia fazer. Viu-se colocado sobre uma mesa com tampo de fórmica. Roberto, divertido, abriu-lhe as calças e cortou-lhe os testículos.
«Acabou-se o fabrico de gnomos!.
Um dos arqueiros colocou um penso na ferida. Carmélia, também muito sorridente, foi atirar os testículos ao lago, cada um para seu lado.
Desaparecida a Casa dos Patos e capado, o gnomo tornou-se exactamente num gnomo. Os da Sociedade Gastronómica levaram Apeles para a povoação.
Os caçadores passaram a ir apanhar os animais junto da água, quando se dessedentavam. Fechado numa grande caixa, Apeles ouvia os seus captores a discutirem como o haviam de obrigar a cozinhar para eles.
«Este mostrenguinho tem de trabalhar!»
«Trabalhar, produzir comida, aqueles saborosos manjares do tempo da Fortaleza!»
As paredes da caixa vibram com muita intensidade. O gnomo não se pode sequer suicidar. Sem alternativa, pensa em atacar e lança-se contra a tampa da caixa. Apenas se fere na cabeça, desmaia.
Apeles recobra os sentidos numa grande cozinha muito bem apetrechada. Roberto ordena-lhe:
«Cozinha!»
O gnomo olha-os a todos, conhece-lhes a expectativa e começa a cozinhar. Os odores precedem os sabores. Banqueteiam-se os algozes. Já quase todos estão satisfeitos quando Carmélia se aproxima da janela. E chama os outros:
«Vejam! Quantos lobos!»
Na verdade, uma enorme alcateia esfaimada aproxima-se da casa. Trazem as mandíbulas ensanguentadas, terão devorado os patos, os outros habitantes do povoado, os caçadores. Roberto, receoso de que os lobos comam o gnomo, mete este num vaso de água e coloca-o na geladeira.
Armados, os da Sociedade Gastronómica lançaram Carmélia para o exterior e, enquanto os lobos a devoram, descarregam fogo e chumbo sobre eles, até que não fica nenhum vivo.
Exaustos, os gastrónomos descongelam Apeles e ordenam-lhe outra refeição. Porém, não contam com a astúcia do gnomo que os envenena misturando poções mortais nas saborosas iguarias.
Depois, Apeles regressa ao lago, fazendo renascer a Casa dos Patos, os patos, as rãs, os peixes vermelhos e limpa as águas sujas de milénios.
Mataram as árvores diante do castelo. As árvores tinham folhagem cor-de-rosa e algumas flores de um vermelho vivo. Como sabes, as raízes destas árvores são muito delicadas e assomam frequentemente por entre o musgo para respirar. O chão do bosque é de terra revolta e pouco pisada. É que proibi o trânsito no bosque. Mas os porcos selvagens não respeitaram esta determinação. Por isso aqui estou a expor as razões que me levaram para a primeira cruzada da minha vida: destruir Moloch e os seus.
Quero dizer: destruir o País das Lágrimas. Quando Moloch soube, por um diabo paskrtin, que o filho obtivera sucesso nas suas campanhas contra os duendes da Prússia, matando-os aos milhares pela fome, lançou a peste no encalço dos restantes. Diziam os jornais que para celebrar essa vitória, aliás circunstancial, Moloch resolveu libertar as centenas de porcos selvagens que nos últimos anos mandara recolher e deixara procriar nos seus imensos estábulos.
A maioria dos porcos não conhecia a liberdade, a vida nos bosques, nos campos, a verdadeira erva, o roçagar dos arbustos. Nem as minhas árvores conheceram até então bocas que não fossem os bicos dos pequenos pássaros e as bocas das borboletas coloridas.
Moloch, príncipe do País das Lágrimas, pai do arquiduque Manfredo, o novo herói, exultava. Mandou libertar catorze aldeões de Alta Morada. E os porcos devoraram-nos após os terem esfacelado. Chamou, em determinada altura, os vinte mais pobres habitantes de Alta Morada e serviu-lhes assados, pão branco e vinho espumoso. Enquanto eles comiam e bebiam, soltou os falcões e os açores amestrados que arrancaram os olhos aos esfomeados.
Não cabia em si de contente devido aos sucessos do filho, o príncipe Moloch, que, após ter assistido, montou um garrano em pêlo e galopou para o meu castelo. Com ele, das ameias, vi os porcos selvagens morderem até às raízes as árvores do bosque. As flores de ouro a encorparem-se em frutos vermelhos que, tombando no solo, eram destruídos pelas bestas. Vi na torre de menagem o bardo escrever qualquer coisa num pedaço de papel, mas mandei uma sentinela dizer-lhe que se preocupasse antes com as vitórias do passado do que com a má sorte do presente. Após o meu bosque ficar arrasado, esse terrível morticínio, os porcos selvagens lançaram-se ao fosso, onde morreram afogados.
«Asdrúbal, não te deixes enganam, dizia-me um dos homens..Há mais porcos selvagens às ordens de Moloch. Neste momento estão entretidos na destruição de Alta Morada. As aves de rapina assinalam-no.»
Isto foi decisivo, preparei-me para o combate. Alguns homens quiseram acompanhar-me mas dissuadi-os. Bastava-me a carabina e a faca de mato. Mais importante do que abater porcos selvagens era atingir Moloch no momento oportuno. Saí a pé nessa noite.
Não me importava com os ramos que quebrava a cada passo porque ruídos maiores do que os das árvores moribundas eram os gritos lancinantes dos habitantes de Alta Morada a serem dilacerados pelas bestas. Ninguém reagia para não contrariar a vontade de Moloch. Apenas o meu andar estava sincronizado. Amarrei um lenço na cabeça, não fosse o reflexo da lua na minha calva atrair as atenções de algum falcão ou açor. Andei cinco léguas pelos montes até ficar extenuado, num cabeço, entre Alta Morada e o castelo de Moloch.
Entrei numa gruta, sentei-me na primeira pedra. Um fio de água escorria pelas paredes. Meditei longamente na táctica a seguir para matar Moloch, para me vingar e vingar os outros. O seu castelo no País das Lágrimas era negro, rodeado pelos fossos mais profundos. Nos fossos nadavam piranhas e as águas eram lôdas. Como alcançar, pois, Moloch, como vingar-me e vingar os de Alta Morada, os pequenos camponeses que ele assolava com a sua fúria de vento ou incipiente compaixão, nunca entendi. De pronto, passei a ouvir o ressonar de uma pessoa do outro lado de uns arbustos, ainda dentro da gruta.
Empunhei a faca de mato e avancei passos cautelosos até chegar a uma zona menos abóbada. Num leito de fetos dormia um homem de pequena estatura. Quase do tamanho de uma criança. As suas faces rosadas, feições de ternura, abriram-se com os olhos meigos a perguntar-me num fio de voz:
«Quem és?»
A minha expressão tornou-se cruel, pelo que ele insistiu: .Quem és? Algum caçador furtivo....»
No rosto dele havia medo, corou fortemente. Depois enterrei-lhe a faca de mato na garganta. O sangue jorrou abundantemente, ensopando o lugar. Depressa nasceram flores por ali. Com um gesto breve cerrei-lhe as pálpebras porque me irritava aquele último olhar. Arrastei então o corpo para o fundo da gruta e escondi os sinais da cena com braçadas de folhagem.
Recobradas as forças, coloquei a carabina ao ombro e continuei a marcha. Queria chegar ao castelo.
É claro que durante o percurso me lembrei várias vezes de como perdera o sangue-frio e abatera o desgraçado adormecido na gruta. Estive para regressar ao local e tentar ver mais qualquer coisa sobre ele. Mas os ventos empurravam-me para diante, para o castelo, para o maldito castelo de Moloch.
Nos fossos, aliás pouco profundos, afinal não nadavam piranhas, mas era verdade aquilo dos aldeões chacinados e os porcos selvagens tinham desaparecido. Os falcões e os açores, se esvoaçavam era no horizonte. E o horizonte perde-se sempre na distância, foi a conclusão a que cheguei.
Quando me aproximei da ponte levadiça, senti que alguém me observava. Assim acontecia. Era um sentinela, o qual, quando se viu descoberto, levou um corno à boca e soprou com força. Responderam outros sons de corno, os portões abriram-se e recebeu-me um esquadrão de soldados emplumados com as armaduras muito limpas. Entrei. Alguns peões gritaram:
«Viva! Viva! Viva!»
Apareceram mulheres, julgo que meretrizes. Por fim surgiu Moloch. Não o vira nunca mas pressenti nos seus olhos todo o poder. Era velhíssimo, velhíssimo e poderoso. Apenas me disse:
«Meu filho....» Abriu os braços.
Uma vez mais fui incapaz de me conter e abracei o tirano.
«Meu filho, celebrei condignamente a tua vitória.» Embargou-se-lhe a voz. Afastei-me um pouco e olhei-o de frente. Era cego. Apenas murmurei, rouco:
«Oh, pai....»
E assim fiquei no País das Lágrimas.
Moloch governava com certo capricho, mas sentia-se feliz, era evidente, com o regresso do arquiduque. O arquiduque estava no castelo para todos os efeitos. A princípio receei que o arquiduque chegasse de um momento para o outro. Por isso quis os aposentos voltados para a estrada da Prússia, vigiava continuamente o pó que se levantava, disposto a disparar contra qualquer cavaleiro que supusesse ser o arquiduque. Por três vezes atirei, mas sempre eram aldeões montados as vítimas, o que não tinha grande importância. Não fora eu a montar os desgraçados em cavalos de tão grande porte!
Um dia pensei que o arquiduque não só não apareceria como nem sequer mandava mensagens. Devo regressar ao castelo e matar Moloch, o que me parece fácil pois ele é cego. Assim, dirigi-me à sala das caixas de música onde estava Moloch, como sempre. Sentado numa cadeira de altos espaldares, conheceu-me pelo andar:
«És tu, meu filho....»
Como habitualmente, retorqui-lhe com um monossílabo.
«Pois ainda bem que vieste que quero contar-te a verdade sobre o teu nascimento....»
Desembainhei a adaga. O cavalo estava aparelhado no pátio e mandara abrir os portões.
«Hoje vão enforcar quatro homens que andavam no jardim das mandrágoras a plantar violetas, e misturar as mandrágoras com as violetas é algo punível, não te parece?»
«Escuta, velho Moloch, chamo-me Asdrúbal e vou matar-te.»
«Asdrúbal? Mas então és o senhor de Monte Grande, não é verdade? Vejo que te aproveitaste da minha cegueira para te fazeres passar pelo Manfredo!»
Ergueu-se o príncipe do País das Lágrimas. Não precisei de o apunhalar que ali caiu, de novo sentado, já morto. Quebrou-se a cadeira e o corpo liquefez-se. Penetrou nas frinchas das tábuas do sobrado, alagando o chão. Os seus dias ali vertidos.
Desci ao pátio. Estava a atravessar a ponte levadiça quando soaram os malditos cornos. Voltei-me.
«Arquiduque! Arquiduque!» Uma turba cercou-me e obrigou-me a retroceder até à Sala dos Passos Perdidos. Entregaram-me a coroa para que eu próprio a colocasse na minha cabeça. Acorreram todos, mesmo os camponeses, a saudar-me, dando-me presentes. Mandei chicoteá-los a todos, conforme me instruiu um dos velhos conselheiros de Moloch.
Ao fim da tarde, entrou no pátio do castelo um carro de feno conduzido por Aristóteles, o homem mais antigo de Alta Morada. Parou o carro e exclamou:
«Irmãos, honra e glória ao arquiduque nosso senhor e senhor de outras terras. Em verdade vos digo que este castelo estava guardado para o nosso libertador — Asdrúbal de Monte Grande, matador de Manfredo e do tirano seu pai, Moloch. Eis o cadáver do sucessor do príncipe! Olhai o que seria o novo tirano!»
E, dizendo isto, derrubou o feno e surgiu o cadáver do pequeno ser que eu degolara na gruta da floresta. E todos se voltaram para mim, aclamando-me. E todos exaltaram em saber-me um impostor. Cheio de remorsos chamei os guardas e ordenei que matassem todos os presentes. Não desejava testemunhas de semelhante equívoco. E entendi o meu ódio.
Todos morreram. Servi lentilhas envenenadas aos guardas e eles também pereceram. Apenas fiquei eu, senhor do País das Lágrimas.
Passeio-me, completamente só, entre os meus dois castelos. Esta é, pois, a minha verdadeira vida de desertos.