Ali estava ele, sentado no alto da sua glória, a pensar com muita lucidez que se tinha perdido completamente algures no turbilhão do sucesso. Lourenço Brasão sonhara que um dia alcançaria a fama, claro, mas perguntava-se agora de que lhe servia viver em função da fama se ia a caminho de um futuro vazio. Um dia, pensou, não me vai restar nada além da fama.
A praia da Costa de Caparica estava já praticamente deserta. Tinha sido um daqueles dias perfeitos de Verão, com o Sol a brilhar, visibilidade total e um calor que se pusera agradável com a aragem do fim da tarde. Lourenço inclinou a cabeça para trás, lentamente, a saborear o ar puro da praia e uma das suas cigarrilhas preferidas. Soltou o fumo que lhe queimava os pulmões. Afundou os pés na areia quente e emocionou-se secretamente com os tons púrpura que enchiam o céu naquele fim de tarde de Julho.
Viera de Lisboa num impulso e agora estava sentado na esplanada da praia do Rei com a sua imperial e a sua cigarrilha, a apreciar o espectáculo do Sol a pôr-se. Tudo muito romântico, muito sensível, muito… meloso. Lourenço fazia por não ser assim, oficialmente. Passara muito tempo a construir uma imagem e quem o conhecesse não diria que fosse homem de perder mais de dois segundos a contemplar um pôr do Sol. Em contrapartida, podia sentar-se na intimidade da sua sala a ver um filme sozinho e embrenhar-se na história ao ponto de se emocionar. Coisa que não admitiria a ninguém, claro. Seria pouco viril. Se calhava uma amiga comentar casualmente que vira o mesmo filme, que o adorara e até chorara, Lourenço abanava a cabeça com um sorriso condescendente e dizia: «mulheres…».
Na redacção gostava de ser um profissional frio, calculista, imune às tragédias diárias que corriam no ecrã quando apresentava os noticiários de televisão. Tal e qual como um médico de serviço nas Urgências de um hospital que, ao receber uma vítima de acidente de trânsito, não deixaria de galhofar sobre a fabulosa festa da noite passada enquanto se aplicava eficientemente na tarefa de recompor o puzzle de ossos quebrados do infeliz politraumatizado.
Mas se calhasse dar uma entrevista à revista Lux ou a qualquer outra do coração, diria sem pejo que algumas das reportagens terríveis que apresentava na televisão lhe despedaçavam a alma – usaria esta expressão com uma sinceridade comovente. Diria: «Sabe? Um jornalista tem de conviver com isso…»
De modo que ninguém, além dele próprio, sabia realmente o que normalmente lhe ia na cabeça. O medo de parecer demasiado sensível, a necessidade de se mostrar sofisticado, o desejo de ser apreciado sem ter de revelar mais do que quase nada da sua intimidade, o sorriso hipócrita para o seu pior inimigo…, tudo facetas do papel de figura pública que, havia muito, assumira.
Lourenço irrompia todos os dias na redacção de coluna hirta e cabeça erguida, irradiando uma autoconfiança admirável. Distribuía palmadas nas costas e trocava simpatias com todos no caminho para a secretária do pivot, a sua secretária no centro da sala. E, no entanto, não era diferente das pessoas comuns, não conseguia evitar aquele nervosismo latente da insegurança quando saía de casa a pensar nos riscos de dar a cara em mais uma emissão ao vivo, tal e qual como um vulgar empregado de escritório se sentiria perante o peso da responsabilidade de uma qualquer tarefa importante.
***
Esvaziou o copo num instantinho. O empregado trouxe-lhe outra cerveja, não solicitada.
– Esta é oferta da casa – disse, visivelmente entusiasmado por o ter ali na sua esplanada.
– Ah, muito obrigado.
Lourenço irradiava simpatia naturalmente e as pessoas gostavam dele. Quem é que não gostava de ser simpático com uma figura pública, de trocar umas palavras agradáveis com Lourenço Brasão para mais tarde comentar o privilégio com os amigos?
O empregado voltou à sua rotina e Lourenço ficou com o sorriso pendente, pensativo. Quando é que a vida se tinha tornado assim tão fácil? Veio-lhe à memória a sua primeira reportagem de impacte nacional. Tinha sido há quanto tempo? Treze anos, parecem trinta, pensou, aconteceram tantas coisas depois disso… Estava então com 23 anos, acabado de sair da universidade, voluntarioso. Oferecia-se para qualquer trabalho, por mais insignificante que fosse, mas sempre à espreita de uma oportunidade maior. Sonhava com a reportagem, aquela que o tornaria famoso.
A sua primeira reportagem importante roubara-a a um repórter sénior já demasiado enfastiado com a profissão para se dar ao trabalho de atender o próprio telefone.
– Lourenço – disse o jornalista mais velho –, atende isso, que eu tenho mais que fazer. – Estava a ler o jornal. Lourenço atendeu. – O que era? – perguntou-lhe, quando ele desligou.
– Era um maluco – disse Lourenço, encolhendo os ombros.
– Ah, pois – resmungou o outro. – Estão sempre a telefonar.
Mas o maluco anunciara-lhe que acabara de matar a mulher e os dois filhos pequenos e que gostaria que o fossem buscar a casa.
Lourenço foi contar ao chefe de redacção o que se estava realmente a passar e este mandou-o sair em reportagem.
Chegou ao local antes da polícia. Ia acompanhado por um repórter de imagem e um assistente. Os três ficaram fechados no apartamento com o homem perturbado, rodeados pela morte, durante quase cinco horas. Lourenço lembrava-se, como se fosse hoje, da caçadeira carregada, o dedo trémulo no gatilho, o rosto transtornado, os corpos tristes banhados em sangue.
Conseguiu manter-se ao telefone, em directo, a maior parte do tempo, consternando o país com a tragédia. E naquele tempo era mesmo todo o país, uma vez que as televisões privadas ainda estavam por decidir e o monopólio pertencia à pública. O homem acabou por entregar-se à polícia, vencido pelo cansaço, derrotado pela irracionalidade, e Lourenço Brasão tornou-se, ele próprio, notícia. Foi entrevistado no telejornal, fotografado pelos jornais e ouvido pelas rádios. Quando, mais tarde, o colega sénior, furioso, o confrontou com o sucedido, ele regressou momentaneamente ao registo do estagiário ingénuo.
– Não pensei que fosse importante – disse.
***
O motor da Honda 750 soltou um derradeiro ronco poderoso antes de se remeter ao silêncio no momento em que Isabel Laureano cortou a ignição. Havia apenas quatro ou cinco carros no parque de estacionamento da praia do Rei. Isabel reconheceu o BMW descapotável de Lourenço, imponente com os estofos de couro amarelo-torrado. Retirou o capacete integral depois de colocar o descanso e descer da moto. Era pequenina de estatura e quando parava num semáforo equilibrava o monstro de duas rodas esticando os pés, em pontas, com a graciosidade de uma bailarina.
Abanou a cabeça para soltar um cabelo louro e fino. Usava-o curto, mas isso não lhe traía a feminilidade, pois havia em Isabel algo de tão bonito, de tão perfeito, que encantava os homens. Tudo nela era pequenino. Embora não fosse exageradamente magra, não seria possível adivinhar-lhe os contornos dos seios, porque se escondiam de forma insuspeita debaixo de uma camisola larga de algo dão azul-forte com riscas brancas.
Despiu o casaco de cabedal e enfiou as luvas dentro do capacete. As mãos dela eram pequenas, suaves e quentes. Vestia calças de ganga que lhe assentavam maravilhosamente. Levitou por cima da areia com a intenção de manter os sapatos de ténis limpos por dentro, até chegar ao terreno firme da passadeira de cimento e estugar o passo em direcção ao restaurante da praia.
***
A primeira coisa em que Isabel reparou foi no bilhete de avião em cima da mesa, colocado ali intencionalmente com toda a certeza, mas não lhe fez qualquer referência.
– Estás bom? – ofereceu-lhe um sorriso jovial e beijou-o na face, fazendo-lhe ao mesmo tempo uma carícia quase fraternal no rosto. Lourenço percebeu que ela estava na defensiva, desconfiada. Telefonara-lhe mais cedo, a meio da tarde, convidando-a a ir ter com ele à praia depois do trabalho. «O que é que se passa?», quisera saber Isabel. «Nada, vamos conversar um bocadinho», respondera ele, evasivo, sem querer adiantar nada por telefone.
– Olá, senta-te – disse Lourenço. – Queres beber alguma coisa?
– Pode ser uma coisa dessas – apontou para a imperial meio vazia em cima da mesa.
Lourenço voltou-se na cadeira e fez sinal ao empregado, levantando o seu próprio copo como que a significar que queria outro igual. O homem acenou positivamente com a cabeça e desapareceu atrás do balcão.
– Vais viajar? – perguntou finalmente Isabel, pousando os olhos azuis no bilhete de avião. Tinha colocado o capacete virado para cima na areia e estava recostada na cadeira com as pernas estendidas, displicente. Agora já não queria saber da areia nos sapatos.
– Hum, hum – fez Lourenço, confirmando pausadamente com a cabeça, ao mesmo tempo que comprimia os lábios, com gravidade. Reparou na expressão triste dela e sentiu-se mal por saber que a ia magoar. E não queria.
***
Fechou os olhos por um segundo, transmitindo uma mensagem de apaziguamento. Lourenço fazia muito isto, instintivamente, e Isabel adorava. Mas desta vez sentiu um aperto no peito e teve de se dominar para não deixar que as lágrimas lhe assomassem aos olhos.
– Vais hoje? – perguntou. A voz saiu-lhe frágil.
– Não – disse ele, sem coragem para se alongar em explicações. Odiava-se por estar a sujeitá-la àquilo, queria poupá-la ao sofrimento, mas não havia outra maneira de fazer o que tinha de fazer. Pelo menos, tinha a obrigação de ser totalmente honesto com ela, de não a enganar.
– Então? – Abriu os braços, impaciente. – Amanhã?
Lourenço voltou a acenar com a cabeça, lentamente, sem falar, como se as palavras ainda pudessem contribuir mais para a ferir. Isabel limpou com raiva uma lágrima traidora, furiosa consigo mesma, irritada por se permitir à humilhação do que disse a seguir, mas sem o conseguir evitar.
– Vais vê-la?
– Não sei – disse Lourenço, remexendo-se na cadeira, incomodado. – Nem sequer sei se ela me quer ver.
O empregado apareceu com duas cervejas num tabuleiro e ficou entre eles enquanto os servia, remetendo-os ao silêncio. Colocou um copo em frente de Isabel e outro, que Lourenço não tinha pedido, à frente dele. O homem apercebeu-se do ambiente pesado e limitou-se a um sorriso agradável. Em troca, recebeu de ambos agradecimentos vagos, murmurados.
O Sol era agora uma bola perfeita, avermelhada, por cima do mar. Já estava fraco e podia ser admirado à vista desarmada. Contudo, Isabel tirou do bolso do casaco uns óculos escuros e colocou-os. Não queria que ele a visse lacrimosa. Acima de tudo, não queria fazê-lo sentir-se incomodado com a situação ao ponto de só pensar em acabar com aquilo depressa e desaparecer. Não, pensou, teriam uma conversa civilizada, como dois adultos, sem choros nem recriminações.
– E eu – perguntou Isabel, sem tirar os olhos do mar –, e nós? Já não há nada que te prenda a mim? Já não sentes nem um bocadinho de amor por mim?
Apesar de tudo, apesar do que ele lhe estava a fazer, Isabel não podia deixar de o amar. Mas conseguia compreender que não o podia obrigar a sentir o mesmo por ela. Queria apenas saber, ter a certeza do que ia na cabeça de Lourenço. Afinal de contas, já esperara tanto tempo por ele…
– Claro que sinto – disse Lourenço. – Olha, Isabel, pode ser ridículo dizer-te isto agora, mas tu continuas a ser a pessoa mais importante na minha vida.
– Não parece. – As palavras saíram-lhe sem querer, automaticamente, com uma ponta de amargura, e arrependeu-se logo.
– Eu sei que não parece – concordou. – Mas é precisamente por continuar a gostar tanto de ti que não posso, não quero, enganar-te. – Lourenço fez uma pausa para arrumar os pensamentos, à procura das palavras certas. – Olha, Isabel, imagina que eu casava contigo sabendo que continuava a pensar nela. Não estava a ser honesto contigo, não te ia fazer feliz e, provavelmente, daqui a um ou dois anos estávamos separados. Era isso que tu querias?
– Não, claro que não – disse Isabel, e depois a voz saiu-lhe sumida, quase num sussurro: – Eu só te perguntei se já não sentias nada por mim porque continuo a achar que nós nascemos um para o outro, mesmo se tu agora não consegues sentir isso.
És bem capaz de ter razão, pensou ele, desolado, e se calhar eu sou estúpido por estar a deitar fora o nosso amor.
– Tens de me deixar ir, Isabel. – Pareceu-lhe que ele estava quase a implorar-lhe, como se quisesse o seu consentimento para a trocar por outra. – Tens de me deixar ter a certeza.
Isabel tirou os óculos escuros, segura de que não ia chorar mais, e olhou-o directamente nos olhos, irritada com a injustiça. Ele não tinha o direito de lhe pedir o apoio!
– Vai – disse, fria. – Faz o que tens a fazer. Mas não te passe pela cabeça que me podes deixar e me vais ter de volta quando te cansares das outras.
– Não são outras – corrigiu-a. – Eu não costumo andar com outras. Nunca te enganei.
– Seja o que for – encolheu os ombros. – Não interessa. Eu não vou ficar à tua espera.
– Eu sei. Não te estou a pedir isso. Desculpa se te dei a entender que era isso que queria.
– Óptimo. – Isabel agarrou no capacete e levantou-se. – É bom saber que és responsável pelas tuas decisões e que consegues viver com elas. Faz boa viagem.
E, dito isto, virou-se e partiu, decidida. Lourenço deixou de a ver no momento em que contornou o restaurante e desapareceu na passadeira de cimento. Ainda ouviu o ronco abafado da moto, segundos mais tarde, mas não a viu arrancar com o acelerador a fundo e a roda traseira a derrapar na terra, e a dar uma chicotada violenta para o lado contrário, quase a atirando ao chão antes de se equilibrar e se impulsionar furiosamente para a frente no caminho esburacado que a leva ria à estrada para Lisboa. Lourenço fechou os olhos, apertando as pálpebras com força, como se estivesse a fazer uma careta de dor e, quando voltou a abri-los, reparou que a noite já tinha chegado.
Pagou a conta e foi-se embora com a terrível sensação de que acabara de fazer uma grande asneira, a asneira da sua vida. Mas também com a certeza de que tinha de ser assim.
***
O BMW entrou directamente para o acesso subterrâneo do edifício de luxo à beira-Tejo, na zona oriental da cidade, a Lisboa moderna da exposição internacional que decorria naquele ano de 1998. Desceu uma rampa e estacionou no lugar correspondente a um apartamento no quarto andar. Lourenço Brasão atravessou a garagem em direcção aos elevadores sem se preocupar em trancar o carro. Ao fundo, no topo da rampa, a porta automática fechou-se sozinha. Carregou num interruptor de parede e, após uma breve hesitação, a fila de luzes brancas fluorescentes no tecto de betão iluminou a garagem.
Os seus passos ressoaram no imenso espaço vazio. Usou uma chave para abrir uma porta pesada e entrou no pequeno átrio marmoreado que dava acesso aos elevadores. Em menos de um minuto estava em casa.
A sala era um luxo de quarenta metros quadrados. Janelas panorâmicas prolongavam-se ao longo da parede, abrindo-se para uma varanda e fazendo um L, de forma que o topo sul ficava pratica mente em cima do Tejo. O chão de mármore cinzento-claro coberto por tapetes dividia a sala em duas áreas distintas. À direita, uma mesa de jantar com tampo de vidro suficientemente grande para sentar dez pessoas confortavelmente; à esquerda, os sofás de couro preto, a estereofonia e a televisão estilizadas, Bang & Olufsen. Havia uma lareira em mármore e um grande armário feito à medida da parede com um pequeno bar em baixo. Lourenço serviu-se de um uísque J&B puro que deitou num copo de balão.
Desembaraçou-se dos sapatos e refastelou-se na sua poltrona favorita. Ligou a televisão com o comando, optando pela função de mosaico para poder ver vários canais ao mesmo tempo. Retirou-lhe o som. Em seguida accionou o CD e o Requiem de Mozart envolveu suavemente a sala. Com um segundo comando reduziu ao mínimo as luzes, evitando assim os reflexos na janela. Ao longe, surgiu a ponte Vasco da Gama, iluminada por milhares de pequenas luzes suspensas que rompiam, como por magia, o vazio negro da noite.
***
Lourenço acendeu um pequeno charuto cubano El Rey Del Mundo e ali ficou, indolente, a vigiar o trânsito como se fosse o dono da ponte. Inevitavelmente, os seus pensamentos vaguearam ao sabor da disposição até se fixarem em Isabel. E foi surpreendido por um súbito sentimento de solidão que o deixou angustiado. Isabel era o que ele costumava pensar, meio a sério meio a brincar, um valor seguro. Pois bem, acabara de deitar pela janela o seu valor seguro. Recordou-se vagamente de uma conversa alcoólica de muitas horas com um colega da televisão, num bar escuro a puxar ao intelectual, num daqueles buracos do Bairro Alto muito apreciados pelos amantes da noite, e da conversa fiada ao sabor dos copos.
– Ouve lá, Lourenço, quando é que te decides a casar? – perguntou-lhe o colega, lançando-lhe uma provocação típica das quatro da madrugada.
Lourenço deu uma passa profunda na cigarrilha Davidoff, bebeu um pouco de uísque, chegou-se à frente apoiado num cotovelo e deixou cair, de uma só tirada, toda uma filosofia de vida.
– Para que é que vou prender-me a uma mulher quando posso ter um monte delas?
Mas agora, perdido na imensidão luxuosa da sua sala, percebia pela primeira vez que estava quase sozinho neste mundo. Em breve ia fazer trinta e seis anos e a sua família resumia-se a um irmão que emigrara há largos anos para os Estados Unidos, onde estava casado com uma americana de quem tinha três filhos que nem português falavam e lhe eram praticamente desconhecidos. Pela milionésima vez, prometeu a si próprio fazer a viagem a Seattle, onde o seu irmão trabalhava como engenheiro na indústria aeronáutica. Recentemente, pouco antes da maratona informativa a propósito da inauguração da Expo 98, falara com o irmão ao telefone e, mais uma vez, combinaram uma visita em breve aos Estados Unidos, «quando as coisas acalmarem», dissera, mas ambos sabiam que não se realizaria.
Desde que se lembrava de si, Lourenço tinha sido sempre demasiado individualista. Conseguira fazer o liceu e a universidade sem ficar com um único amigo. Havia sempre muitos conhecidos, claro. Mesmo agora, na televisão onde trabalhava há seis anos, dava-se maravilhosamente com a maior parte das pessoas. Havia alguns colegas com quem saía para beber um copo e algumas mulheres com quem tinha ido, ocasionalmente, bem mais longe do que o simples copo. Mas, bem vistas as coisas, quem é que ele podia considerar realmente amigo? Qual deles é que não poderia passar a ser, de um dia para o outro, um alvo a abater, se a concorrência profissional a isso obrigasse? Lourenço bebeu o resto do uísque do fundo do copo e sentiu-se vazio. Percebeu que começava a sentir-se cansado de ser um tipo dissimulado e egoísta, coisa que até há bem pouco tempo não o incomodava nem um bocadinho.
***
Pensou novamente em Isabel e surpreendeu-se a meio de um longo suspiro. Isabel estava a seu lado desde o primeiro dia da faculdade de Direito. Tinham aprendido todas as leis a estudar em conjunto e tinham sido amantes eventuais. No segundo ano, após muitas hesitações, haviam assumido finalmente o namoro, com todas as esperanças e todos os projectos que isso acarretava. Mas Lourenço soubera escapar-se às amarras do compromisso, uma e outra vez, habilmente, com desculpas de liberdade. Dizia que a amava mas que precisava do seu espaço. Casar estivera sempre longe do seu horizonte. Primeiro argumentou com a juventude, depois com a dedicação exclusiva ao início de carreira.
Perdeu-a de vista, momentaneamente, a seguir à faculdade. Desistiram ambos de fazer vida de tribunal. Lourenço ganhou o vício do jornalismo; Isabel entrou no mundo da publicidade.
Um dia, depois da reportagem dramática que o catapultou para os primeiros degraus da fama, Isabel telefonou-lhe. Saíram para jantar e, mais uma vez, tiveram uma recaída de amor.
Lourenço era um homem alto, atlético, de ombros largos, rosto anguloso e cabelo encaracolado como um deus do Olimpo. Pelo menos, Isabel assim o via. Ela, pequenina e bonita, com a sua imagem frágil, abria todas as defesas quando ele a abraçava, envolvendo-a ternamente nos seus braços fortes, e a transportava sem esforço para a cama, onde uma noite de amor conseguia fazer eclipsar a angústia de ficar à espera de um telefonema de Lourenço, de uma palavra que a fizesse saber que ele ainda a queria, que ele ia querê-la para sempre.
Lourenço acabou de tomar banho e vestiu-se depressa, a olhar para o relógio. Eram quase dez e trinta da manhã e ele praguejou em voz alta, «merda, merda, merda, ela vai-me matar». Estava atrasado, ia chegar atrasado e ela detestava que ele fizesse isso. Sorriu. Há quatro anos não teria de se preocupar com atrasos. Mas há quatro anos ele não tinha ninguém que estivesse à sua espera, que lhe fizesse má cara e lhe dissesse qualquer coisa como «contigo é sempre a mesma coisa», mas que logo lhe desse o braço, já esquecida da pequena irritação, e seguisse em frente a caminhar ao seu lado, mudando de assunto rapidamente para contar qualquer coisa agradável que lhe queria dizer. Há quatro anos Lourenço não tinha ninguém que o fizesse sentir que pertencia a algum lugar. Só tinha os seus admiradores de circunstância e um apartamento vazio à sua espera.
Vestiu o casaco a correr e quase se estatelou na entrada ao tropeçar no pequeno triciclo abandonado à porta da sala. Há quatro anos também não tropeçava em triciclos.
***
Saiu para a rua e apertou o casaco. 2002 começara muito frio e, apesar de estar um sábado maravilhoso, o Inverno não amainara. De modo que procurou as luvas revestidas a camurça no bolso do casaco e pôs-se a caminho do ponto de encontro combinado, no Centro Comercial Vasco da Gama. Ela queria fazer as compras do mês para a casa e precisava de ajuda. Ela não sabia que os homens odeiam ir às compras? Nem sequer era para carregar os sacos, pois mandariam entregar tudo em casa mais tarde. Era pela companhia. E ele prometera que chegaria a horas.
Estugou o passo. O que lhe valia era não estar longe, sete a dez minutos a pé, no máximo. Atravessou o recinto do Parque das Nações e entrou no Vasco da Gama pela porta de trás, a pensar numa bica e em ler o Expresso na esplanada, assim que despachas sem as compras.
Viu-a de costas, distraída, a admirar uma montra com a miúda agarrada às suas pernas. Parou por um instante a observá-las à distância. Ali estava uma boa razão para voltar para casa todos os dias. Uma família, a minha família, pensou, orgulhoso consigo próprio. Isabel virou-se e iluminou-se com um sorriso ao avistá-lo. Acenou a Lourenço e ele recomeçou a andar na direcção delas a pensar que não havia dia em que não agradecesse a todos os santinhos por não ter chegado a apanhar aquele avião para Espanha, quatro anos antes.
Agora, prestes a completar os quarenta, Lourenço era um homem feliz por não ter corrido atrás de uma ilusão. Luz María continuava em Madrid, onde vivia com a mãe e a filha. Por fim, tinham sido autorizadas a viajar para os Estados Unidos, mas Luz María recusara-se. Decidira que se sentia bem onde estava e que ali ficaria, de uma vez por todas. Não queria voltar a partir.
Mariela fizera uma visita a Miami, acompanhada pela filha e pela neta. Reencontrara os pais e os irmãos quarenta anos depois de os ter abraçado pela última vez à porta do velho casarão de La Habana Vieja. Dois meses depois de Mariela regressar a Madrid, o pai morrera na sua cama, a dormir, reconciliado com a vida. O pai sempre dissera que lhe custava não acabar os seus dias em Cuba, mas que, mais importante do que isso, era conseguir reunir a família toda novamente. Referia-se à filha que se vira obrigado a deixar para trás um dia, no turbilhão de pólvora revolucionária. E só Deus sabia o que isso lhe doera.
Mariela voltara a Madrid pelo mesmo motivo que levara o seu pai a esperar por ela para morrer: o amor pela filha e pela neta.
***
Lourenço sabia que Luz María continuava a viver em Madrid. Tinham falado ao telefone ocasionalmente nos últimos anos. Ela não ficara magoada por ele ter casado com Isabel; pelo contrário, felicitara-o e dissera-lhe que guardava no seu coração uma amizade eterna por ele.
Lourenço atravessou o átrio do centro comercial e abaixou-se para receber a filha, que correu para ele assim que o viu e lhe saltou para os braços toda contente. Depois Lourenço olhou para o relógio: dez e trinta. Não tinha chegado atrasado. Cumprira a promessa.
01/01/2002
Título original: Uma Promessa de Amor
Autor: Tiago Rebelo
ISBN: 9789892311555
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