Prefácio
Foi muito provavelmente por causa da sua insatisfação com Alibi, a adaptação para os palcos feita por outra pessoa em 1928 do seu romance O Assassinato de Roger Ackroyd que a minha avó, Agatha Christie, decidiu escrever ela própria uma peça, algo que não tentara previamente. Café Negro, protagonizada pelo seu detective preferido, Hercule Poirot, foi acabada no Verão de 1929. Mas quando Agatha a mostrou ao seu agente, este aconselhou-a a não se dar ao trabalho de a entregar a nenhum teatro já que, na opinião dele, não era suficientemente boa para ser encenada. Felizmente, um amigo com ligações a agentes teatrais convenceu-a a ignorar um conselho tão negativo, e a peça foi aceite para produção em 1930 no Embassy Theatre, em Swiss Cottage, Londres.
Café Negro recebeu críticas favoráveis, e em Abril do ano seguinte transferiu-se para o West End, onde esteve em cena com sucesso durante vários meses no St. Martin’s Theatre (onde uma peça posterior de Christie, A Ratoeira, iniciou um percurso bem mais longo em 1952). Em 1930, o papel de Poirot fora desempenhado por um actor popular da época, Francis L. Sullivan, com John Boxer como o seu companheiro, o capitão Hastings; Joyce Bland fez o papel de Lucia Amory, e o actor shakespeariano Donald Wolfit foi o Dr. Carelli. Na produção do West End, Francis L. Sullivan era ainda Poirot, mas Hastings foi interpretado por Ronald Culver, e o Dr. Carelli por Dino Galvani.
Alguns meses mais tarde, o filme Café Negro foi rodado em Inglaterra, nos estúdios de Twickenham, realizado por Leslie Hiscott e com Austin Trevor no papel principal, ele que já havia desempenhado o papel de Poirot na versão cinematográfica de Alibi. A peça continuou a ser uma das favoritas de companhias de teatro por alguns anos, e em 1956 Charles Osborne, que era um jovem actor, deu por si a desempenhar o papel de Dr. Carelli em Café Negro numa temporada de Verão em Tunbridge Wells.
Quase quarenta anos mais tarde, depois de não só se ter tornado, nos anos seguintes, numa autoridade mundial em ópera mas também de ter escrito um livro esplêndido intitulado The Life and Crimes of Agatha Christie, Osborne lembrou-se da peça. Sugeriu à Agatha Christie Limited (que detém os direitos de autor das suas obras) que, vinte anos depois da morte da autora, seria maravilhoso dar ao mundo um novo romance policial de Agatha Christie. Concordámos de forma entusiástica, e o resultado é este mistério de Hercule Poirot, que para mim se lê como uma obra autêntica e clássica de Christie. Tenho a certeza de que Agatha teria sentido orgulho em escrevê-lo.
Mathew Prichard
Capítulo Um
Hercule Poirot sentou-se para tomar o pequeno-almoço no seu pequeno mas acolhedor apartamento em Whitehall Mansions. Saboreara o seu brioche e a sua chávena de chocolate quente. Excepcionalmente, pois era uma criatura de hábitos e raramente variava a sua rotina de pequeno-almoço, pedira ao seu criado, George, que lhe preparasse uma segunda chávena de chocolate. Enquanto esperava por ela, olhou outra vez para o correio matinal que estava na sua mesa de pequeno-almoço.
De uma forma meticulosa, como sempre, colocara os envelopes abertos num monte arrumado. Haviam sido abertos com muito cuidado, com o corta-papel em forma de espada que o seu velho amigo Hastings lhe dera como prenda de aniversário há muitos anos. Um segundo monte continha as comunicações que ele achava desinteressantes, a maioria circulares, que pediria dentro de uns instantes a George para deitar fora. O terceiro monte consistia em cartas que precisariam de alguma resposta, ou pelo menos um aviso de recepção. Lidaria com estas depois do pequeno-almoço, de qualquer forma nunca antes das dez horas. Poirot achava que não era muito profissional começar a rotina de um dia de trabalho antes das dez. Quando estava a tratar de um caso… ah, bem, claro que isso era diferente. Lembrou-se que uma vez ele e Hastings haviam partido bem antes da madrugada para…
Mas, não, Poirot não queria que os seus pensamentos se detivessem no passado. O passado feliz. O último caso deles, que envolvera uma organização criminosa internacional conhecida como «Os Quatro Grandes», fora concluído de uma forma satisfatória, e Hastings regressara à Argentina, à sua esposa e ao seu rancho. Apesar de o seu velho amigo estar temporariamente de regresso a Londres devido a negócios relacionados com o rancho, era bastante improvável que Poirot e ele acabassem a trabalhar juntos na resolução de um crime. Seria por isso que Hercule Poirot se sentia inquieto nesta bela manhã de Primavera em Maio de 1934? Reformado, para todos os efeitos, esquecera a sua situação mais do que uma vez quando um problema especialmente interessante lhe havia sido apresentado. Gostara de estar a seguir a pista outra vez, com Hastings ao seu lado, como ouvinte das suas ideias e teorias. Mas nada que contivesse algum interesse profissional aparecia a Poirot há vários meses. Não havia mais crimes e criminosos imaginativos? Seria tudo violência e brutalidade, o tipo de assassinato ou roubo sórdidos cuja investigação estava abaixo da dignidade dele, Poirot?
Os pensamentos dele foram interrompidos pela chegada silenciosa de George junto ao seu cotovelo com a segunda e bem-vinda chávena de chocolate. Bem-vinda não só porque Poirot desfrutaria do seu sabor rico e doce, mas também porque lhe daria a hipótese de adiar, por mais alguns minutos, a tomada de consciência de que o dia, uma bela manhã soalheira, se estendia perante si com nada mais emocionante do que a perspectiva de uma caminhada no parque e um passeio por Mayfair até ao seu restaurante preferido no Soho, onde almoçaria sozinho, o quê? Talvez um pouco de pâté para começar, e depois o linguado bonne femme, seguido de…
Apercebeu-se de que George, depois de colocar o chocolate na mesa, se dirigia a ele. O impecável e imperturbável George, um indivíduo intensamente inglês, com um rosto um pouco inexpressivo, estava com Poirot há algum tempo, e era tudo o que este desejava num criado particular. Completamente desprovido de curiosidade e extraordinariamente relutante em expressar uma opinião pessoal sobre qualquer assunto, George era uma mina de informação sobre a aristocracia inglesa, e tão fanaticamente arrumado como o próprio grande detective. Poirot dissera-lhe mais do que uma vez: «Passa as calças a ferro de uma forma bastante admirável, George, mas imaginação, não a possui.» No entanto, Hercule Poirot possuía imaginação em abundância. A capacidade de passar um par de calças a ferro da forma adequada era, na sua opinião, um feito raro. Sim, tinha realmente sorte em ter George para cuidar de si.
— …e então tomei a liberdade, sir, de prometer que o senhor ligaria de volta esta manhã — dizia George.
— Peço-lhe perdão, meu caro George — respondeu Poirot. — A minha atenção dispersou-se. Disse que alguém telefonou?
— Sim, sir. Foi na noite passada, sir, quando estava no teatro com Mrs. Oliver. Eu fui para a cama antes de o senhor chegar a casa, e pensei que seria desnecessário deixar-lhe um recado àquela hora.
— Quem foi que telefonou?
— O cavalheiro disse que era Sir Claud Amory, sir. Deixou o número de telefone, que parece ser algures no Surrey. O assunto, disse ele, era algo delicado, e também pediu que não desse o seu nome a mais ninguém quando ligasse, mas que insistisse em falar com o próprio Sir Claud.
— Obrigado, George. Deixe o número de telefone na minha secretária — disse Poirot. — Telefonarei a Sir Claud depois de dar uma vista de olhos ao Times desta manhã. Ainda é um pouco cedo para telefonemas, mesmo para assuntos delicados.
George fez uma vénia e saiu, Poirot acabou a sua chávena de chocolate, devagar, e depois foi para a varanda com o jornal dessa manhã.
Uns minutos depois, o Times fora posto de lado. As notícias internacionais eram, como de costume, deprimentes. Aquele terrível Hitler transformara os tribunais alemães em ramos do partido Nazi, os fascistas haviam tomado o poder na Bulgária, e, pior do que tudo, no país de Poirot, a Bélgica, temia-se que quarenta e dois mineiros estivessem mortos depois de uma explosão numa mina perto de Mons. As notícias locais eram um pouco melhores. Depois da relutância dos responsáveis, as competidoras femininas em Wimbledon seriam autorizadas a usar calções naquele Verão. Também não havia muito consolo nos obituários, pois pessoas da idade de Poirot, e mais novas, teimavam em morrer.
Abandonando o seu jornal, Poirot recostou-se na cadeira de verga confortável, os seus pés num pequeno banco. Sir Claud Amory, pensou para si. O nome parecia familiar, não? Ouvira-o algures. Sim, este Sir Claud era conhecido nalguma esfera. Mas o que era? Era político? Advogado? Um funcionário público reformado? Sir Claud Amory. Amory.
A varanda era virada para nascente, e Poirot achou que estava calor suficiente para se esticar uns momentos. Em breve ficaria quente de mais para ele, pois não era um amante do sol.
«Quando o sol me empurrar para dentro» meditou ele «então esforçar-me-ei e consultarei o Who’s Who1. Se este Sir Claud é uma pessoa distinta, estará com certeza incluído naquele volume tão admirável. Se não estiver…?»
O pequeno detective encolheu os ombros de uma forma expressiva.
Um snob inveterado, estava já predisposto a favor de Sir Claud em virtude do título dele. Se estivesse no Who’s Who, um volume no qual os detalhes da carreira do próprio Poirot podiam também ser encontrados, então talvez este Sir Claud fosse alguém com um direito válido ao tempo e atenção de Hercule Poirot.
Um avivar de curiosidade e uma brisa fresca repentina combinaram-se para mandar Poirot para dentro de casa. Entrando na sua biblioteca, dirigiu-se a uma prateleira de livros de referência e tirou o volume vermelho e grosso cujo título, Who’s Who, estava gravado na lombada. Virando as páginas, chegou ao registo que procurava, e leu em voz alta.
AMORY, Sir Claud (Herbert); Kt. 1927; nascido a 24 de Novembro 1878. Casado 1907, Helen Graham (divorciado em 1929); uma irmã. Educação: Colégio de Weymouth; King’s College, Londres. Físico investigador nos Laboratórios GEC, 1905; RAE Farmborough (Departamento de Rádio), 1916; Ministério da Aviação, estabelecimento de investigação, Swanage 1921; demonstrou um novo princípio de aceleração de partículas: o acelerador linear de propagação de ondas, 1924. Galardoado com a Medalha Monroe pela Sociedade de Física. Publicações: textos em publicações académicas. Morada: Market Cleve, nº 314. Clube: Athenaeum.
— Ah, sim — meditou Poirot. — O famoso cientista.
Lembrou-se de uma conversa que tivera uns meses antes com um membro do governo de Sua Majestade, depois de Poirot ter recuperado alguns documentos desaparecidos cujo conteúdo poderia ter sido embaraçoso para o governo. Haviam falado de segurança, e o político admitira que as medidas de segurança, regra geral, não eram suficientemente rigorosas.
«Por exemplo», dissera ele, «aquilo em que Sir Claud Amory está a trabalhar agora é de uma importância enorme para qualquer guerra futura, mas ele recusa-se a trabalhar sob condições de laboratório, onde ele e a sua invenção possam ser guardados de forma adequada. Insiste em trabalhar sozinho na sua casa de campo. Sem nenhuma segurança. É assustador.
— Pergunto-me — pensou Poirot para si enquanto colocava novamente o Who’s Who na prateleira —, pergunto-me, poderá Sir Claud querer contratar Hercule Poirot para ser um velho cão de guarda? As invenções da guerra, as armas secretas, não são para mim. Se Sir Claud…
O telefone na sala ao lado tocou, e Poirot ouviu George a atender. Um momento mais tarde, o criado apareceu.
— É Sir Claud Amory outra vez, sir — disse ele.
Poirot foi ao telefone.
— Alo. É Hercule Poirot que fala — anunciou ele ao auscultador.
— Poirot? Não nos conhecemos, apesar de termos conhecidos em comum. O meu nome é Amory, Claud Amory.
— Claro que já ouvi falar de si, Sir Claud — respondeu Poirot.
— Olhe, Poirot. Tenho um problema muito complicado em mãos. Ou melhor, pode ser que tenha. Não tenho a certeza. Tenho estado a trabalhar numa fórmula para bombardear o átomo. Não entrarei em pormenores, mas o Ministério da Defesa considera-a da maior importância. O meu trabalho está terminado, e produzi uma fórmula a partir da qual se pode fazer um novo e mortífero explosivo. Tenho motivos para suspeitar que alguém de dentro da minha casa está a tentar roubar a fórmula. Agora não posso dizer mais, mas ficar-lhe-ia muito grato se pudesse vir à minha casa em Abbot’s Cleve passar o fim-de-semana, como meu hóspede. Gostaria que o senhor levasse a fórmula consigo de volta para Londres e a entregasse a uma certa pessoa no ministério. Há boas razões para que isso não possa ser feito por um mensageiro do ministério. Preciso de alguém que seja aparentemente um membro discreto do público, e não um cientista, mas que também seja astuto o suficiente para que…
Sir Claud continuou a falar. Hercule Poirot, contemplando no espelho o reflexo da sua cabeça calva e oval, e do seu bigode elaboradamente encerado, disse para si que nunca, numa longa carreira, fora considerado discreto, nem se considerava a si próprio tal coisa. Mas um fim-de-semana no campo e uma hipótese de conhecer o distinto cientista podiam ser agradáveis, assim como o poderia ser, sem dúvida, o agradecimento de um governo grato, expresso de forma adequada… e apenas por transportar no bolso, do Surrey a Whitehall, uma fórmula científica obscura, ainda que mortífera.
— Terei todo o gosto, meu caro Sir Claud — interrompeu ele. — Chegarei no sábado à tarde, se lhe for conveniente, e regressarei a Londres com seja o que for que deseja que leve comigo na segunda-feira de manhã. Fico bastante ansioso por conhecê-lo.
Curioso, pensou, ao pousar o auscultador. Agentes estrangeiros podiam estar interessados na fórmula de Sir Claud, mas seria realmente verdade que alguém da própria casa do cientista…? Ah, bem, sem dúvida que mais seria revelado durante o fim-de-semana.
— George — gritou —, por favor, leve o meu fato de tweed grosso e o meu smoking à lavandaria. Têm de ser devolvidos até sexta-feira, porque vou passar o fim-de-semana ao campo. — Soou como se fosse para as estepes da Ásia Central durante uma eternidade.
Depois, voltando para o telefone, marcou um número e esperou uns momentos antes de falar.
— Meu caro Hastings — começou —, não gostaria de passar uns dias longe dos seus negócios em Londres? O Surrey é bastante agradável nesta altura do ano…