Título original: THE CLOCKS
AGATHA CHRISTIE® POIROT® Copyright
© 2010 Agatha Christie Limited (a Chorion company).
All rights reserved. The Clocks foi originalmente publicado em 1963
Título: Os Cinco Relógios
Autor: AGATHA CHRISTIE
Tradução: Isabel Alves
Capa: José Manuel Reis
Imagem da capa: Arfo / iStockphoto
ISBN: 9789892311562
Edições ASA II, S.A.
é uma editora do Grupo LeYa
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Agatha Christie nasceu Agatha May Clarissa Miller, em Torquay, na Grã-Bretanha, em 1890.
Durante a I Guerra Mundial, prestou serviço voluntário num hospital, primeiro como enfermeira e depois como funcionária da farmácia e do dispensário. Esta experiência revelar-se-ia fundamental, não só para o conhecimento dos venenos e preparados que figurariam em muitos dos seus livros, mas também para a própria concepção da sua carreira na escrita.
Com o seu segundo marido, o arqueólogo Max Mallowan, Agatha viajaria um pouco por todo o mundo, participando activamente nas suas escavações arqueológicas, nunca abandonando contudo a escrita, nem deixando passar em claro a magnífica fonte de conhecimentos e inspiração que estas representavam.
Autora de cerca de 300 obras (entre romances de mistério, poesia, peças para rádio e teatro, contos, documentários, uma autobiografia e seis romances publicados sob o pseudónimo de Mary Westmacott), viu o seu talento e o seu papel na literatura e nas artes oficialmente reconhecidos em 1956, ano em que foi distinguida com o título de Commander of the British Empire. Em 1971, a rainha Isabel II consagrou-a com o título de Dame of the British Empire. Deixando para trás um legado universal celebrado em mais de cem línguas, a Rainha do Crime, ou Duquesa da Morte (como ela preferia ser apelidada), morreu em 12 de Janeiro de 1976.
Em 2000, a 31st Bouchercon World Mystery Convention galardoou Agatha Christie com dois prémios: ela foi considerada a Melhor Escritora de Livros Policiais do século XX e os livros protagonizados por Hercule Poirot a Melhor Série Policial do mesmo século.
Os Cinco Relógios (The Clocks) foi originalmente publicado em 1963 na Grã-Bretanha, tendo sido editado nos Estados Unidos no ano seguinte. Foi adaptado para a televisão em 2009, com David Suchet no papel de Hercule Poirot.
Ao meu velho amigo Mario
com recordações felizes das delícias gastronómicas
do Caprice
A tarde do dia 9 de Setembro decorreu exactamente como qualquer outra tarde. Nenhuma das pessoas ligadas aos acontecimentos desse dia podia afirmar ter tido uma premonição do desastre. (À excepção, é claro, de Mrs. Packer, de Wilbraham Crescent, n.º 47, que era especialista em premonições e descrevia sempre mais tarde, demoradamente, os estranhos presságios e tremores que a haviam assaltado. Mas Mrs. Packer do n.º 47 estava tão distante do n.º 19 e tão pouco associada aos acontecimentos que aí se passaram que parecia desnecessário ter tido qualquer premonição.)
Na Agência de Secretariado e Dactilografia Cavendish, dirigida por Miss K. Martindale, o dia 9 de Setembro fora um dia monótono e rotineiro. O telefone tocava, as máquinas de escrever metralhavam, a pressão do trabalho era normal, nem mais nem menos do que o habitual. Não se passava nada de especialmente interessante. Até às 14h35, o dia 9 de Setembro podia ter sido um dia igual aos outros.
Às 14h35, a campainha de Miss Martindale soou e Edna Brent, no escritório principal, atendeu, na sua habitual voz ofegante e ligeiramente nasalada, ao mesmo tempo que brincava com um caramelo na boca.
— Sim, Miss Martindale?
— Então, Edna, não foi assim que te ensinei a atender o telefone. Enuncia claramente e tenta não falar com essa voz ofegante.
— Desculpe, Miss Martindale.
— Assim está melhor. Vês como és capaz quando te esforças? Manda-me aqui a Sheila Webb.
— Ela ainda não voltou do almoço, Miss Martindale.
— Ah. — Os olhos de Miss Martindale consultaram o relógio na secretária. 14h36. Exactamente seis minutos atrasada. Ultimamente, Sheila Webb andava a desleixar-se. — Manda-a assim que ela chegar.
— Com certeza, Miss Martindale.
Edna voltou a colocar o caramelo na língua e, sugando com gosto, retomou a dactilografia de Amor Nu, de Armand Levine. O seu erotismo meticuloso deixava-a indiferente – como deixava, aliás, a maioria dos leitores de Mr. Levine, apesar dos seus esforços. Armand Levine era um exemplo notável de que nada pode ser mais desinteressante do que a pornografia desinteressante. Apesar das capas chocantes e dos títulos provocantes, as suas vendas decresciam todos os anos e a última conta de serviços de dactilografia já lhe fora apresentada três vezes.
A porta abriu-se e Sheila Webb entrou, ligeiramente ofegante.
— A Gata Ruiva chamou-te — informou Edna.
Sheila Webb fez um esgar.
— É preciso ter azar… no único dia em que chego atrasada!
Ajeitou o cabelo, pegou num lápis e num caderno e bateu à porta da directora.
Miss Martindale levantou a cabeça da secretária. Era uma mulher de quarenta e tal anos, que respirava eficiência e devia a alcunha de Gata Ruiva ao cabelo arruivado claro, em estilo Pompadour, e ao seu nome próprio de Katherine.[1]
— Chegou atrasada, Miss Webb.
— Peço desculpa, Miss Martindale. Houve um grande engarrafamento de trânsito.
— Há sempre um grande engarrafamento de trânsito a esta hora do dia. Devia dar margem para imprevistos. — Consultou um apontamento na agenda: — Telefonou uma tal Miss Pebmarsh. Precisa de uma estenógrafa para as três horas. Pediu-a a si em especial. Já alguma vez trabalhou para ela?
— Não me lembro, Miss Martindale. Pelo menos ultimamente, não.
— A morada é Wilbraham Crescent, n.º 19… — Fez uma pausa, com um ar interrogativo, mas Sheila Webb abanou a cabeça.
— Não me lembro de lá ter ido.
Miss Martindale consultou o relógio.
— Três horas. Chega perfeitamente a tempo. Tem outros compromissos para esta tarde? Ah, sim. — Passou os olhos pela agenda ao seu lado. — O professor Purdy, no Curlew Hotel. Às cinco horas. Deve chegar antes disso. Senão mando a Janet.
Dispensou-a com um aceno de cabeça e Sheila voltou para o escritório.
— Alguma coisa interessante, Sheila?
— Ora, mais um desses dias chatos. Uma velhota qualquer de Wilbraham Crescent. E o professor Purdy às cinco… todos esses nomes arqueológicos horríveis! Só queria que acontecesse alguma coisa de emocionante, de vez em quando.
A porta de Miss Martindale abriu-se.
— Esqueci-me de uma coisa, Sheila. Se Miss Pebmarsh não estiver quando chegar, entre, pois a porta não está fechada. Vá para a sala à direita do vestíbulo e espere. Acha que se lembra ou quer que eu tome nota?
— Eu lembro-me, Miss Martindale.
Miss Martindale voltou para o seu gabinete.
Edna Brent procurou debaixo da cadeira e tirou, com uma atitude de secretismo, um sapato um tanto espalhafatoso e um salto agulha que se desprendera dele.
— Como é que vou conseguir chegar a casa? — queixou-se.
— Deixa-te de lamúrias… arranja-se maneira — respondeu-lhe uma das outras raparigas, retomando a dactilografia. Edna suspirou e meteu na máquina uma nova folha de papel.
«O desejo dominava-o. Com dedos frenéticos, rasgou-lhe o frágil tecido de chiffon que lhe cobria os seios e empurrou-a à força para a dama.»
— Raios! — resmungou Edna, estendendo a mão para a borracha.
Sheila pegou na carteira e saiu.
Wilbraham Crescent era uma zona extravagante criada por um construtor vitoriano na década de 1880. Era uma meia-lua de casas duplas cujos jardins confinavam. Esta fantasia era uma fonte de consideráveis dificuldades para as pessoas que não conheciam bem a área. As que entravam pelo lado de fora da meia-lua não conseguiam encontrar os números mais baixos e as que entravam pelo lado de dentro viam-se aflitas para descobrir os mais altos. As casas eram impecáveis, precisas, com varandas artísticas e um ar respeitável.
O modernismo praticamente ainda não chegara ali, pelo menos exteriormente. As cozinhas e as casas de banho tinham sido as primeiras divisões a sentir os ventos de mudança.
Não havia nada de especial no n.º 19. Tinha cortinas bonitas e um puxador de latão bem polido na porta de entrada. De ambos os lados do caminho que levava à porta havia roseiras.
Sheila Webb abriu o portão, encaminhou-se para a porta principal e tocou à campainha. Não obtendo resposta, aguardou um ou dois minutos e, obedecendo às instruções recebidas, rodou o puxador. A porta abriu-se e ela entrou. A porta do lado direito do pequeno vestíbulo estava entreaberta. Bateu, esperou e acabou por entrar. Era uma sala de estar normal e bastante agradável, talvez um pouco excessivamente mobilada para o gosto moderno. A única coisa de anormal era a abundância de relógios: um relógio de pé num canto, um relógio de porcelana de Dresden na prateleira do fogão de sala, um relógio de transporte em prata, na escrivaninha, um pequeno relógio de ouropel, numa estante, e numa mesa junto da janela, um velho relógio de viagem em couro desbotado, com as letras ROSMARY, um pouco apagadas, escritas a dourado no canto.
Sheila olhou para o relógio da escrivaninha com uma certa surpresa. Indicava este que passava um pouco das quatro e dez. Olhou para o do fogão de sala. Este relógio indicava a mesma hora.
Sobressaltou-se, ao ouvir um zunido e um estalido por cima dela, deparando-se com um cuco a projectar-se pela portinhola de um relógio de parede em madeira trabalhada e a anunciar alto e bom som: Cucu, cucu, cucu! A nota áspera parecia quase ameaçadora. O cuco desapareceu e a portinhola fechou-se com uma pancada.
Sheila Webb esboçou um meio sorriso e contornou a ponta do sofá. De súbito, porém, estacou, petrificada.
Estendido no chão estava o corpo de um homem. Os seus olhos estavam semicerrados e sem vida. Na parte da frente do seu fato cinzento-escuro havia uma mancha escura e húmida. Quase maquinalmente, Sheila baixou-se. Tocou-lhe na cara, que estava fria, e numa das mãos, fria também. Tocou na mancha húmida e retirou bruscamente a mão, fixando-a horrorizada.
Nesse momento, ouviu um portão fechar-se lá fora e virou instintivamente a cabeça para a janela. Viu uma figura de mulher a subir o carreiro, apressada.
Sheila engoliu em seco, pois tinha a garganta ressequida. Ficou pregada ao chão, incapaz de se mexer ou gritar, de olhos fixos à sua frente.
A porta abriu-se e entrou uma mulher alta e idosa, com um saco de compras. Tinha cabelo grisalho ondulado, penteado para trás, e os seus olhos eram grandes e de um azul muito bonito. Voltaram-se para Sheila, mas sem a ver.
Sheila soltou um débil som, pouco mais que um gemido. Os olhos grandes e azuis fitaram-na de novo e a mulher falou bruscamente:
— Está aí alguém?
— Eu… é… — A rapariga calou-se quando a mulher se dirigiu a ela, decidida, pelas costas do sofá. Nesse momento, gritou:
— Não… não… vai pisá-lo… ele… E está morto…
Para usar a linguagem da polícia: às 14h59 do dia 9 de Setembro, percorria Wilbraham Crescent, para oeste. Era a minha primeira visita a Wilbraham Crescent e confesso francamente que Wilbraham Crescent me confundiu.
Andava a seguir um palpite com uma persistência de dia para dia mais obstinada, à medida que esse palpite parecia cada vez menos susceptível de se saldar em êxito. Eu sou assim.
O número que me interessava era o 61, mas encontrei-o? Não, não encontrei. Tendo seguido atentamente os números de 1 a 35, Wilbraham Crescent parecia acabar de repente. A tabuleta intransigente a indicar Albany Road barrava-me o caminho. Voltei para trás. Do lado norte não havia casas; apenas um muro. Atrás deste erguiam-se prédios altos e modernos de apartamentos, cujas entradas ficavam claramente noutra rua. Também não descobri nada aqui.
Olhei para os números por que estava a passar: 24, 23, 22, 21… Diana Lodge (provavelmente o número 20, com um gato cor de laranja no pilar do portão, a lavar o focinho), 19…
A porta do n.º 19 abriu-se e uma rapariga saiu a correr pelo caminho abaixo com a velocidade de uma bomba. A semelhança com uma bomba intensificou-se com os gritos que acompanhavam o seu avanço. Eram estridentes e lancinantes, não pareciam humanos. A rapariga transpôs o portão e chocou comigo com tal violência que por pouco não me atirava abaixo do passeio. Não só chocou contra mim mas agarrou-se à minha roupa numa agitação frenética.
— Calma! — disse eu, recuperando o equilíbrio. Abanei-a um pouco.
— Tenha calma.
Ela acalmou-se. Continuou a agarrar-me mas deixou de gritar, respirando entre soluços convulsivos.
Não posso dizer que tenha reagido habilmente à situação. Perguntei-lhe se se passava alguma coisa. Reconhecendo que a pergunta era particularmente débil, rectifiquei-a.
— Que aconteceu?
A rapariga respirou fundo.
— Ali! — disse ela, apontando para trás.
— Sim?
— Está um homem no chão… morto… Ela ia calcá-lo…
— Quem? Porquê?
— Acho… acho que é cega. Ele está coberto de sangue. — Baixou os olhos e libertou uma das mãos que me seguravam. — E eu também. Eu também estou coberta de sangue!
— Realmente está — disse eu. Examinei as manchas na manga do meu casaco. — E, agora, também eu estou — apontei, suspirando e reflectindo sobre a situação. — Acho melhor levar-me lá dentro e mostrar-me — sugeri.
— Não posso… não posso… Não quero entrar lá outra vez.
— Talvez tenha razão. — Olhei à minha volta, mas não vi nenhum lugar adequado para sentar uma jovem prestes a desmaiar. Baixei-a suavemente para o passeio e encostei-a ao gradeamento de ferro.
— Fique aqui até eu voltar — disse eu. — Não demoro nada. Isso já passa. Incline-se para a frente e meta a cabeça entre os joelhos.
— Acho… acho que já estou bem.
Não parecia muito convencida, mas eu não perdi tempo a argumentar. Dei-lhe uma palmadinha reconfortante no ombro e subi, resoluto, o caminho. Entrei, hesitei um momento no vestíbulo, espreitei pela porta da esquerda, vi que era uma sala de jantar deserta, atravessei o vestíbulo e entrei na sala do outro lado.
A primeira coisa que vi foi uma mulher idosa, de cabelo grisalho, sentada numa cadeira. Ela virou bruscamente a cabeça quando entrei e perguntou:
— Quem está aí?
Percebi imediatamente que era cega. Os seus olhos, embora voltados na minha direcção, estavam fixos num ponto atrás da minha orelha esquerda. Falei abruptamente e sem rodeios.
— Uma rapariga saiu daqui a correr para a rua a dizer que estava aqui um homem morto.
Tive imediatamente consciência do absurdo das minhas palavras. Não parecia possível que estivesse um homem morto naquela sala asseada, com aquela mulher calma sentada numa cadeira, de mãos cruzadas.
Mas ela respondeu sem hesitar:
— Atrás do sofá.
Contornei o sofá. Foi então que o vi — os braços abertos, os olhos vidrados e a mancha de sangue coagulado.
— Como é que isto aconteceu?
— Não sei.
— Mas… não pode ser. Quem é ele?
— Não faço ideia.
— Temos de chamar a polícia. — Olhei à minha volta. — Onde está o telefone?
— Não tenho telefone.
Observei-a com mais atenção.
— A senhora mora aqui? Esta é a sua casa?
— Sim.
— Pode-me explicar-me o que aconteceu?
— Com certeza. Cheguei das compras… — Reparei no saco das compras, atirado para cima de uma cadeira, ao pé da porta. — Entrei aqui. Percebi imediatamente que estava alguém na sala. Uma pessoa sente essas coisas com facilidade quando é cega. Perguntei quem era. Ninguém respondeu… só ouvi o som de alguém a respirar muito depressa. Encaminhei-me na direcção do som… e então a pessoa começou a gritar… a dizer que estava aí um homem morto e que eu ia pisá-lo. Depois passou por mim a correr e saiu da sala aos gritos.
Assenti com a cabeça. As histórias coincidiam.
— Que é que fez então?
— Avancei às apalpadelas, com cuidado, até o meu pé encontrar um obstáculo.
— E depois?
— Ajoelhei-me. Toquei em qualquer coisa… na mão de um homem. Estava fria, não se sentia o pulso… Levantei-me e vim para aqui esperar.
Alguém acabaria por aparecer. A jovem, quem quer que ela seja, daria o alarme. Achei melhor não sair de casa.
Impressionou-me a calma da mulher. Não gritara nem saíra de casa aos tropeções, em pânico. Sentara-se calmamente, à espera. Era o procedimento mais sensato, mas devia ter exigido coragem.
— Quem é o senhor? — perguntou ela.
— Chamo-me Colin Lamb. Ia a passar.
— Onde está a jovem?
— Deixei-a encostada ao portão. Encontra-se em estado de choque. Onde fica o telefone mais próximo?
— Há uma cabina a cerca de cinquenta metros mais à frente na rua, antes de chegar à esquina.
— Pois há. Lembro-me de passar por ela. Vou telefonar à polícia. A senhora… — Hesitei. Não sabia se havia de dizer «Fica aqui?» ou antes «Vai ficar bem?» Ela poupou-me à escolha:
— Acho melhor trazer a rapariga cá para dentro.
— Não sei se ela quer vir… — redargui, duvidoso.
— Não digo para esta sala, claro. Leve-a para a sala de jantar, que fica do outro lado do vestíbulo. Diga-lhe que vou fazer chá. Levantou-se e encaminhou-se para mim.
— Mas… acha que pode…Dirigiu-me um sorriso breve e sombrio.
— Meu caro, desde que vim morar para esta casa, há catorze anos, que preparo as minhas refeições na minha cozinha. Ser cega não significa necessariamente ser inválida.
— Desculpe. Foi uma estupidez da minha parte. Talvez seja melhor dizer-me o seu nome.
— Millicent Pebmarsh… Miss.
Saí e desci o carreiro. A rapariga ergueu os olhos para mim e começou a levantar-se.
— Acho… acho que já me sinto melhor.
Dei-lhe uma mão, dizendo alegremente:
— Óptimo!
— Estava… estava lá um homem morto, não estava?
Concordei prontamente.
— Estava, sim. Vou à cabina avisar a polícia. No seu lugar, esperava dentro de casa. — Levantei a voz para abafar os seus protestos imediatos. — Vá para a sala de jantar… à esquerda ao entrar. Miss Pebmarsh está a fazer-lhe uma chávena de chá.
— Essa senhora era Miss Pebmarsh? E é cega?
— É. Também foi um grande choque para ela, evidentemente, mas está a agir com muita sensatez. Venha, eu levo-a. Uma chávena de chá há-de fazer-lhe bem enquanto espera pela polícia.
Passei-lhe um braço pelos ombros e conduzi-a pelo caminho acima. Instalei-a confortavelmente à mesa da sala de jantar e apressei-me a sair para telefonar.
Uma voz desprovida de emoção anunciou: — Comissariado da Polícia de Crowdean.
— Posso falar com o inspector Hardcastle?
A voz respondeu cautelosamente:
— Não sei se está. Quem fala?
— Diga-lhe que é o Colin Lamb.
— Um momento, por favor.
Esperei. Pouco depois, ouvi a voz de Hardcastle.
— Colin? Não estava à tua espera tão cedo. Onde é que estás?
— Em Crowdean. Aliás, em Wilbraham Crescent. Está um homem morto no n.º 19, esfaqueado, creio eu. Julgo que estará morto há meia hora, aproximadamente.
— Quem o encontrou? Foste tu?
— Não, sou um transeunte inocente. De repente, saiu da casa uma rapariga a correr, como uma doida. Quase que me atirou abaixo do passeio. Disse-me que estava um homem morto no chão e que uma mulher cega quase o tinha pisado.
— Não estás a gozar comigo, pois não?
— Admito que soa um bocado fantástico. Mas, ao que parece, os factos são estes. A mulher cega é Miss Millicent Pebmarsh, proprietária da casa.
— E ela andou por cima do morto?
— Não no sentido em que falas. Pelos vistos, sendo cega, não sabia que ele estava ali.
— Vou pôr a máquina em andamento. Espera lá por mim. O que fizeste à rapariga?
— Miss Pebmarsh está a preparar-lhe uma chávena de chá.
Dick limitou-se a comentar que parecia tudo muito acolhedor.
No n.º 19 de Wilbraham Crescent, a máquina da Lei trabalhava a todo o vapor. Estavam presentes um médico, um fotógrafo da polícia e os peritos em impressões digitais. Moviam-se com eficiência, cada um deles entregue à sua rotina.
Por fim, chegou o inspector Hardcastle, um homem alto e sisudo, de sobrancelhas expressivas e ar autoritário, para verificar se tudo o que pusera em marcha estava a ser cumprido e com eficiência. Lançou um último olhar ao cadáver, trocou algumas breves palavras com o médico da polícia e depois dirigiu-se à sala de jantar, onde se encontravam três pessoas diante de chávenas de chá vazias: Miss Pebmarsh, Colin Lamb e uma rapariga alta, de cabelo castanho encaracolado e uns olhos grandes e assustados. «Muito bonita», pensou o inspector, em jeito de parêntesis.
Apresentou-se a Miss Pebmarsh.
— Inspector Hardcastle.
Estava minimamente informado a respeito de Miss Pebmarsh, embora os seus caminhos nunca se tivessem cruzado profissionalmente. Mas vira-a em várias ocasiões e sabia que fora professora, dedicada ao ensino de Braille no Instituto Aaronberg para crianças deficientes. Parecia bastante implausível que um homem tivesse sido encontrado assassinado na sua casa austera e mantida em ordem, mas o implausível acontecia mais vezes do que se supunha.
— Foi terrível o que aconteceu, Miss Pebmarsh — disse ele. — Deve tê-la abalado muito. Preciso de uma descrição clara de todos dos acontecimentos. Estou informado de que foi Miss… — olhou para o livro de apontamentos que o agente lhe entregara — Sheila Webb quem descobriu o corpo. Se me permitir que use a sua cozinha, Miss Pebmarsh, vou levar Miss Webb para lá para poder-mos falar calmamente.
Abriu a porta de comunicação com a cozinha e esperou que a rapariga passasse. Um jovem inspector à paisana já ali se encontrava, sentado à mesa de tampo de fórmica a escrever discretamente.
— Esta cadeira parece confortável — disse Hardcastle, puxando por uma versão moderna de uma cadeira Windsor.
Sheila Webb sentou-se nervosamente, fixando-o com os seus olhos grandes e assustados.
O inspector teve vontade de lhe dizer que não a ia comer, mas conteve-se e limitou-se a declarar:
— Não precisa de estar preocupada. Só queremos fazer uma ideia clara do que se passou. Pois bem, chama-se Sheila Webb… e mora…?
— Em Palmerston Road, n.º 14… a seguir à fábrica de gás.
— Sim, certo. Calculo que trabalha?
— Sim, sou estenodactilógrafa e trabalho na agência de secretariado de Miss Martindale.
— Agência de Secretariado e Dactilografia Cavendish… é o nome completo, não é?
— Exactamente.
— Há quanto tempo lá trabalha?
— Há cerca de um ano. Dez meses, mais precisamente.
— Muito bem. Agora explique-me, por palavras suas, como veio parar hoje a Wilbraham Crescent, n.º 19.
— Bem, foi assim. — Sheila Webb já estava a falar com mais confiança.
— Miss Pebmarsh telefonou para a agência a pedir que lhe mandassem uma estenógrafa aqui às três horas. Assim, quando regressei do almoço, Miss Martindale mandou-me para cá.
— Uma tarefa de rotina, era? Digo eu, era a sua vez… ou como é que essas coisas se passam?
— Não exactamente. Miss Pebmarsh pediu especificamente que me mandassem a mim.
— Miss Pebmarsh pediu especificamente que a mandassem a si. — Hardcastle registou o facto com um movimento de sobrancelhas. — Compreendo… Por já ter trabalhado para ela?
— Nunca trabalhei — apressou-se Sheila a dizer.
— Não? Tem a certeza?
— Tenho. Absoluta. Ela não é uma pessoa que se esqueça facilmente. É isso que me parece tão estranho.
— De facto. Bem, passemos à frente. A que horas chegou aqui?
— Devia faltar pouco para as três horas porque o relógio de cuco… — Calou-se, bruscamente, arregalando os olhos. — Que estranho! Muito estranho! Na altura não reparei.
— Não reparou em quê, Miss Webb?
— Nos relógios.
— Que têm os relógios?
— O relógio de cuco bateu as três horas, mas os outros todos estavam cerca de uma hora adiantados. Que estranho!
— Realmente é estranho — concordou o inspector. — Quando é que reparou no corpo?
— Só quando contornei o sofá. Foi quando dei com ele. Foi horrível, horrível…
— Calculo que sim. Reconheceu o homem? Era alguém que já tivesse visto antes?
— Não, não!
— Tem a certeza absoluta? Podia ter um aspecto diferente do habitual. Pense bem. Tem a certeza absoluta de que nunca o tinha visto?
— Tenho.
— Muito bem. E o que fez?
— O que fiz?
— Sim.
— Bem… não fiz nada… absolutamente nada. Não fui capaz.
— Compreendo. Não lhe tocou?
— Sim… sim, toquei. Para ver se… quero dizer… só para ver… Mas ele estava frio… e… e fiquei com a mão suja de sangue. Foi horrível… espesso e viscoso. Começou a tremer.
— Então, então, acalme-se — disse Hardcastle, num tom paternal. — Já passou. Não pense no sangue. Continuemos. Conte o que se passou a seguir.
— Não sei… Ah, sim, ela chegou a casa.
— Refere-se a Miss Pebmarsh?
— Sim… só que na altura não pensei que fosse Miss Pebmarsh. Ela entrou com um cesto de compras. — A sua inflexão realçou o cesto de compras como se fosse algo de incongruente e irrelevante.
— E que disse, Miss Webb?
— Acho que não disse nada… Tentei, mas não fui capaz. Senti um nó aqui.
— Indicou a garganta. O inspector acenou com a cabeça.
— E depois… depois… ela perguntou: «Quem está aí?», e começou a contornar as costas do sofá e eu pensei… pensei que ela ia… que ia pisar aquilo. E gritei… E depois de começar, não conseguia calar-me e, não sei como, saí da sala e corri porta fora…
«Como uma doida», o inspector recordou as palavras de Colin. Sheila Webb fitou-o com os seus olhos tristes e assustados e disse inesperadamente:
— Peço desculpa.
— Não tem nada que pedir desculpa. Relatou muito bem a sua história. Agora não precisa de pensar mais no assunto. Ah, só mais uma coisa, porque é que entrou naquela sala?
— Porquê? — Ela ficou intrigada.
— Sim. Possivelmente chegou alguns minutos mais cedo e tocou à campainha. Mas, se ninguém atendeu, porque é que entrou?
— Ah, isso. Porque ela me mandou entrar.
— Quem?
— Miss Pebmarsh.
— Mas pensei que não tinha falado com ela.
— E não falei. Foi a Miss Martindale que ela disse… que eu devia entrar e esperar na sala de estar à direita do vestíbulo. Hardcastle disse pensativamente: — Estou a ver. Sheila Webb perguntou timidamente:
— É… é tudo?
— Julgo que sim. Mas gostaria que aguardasse uns dez minutos mais, para o caso de querer fazer-lhe mais alguma pergunta. Depois mando um carro da polícia levá-la a casa. E a sua família… tem família?
— Os meus pais morreram. Vivo com uma tia.
— Como se chama?
— Mrs. Lawton.
O inspector levantou-se e estendeu a mão.
— Muito obrigado, Miss Webb — disse ele. — Tente dormir bem esta noite. Bem precisa, depois do que lhe aconteceu. Ela sorriu-lhe timidamente, dirigindo-se para a sala de jantar.
— Colin, olha por Miss Webb — disse o inspector. — Miss Pebmarsh, importa-se de chegar aqui?
Hardcastle fez menção de a ajudar, mas ela passou por ele num passo firme, confirmou a presença de uma cadeira encostada à parede com os dedos, puxou-a um pouco para a frente e sentou-se.
Hardcastle fechou a porta. Antes de ele falar, Millicent Pebmarsh perguntou abruptamente:
— Quem é esse jovem?
— Chama-se Colin Lamb.
— Isso já ele me disse. Mas quem é? Porque é que cá veio?
Hardcastle olhou para ela, um pouco surpreendido.
— Ia a passar por acaso quando Miss Webb saiu a correr e a gritar como uma desalmada. Depois de entrar e de verificar o que se tinha passado, telefonou-nos e nós pedimos-lhe que esperasse aqui.
— O senhor tratou-o por Colin.
— É muito observadora, Miss Pebmarsh… — (Observadora? A palavra parecia desajustada, mas não havia melhor.) — O Colin Lamb é meu amigo, embora eu já não o visse há algum tempo. É biólogo marinho — acrescentou.
— Ah, compreendo!
— Pois bem, Miss Pebmarsh, agradecia-lhe que me dissesse tudo o que sabe sobre este surpreendente acontecimento.
— De bom grado. Mas não há muito a dizer.
— Suponho que mora aqui há algum tempo?
— Desde 1950. Sou… era professora. Quando me foi dito que o meu problema de visão não tinha cura e que não tardaria a ficar cega, dediquei-me ao estudo do Braille e de outras técnicas para ajudar os cegos. Lecciono no Instituto Aaronberg para Crianças Cegas e Deficientes.
— Obrigado. Falemos dos assuntos desta tarde. Estava à espera de uma visita?
— Não.
— Vou ler-lhe uma descrição do morto, para ver se lhe recorda alguém em especial. Altura entre um metro e setenta e seis e um metro e setenta e oito, cerca de sessenta anos, cabelo escuro a começar a embranquecer, olhos castanhos, sem barba, cara magra e queixo firme. Aspecto de pessoa bem alimentada, mas sem ser gordo. Fato cinzento-escuro e mãos bem tratadas. Poderia ser um empregado bancário, um contabilista, um advogado ou um homem de profissão liberal. Esta descrição sugere-lhe alguém conhecido?
Millicent Pebmarsh reflectiu uns momentos antes de responder.
— Não posso dizer que sugira. É uma descrição bastante generalizada, claro. Aplicar-se-ia a um grande número de pessoas. Pode ser alguém que vi ou conheci numa ocasião qualquer, mas não se trata de ninguém que conhecesse bem.
— Nos últimos tempos não recebeu nenhuma carta de alguém a sugerir visitá-la?
— De maneira nenhuma.
— Muito bem. A senhora telefonou à Agência de Secretariado Cavendish a solicitar os serviços de uma estenógrafa e… Ela interrompeu-o.
— Desculpe, mas não fiz semelhante coisa.
— Não telefonou à Agência de Secretariado Cavendish a pedir… — Hardcastle olhou para ela, atónito.
— Não tenho telefone em casa.
— Há uma cabina ao fundo da rua — lembrou o inspector.
— Realmente há. Mas posso afiançar-lhe, inspector Hardcastle, que não precisei dos serviços de nenhuma estenógrafa e não liguei, repito, não liguei a essa tal Agência Cavendish, a fazer semelhante pedido.
— Não pediu, especificamente, que lhe mandassem Miss Sheila Webb?
— Nunca ouvi tão-pouco falar desse nome.
Hardcastle fitou-a, estupefacto.
— Deixou a porta da frente destrancada — frisou ele.
— Deixo-a assim com frequência durante o dia.
— Qualquer pessoa pode entrar cá dentro.
— Neste caso, pelos vistos, entrou — comentou secamente Miss Pebmarsh.
— Miss Pebmarsh, segundo o depoimento médico, este homem morreu aproximadamente entre as 13h30 e as 14h45. Onde estava nessa altura? Miss Pebmarsh reflectiu.
— Às 13h30, penso que já tinha saído de casa ou estava a preparar-me para sair. Precisava de fazer umas compras.
— Sabe-me dizer exactamente onde foi?
— Deixe ver. Fui aos correios, em Albany Road, expedir uma encomenda e comprar alguns selos, depois comprei algumas provisões, sim, e comprei também presilhas e alfinetes-de-ama na retrosaria, a Field & Wren. A seguir voltei para aqui. Posso dizer-lhe exactamente que horas eram. O meu relógio de cuco estava a dar as três horas quando transpus o portão. Ouço-o da rua.
— E os seus outros relógios?
— Como?
— Os seus outros relógios parecem estar todos adiantados pouco mais de uma hora.
— Adiantados? Está a falar do relógio de pé no canto?
— Não apenas desse… os outros relógios da sala também estão adiantados.
— Não compreendo o que quer dizer com os «outros relógios». Não há mais relógios na sala de estar.
Hardcastle olhou para ela, estupefacto.
— Essa agora, Miss Pebmarsh! E o bonito relógio de porcelana de Dresden, que tem na prateleira do fogão de sala? E o pequeno relógio francês… de ouropel? E o relógio de transporte de prata e… sim, o relógio que tem o nome «Rosemary» num canto?
Foi a vez de Miss Pebmarsh ficar espantada.
— Um de nós deve estar doido, inspector. Garanto-lhe que não tenho nenhum relógio de porcelana de Dresden nem… como disse?… nenhum relógio com o nome de «Rosemary» gravado… nem nenhum relógio francês de ouropel nem… qual era o outro?
— Um relógio de transporte em prata.
— Nem nenhum relógio de transporte em prata. Se não acredita, pergunte à mulher que vem fazer a limpeza. Chama-se Mrs. Curtin.
O inspector Hardcastle estava perplexo. O tom enérgico, de absoluta certeza, de Miss Pebmarsh era convincente. Reflectiu por alguns momentos e depois levantou-se.
— Miss Pebmarsh, importa-se de me acompanhar à sala ao lado?
— Com certeza. Para ser franca, eu própria quero ver esses relógios.
— Ver? — Hardcastle foi rápido a estranhar a palavra.
— Examinar seria um termo mais apropriado — disse Miss Pebmarsh —, mas até as pessoas cegas usam formas de falar convencionais que não se aplicam exactamente às suas capacidades. Quando digo que quero ver esses relógios, quero dizer que quero examiná-los e apalpá-los com os dedos.
Seguido por Miss Pebmarsh, Hardcastle saiu da cozinha, atravessou o pequeno vestíbulo e entrou na sala de estar. O perito das impressões digitais levantou os olhos para ele.
— Estou quase a acabar, inspector — disse ele. — Pode mexer no que quiser.
Hardcastle assentiu com a cabeça e pegou no pequeno relógio de viagem com a palavra «Rosemary» inscrita no canto. Entregou-o a Miss Pebmarsh. Esta apalpou-o cuidadosamente.
— Parece um relógio de viagem normal — disse ela —, dos articuláveis, de couro. Não é meu, inspector Hardcastle, e não estava nesta sala, posso dizer com relativa segurança, quando saí à uma e meia.
— Obrigado.
O inspector tirou-lho da mão. Cuidadosamente retirou da prateleira do fogão de sala o pequeno relógio de Dresden.
— Tenha cuidado com este — disse ele, pondo-o nas mãos dela. — É frágil.
Millicent Pebmarsh tacteou o relógio, com dedos delicados e investigadores, e abanou a cabeça. — Deve ser um relógio encantador — disse ela —, mas não é meu. Onde disse que estava?
— Do lado direito da prateleira do fogão de sala.
— Devia estar aí um par de castiçais de porcelana — disse Miss Pebmarsh.
— Sim — disse Hardcastle —, de facto está, mas foi afastado para a ponta.
— Disse que havia mais um relógio?
— Mais dois.
Hardcastle pegou no relógio de porcelana de Dresden e entregou a Miss Pebmarsh o pequeno relógio francês de ouropel. Ela apalpou-o rapidamente e devolveu-lho.
— Não. Também não é meu.
Ele passou-lhe o de prata, que ela também lhe devolveu.
— Os únicos relógios que estão normalmente nesta sala são um relógio de pé, naquele canto junto da janela…
— Exactamente.
— …e um relógio de cuco na parede ao pé da porta.
Hardcastle ficou sem saber o que dizer a seguir. Perscrutou a mulher à sua frente, com o reconforto acrescido de saber que ela não podia retribuir a sua inspecção. Na testa de Miss Pebmarsh desenhou-se uma expressão, ligeiramente carregada, de perplexidade.
— Não compreendo — disse ela bruscamente. — Não consigo compreender.
Estendeu uma mão, com perfeito conhecimento do ponto onde se encontrava na sala, e sentou-se. Hardcastle olhou para o homem das impressões digitais, que estava de pé junto à porta.
— Examinou estes relógios? — perguntou.
— Examinei tudo, inspector. Não há marcas no relógio dourado, nem seria de esperar que houvesse. A superfície não as fixa. Passa-se o mesmo com o de porcelana. Mas o de viagem e o de prata também não têm nada, o que já é de estranhar numa situação normal… devia haver impressões digitais. A propósito, nenhum deles tem corda e estão todos regulados para a mesma hora… quatro horas e treze minutos.
— E o resto da sala?
— Há três ou quatro conjuntos diferentes de impressões digitais, todas de mulher, penso eu. O conteúdo dos bolsos da vítima está em cima da mesa.
Indicou com a cabeça um pequeno monte de objectos. Hardcastle aproximou-se e observou-os. Havia uma carteira com sete libras e dez xelins, algumas moedas, um lenço de seda, sem iniciais, uma pequena caixa de pastilhas digestivas e um cartão impresso. Hardcastle debruçou-se para ler.
Mr. R. H. Curry
Companhia de Seguros Metropolis & Provincial, Lda.
Denvers Street, n.º 7
Londres, W2
O inspector voltou ao sofá onde Miss Pebmarsh estava sentada.
— Estava à espera de alguém de uma companhia de seguros?
— De uma companhia de seguros? Não, de maneira nenhuma.
— Da Metropolis & Provincial — disse Hardcastle. Miss Pebmarsh abanou a cabeça. — Nunca ouvi falar — declarou.
— Não tencionava fazer nenhum seguro?
— Não. Estou segura contra incêndio e roubo na Companhia de Seguros Jove, que tem aqui uma filial. Não tenho nenhum seguro pessoal. Como não tenho família nem parentes chegados, não vejo nenhum interesse em ter um seguro de vida.
— Compreendo — disse Hardcastle. — O nome Curry diz-lhe alguma coisa? Mr. R. H. Curry? — Estava a observá-la atentamente, mas não notou nenhuma reacção no seu rosto.
— Curry… — ela repetiu o nome e abanou a cabeça. — É um nome pouco vulgar, não é? Não, não me lembro de o ter ouvido nem de conhecer ninguém com esse nome. Era assim que se chamava o homem que mataram?
— É possível.
Miss Pebmarsh hesitou um momento e disse:
— Quer que eu… que eu… apalpe…O inspector compreendeu-a imediatamente.
— Importa-se, Miss Pebmarsh? Isto é, se não for pedir-lhe de mais. Não sou muito entendido nestas coisas, mas provavelmente os seus dedos dizem-lhe com mais exactidão do que qualquer descrição que aspecto tem uma pessoa.
— Sem dúvida — disse Miss Pebmarsh. — Confesso que a ideia não é muito agradável, mas estou disposta a fazê-lo, se pensa que o pode ajudar.
— Obrigado — disse Hardcastle. — Se me permite que a conduza…
Levou-a atrás do sofá, pediu-lhe que se ajoelhasse e depois, suavemente, aproximou-lhe as mãos da cara do morto. Ela estava muito calma, não traindo qualquer emoção. Passou os dedos pelo cabelo, pelas orelhas, demorando-se um pouco atrás da orelha esquerda, pelos contornos do nariz, da boca e do queixo. Depois abanou a cabeça e levantou-se.
— Tenho uma ideia clara do aspecto dele — disse ela —, mas tenho a certeza de que não é ninguém que eu conheça ou tenha visto.
O perito em impressões digitais tinha arrumado o equipamento e saído da sala. Voltou a espreitar por detrás da porta.
— Já aí estão para o levar — disse ele, indicando o cadáver. — Pode ser?
— Pode — redarguiu o inspector Hardcastle. — Miss Pebmarsh, venha sentar-se aqui, se não se importa.
Instalou-a numa cadeira no canto. Entraram na sala dois homens que removeram, com rapidez e eficiência, o corpo do falecido Mr. Curry. Hardcastle foi até ao portão e depois voltou à sala de estar. Sentou-se ao lado de Miss Pebmarsh.
— Este caso é muito estranho, Miss Pebmarsh — disse ele. — Preciso de passar em revista consigo os pontos principais, para ter a certeza de que percebi tudo bem. Corrija-me se me enganar. A senhora não estava à espera de nenhuma visita hoje, não fez nenhuma consulta acerca de qualquer tipo de seguro e não recebeu nenhuma carta de ninguém a informá-la de que ia receber hoje a visita de um representante de uma companhia de seguros. Correcto?
— Correctíssimo.
— Não precisava dos serviços de uma estenodactilógrafa ou estenógrafa e não telefonou para a Agência Cavendish, nem pediu que lhe mandassem alguém às três horas.
— Mais uma vez, correcto.
— Quando saiu de casa, por volta das 13h30, só havia dois relógios nesta sala, o de cuco e o de pé. Mais nenhum. Miss Pebmarsh preparava-se para responder, mas hesitou.
— Para ser completamente rigorosa, quanto a isso não posso jurar nada. Sendo cega, não poderia ter notado a ausência ou presença de nenhum objecto estranho. Ou seja, só tenho a certeza do que estava nesta sala quando limpei o pó hoje de manhã cedo. Nessa altura, estava tudo no sítio. Geralmente sou eu que limpo esta sala porque as mulheres-a-dias são um pouco descuidadas com os ornamentos.
— Saiu de casa durante a manhã?
— Saí. Como de costume, fui ao Instituto Aaronberg às dez horas. Dou aulas lá até ao meio-dia e um quarto. Regressei a casa por volta da uma menos um quarto, preparei uns ovos mexidos e uma chávena de chá na cozinha e voltei a sair, como já disse, à uma e meia. A propósito, almocei na cozinha e não vim a esta sala.
? 16h13. Quatro horas e treze minutos?
Ela abanou a cabeça.
— Tenho estado aqui a pensar que se trata da obra de um louco ou que alguém se enganou na casa. Mas isso também não explica nada. Não, inspector, não o posso ajudar.
Um jovem polícia apareceu à porta. Hardcastle foi ter com ele ao vestíbulo e acompanhou-o ao portão. O inspector falou durante alguns minutos com os homens.
— Agora pode levar a rapariga a casa — disse ele. — A morada é Palmerston Road, n.º 14.
Regressou à sala de jantar. Pela porta aberta da cozinha, ouviu Miss Pebmarsh atarefada diante do lava-loiça. Parou à entrada.
— Preciso de levar os relógios, Miss Pebmarsh. Vou passar-lhe um recibo por eles.
— Pode levá-los à vontade, inspector. Não me pertencem.
Hardcastle virou-se para Sheila Webb.
— Pode ir para casa, Miss Webb. O carro da polícia leva-a.
Sheila e Colin levantaram-se.
— Acompanha-a ao carro, sim, Colin? — pediu Hardcastle, puxando uma cadeira para a mesa e começando a passar um recibo.
Colin e Sheila saíram e começaram a descer o caminho. Sheila estacou de súbito.
— As minhas luvas… esqueci-me delas…
— Eu vou buscá-las.
— Não… sei exactamente onde as pus. Agora não me importo… agora que o levaram. Correu para dentro de casa e voltou alguns momentos depois.
— Peço desculpa de ter sido tão pateta… antes.
— Qualquer pessoa teria tido a mesma reacção — disse Colin.
Hardcastle apareceu junto deles quando Sheila estava a entrar para o carro. Depois, quando este arrancou, virou-se para o jovem polícia.
— Quero esses relógios na sala empacotados com cuidado… todos menos o relógio de cuco na parede e o relógio de pé. Deu mais algumas instruções e virou-se para o amigo:
— Tenho de ir a vários sítios. Queres vir?
— Porque não? — respondeu Colin.
— Onde vamos? — perguntei a Dick Hardcastle.
Ele dirigiu-se ao motorista.