CAPÍTULO 1
Um homem que cometeu um crime tem de esconder o seu rasto, ainda que o tenha deixado com os melhores sapatos que o dinheiro pode comprar.
Para esconder o seu, Lord Elliot Rothwell voltou a entrar na casa da sua família em Londres entre os últimos convidados do baile do seu irmão e comportou-se como alguém que saíra apenas por breves momentos para apanhar ar nesta noite gloriosa e fresca de Maio.
Mal dera um passo além da soleira da porta, já não estava a entrar mas sim a saudar os convivas. O alto e bem-parecido irmão mais novo do quarto marquês de Easterbrook – o irmão Rothwell considerado mais afável e normal – concedia sorrisos a todos e, a determinadas senhoras, sorrisos deveras calorosos.
Um quarto de hora depois, Elliot embrenhou-se numa conversa com Lady Falrith tão habilmente como havia regressado ao salão de baile. Retomou um tópico interrompido duas horas antes e adulou a senhora de forma tão astuta que esta se esqueceu que ele se havia retirado há muito. Passados minutos, Lady Falrith perdeu toda e qualquer noção da passagem do tempo.
Enquanto Elliot brindava Lady Falrith com o seu charme, esquadrinhava a multidão no salão de baile à procura do seu irmão. Não procurava Hayden, que, em conjunto com a sua nova esposa, Alexia, era o anfitrião do baile. Ele buscava o rosto do seu outro irmão, Christian, o marquês de Easterbrook.
O olhar de Christian nunca se cruzou com o dele, mas o regresso de Elliot ao baile não lhe passou despercebido. Christian afastou-se de um círculo de lordes do reino no canto oposto do salão e caminhou na direcção da porta.
Elliot dançou uma valsa com Lady Falrith antes de prosseguir com a missão da noite. Fê-lo em jeito de penitência por ter usado a senhora e agradecimento silencioso pela sua ajuda involuntária. A noção de tempo de Lady Falrith podia ser fluida, e a sua memória muito optimista. Na manhã seguinte, estaria plenamente convencida de que Elliot a cumulara de atenções a noite inteira e que possuía todas as intenções de lhe fazer a corte. A confiança dela no seu próprio poder de atracção iria revelar-se útil se se desse algum desenvolvimento inconveniente relacionado com as suas actividades na City1 naquela noite.
Quando a valsa terminou, ele desculpou-se mais uma vez por a deixar. Ao invés de Christian, que caminhara solitária e propositadamente até à porta, Elliot deambulou ao longo do salão de baile de forma sociável, cumprimentando e trocando impressões até se aproximar despercebidamente da sua nova cunhada, Alexia.
– Está a correr bem, não concordais? – inquiriu ela. O olhar dela vagueou pela assembleia, procurando uma confirmação empírica.
– É um triunfo, Alexia – afirmou ele. E era-o, para ela. Um triunfo de espírito e carácter e, porventura, um triunfo de amor.
Alexia não era o tipo de mulher com a qual a sociedade esperaria que Hayden se casasse. Não tinha família nem fortuna. Era tão sensata que nunca aprendera sequer a arte da dissimulação, quanto mais a da afectação. No entanto, aqui estava ela na qualidade de anfitriã de um grande baile na casa de um marquês, com o cabelo negro impecavelmente arranjado e a usar um toucado e vestido de um estilo irrepreensivelmente actual, obedecendo ao último grito da moda feminina. A órfã sem um tostão casara-se com um homem que a amava como nunca amara antes.
Elliot acreditava que este seria um bom casamento. Alexia encarregar-se-ia disso. A história já uma vez provara que o amor era uma emoção perigosa para os homens Rothwell. A sensata e prática Alexia saberia, porém, como utilizar o amor para manter o perigo controlado. Elliot suspeitava que ela já teria amansado a fera em mais do que uma ocasião.
Ele imitou-a na admiração do sucesso da noite. No canto oposto do salão, uma mulher pequena e loira era o centro de um círculo de convivas. Um número considerável de plumas brotava do toucado que adornava o seu cabelo loiro. Esta mantinha um olhar vigilante sobre a atenção masculina que uma jovem rapariga recebia perto de si.
– O triunfo é vosso, Alexia, mas creio que a minha tia pretende levar para casa o maior prémio nesta temporada de caça.
– A vossa tia Henrietta está compreensivelmente feliz com a primeira temporada de Caroline. Dois titulares fizeram-lhe a corte. Contudo, ela está aborrecida comigo esta noite porque não convidei um desses titulares para o baile, apesar da sua ordem nesse sentido.
Elliot tinha muito pouco interesse nos aborrecimentos da sua tia, mas um grande interesse na lista de convidados.
– Não vi Miss Blair no baile, Alexia. Nada de hábitos negros ou cabelos soltos no salão. O Hayden proibiu-vos de a convidar?
– Claro que não. Phaedra está no estrangeiro. Embarcou há mais de uma quinzena de dias.
Ele não queria parecer demasiado curioso, mas…
– No estrangeiro?
Os olhos violeta de Alexia refulgiram, repletos de humor. Concedeu-lhe toda a sua atenção, a qual, tendo em conta o assunto em causa, ele preferia não ver dirigida a si.
– O primeiro destino é Nápoles, e a seguir, fará uma viagem pelo Sul. Afiancei-lhe que achais imprudente visitar Itália no pico do Verão, mas ela falou-me do desejo que tinha em investigar os rituais e festas próprias da estação – afirmou, e inclinou a cabeça antes de prosseguir num tom mais confidencial. – Acho que o falecimento do pai a afectou mais do que ela quer admitir. A última ocasião em que esteve com ele foi muito emotiva. Fê-la sofrer. Creio que decidiu fazer esta viagem para melhorar o seu estado de espírito.
Ele não duvidava que uma despedida no leito da morte do próprio pai podia ser emotiva. A sua marcara-o de forma indelével. Hoje, porém, estava mais interessado no paradeiro de Miss Blair e em assuntos que teriam sido discutidos com o pai dela antes de se ter dado esse último adeus.
– Se souberdes onde ela estava a pensar alojar-se em Nápoles, far-lhe-ei uma visita quando viajar até lá, caso ela ainda se encontre na cidade.
– De facto, ela deixou uma morada que esperava poder utilizar. Tomou conhecimento dela através de um amigo. Se ela não regressar antes da vossa viagem, ficar-vos-ia agradecida se a visitásseis. A sua independência é por vezes conducente a uma certa falta de cuidado, e isso deixa-me preocupada.
Ele duvidava que Phaedra Blair visse com bons olhos o facto de alguém se preocupar com ela. Alexia tinha um bom coração por, ainda assim, continuar a fazê-lo.
– Céus – murmurou Alexia.
Ele viu o que provocou o suspiro que se seguiu. Henrietta aproximava-se de ambos, com as plumas a dançar sobre a cabeça e os olhos etéreos e cintilantes raiados de determinação.
– Acho que é a vós que ela quer – sussurrou Alexia. – Misturai-vos no meio da multidão ou ela encher-vos-á os ouvidos com queixas acerca da forma como Easterbrook me autorizou a dar um baile sem a consultar. Ela acha que o facto de residir aqui a torna a senhora da casa.
Elliot conseguia misturar-se no meio da multidão como ninguém. Quando a tia chegou, ele já havia desaparecido há muito.
*
Depois de uma passagem rápida pelo corredor dos serviçais e de uma subida apressada pelas escadas das traseiras, Elliot aproximou-se dos aposentos de Christian. Ao entrar na sala de estar, encontrou o irmão reclinado de forma lânguida num cadeirão no canto da sala.
O olhar atento que Christian lhe dirigiu denotou que a mente de Easterbrook não estava tão descontraída como o corpo.
– Não o encontrei – disse Elliot, respondendo à pergunta que os olhos escuros lhe faziam. – Se está nos escritórios ou em casa dele, está muito bem escondido.
Christian soltou um suspiro ruidoso. O som veiculava a irritação que sentia por este assunto ter interrompido recentemente a sua liberdade de passar os dias a fazer seja o que for que fazia normalmente. Elliot não fazia ideia em que consistiam essas actividades. Ninguém sabia ao certo como Christian passava os seus dias.
– Pode tê-lo queimado quando se deu conta que a morte estava próxima – sugeriu Elliot.
– Merris Langton professava um carácter que tornava muito improvável o facto de pensar em poupar terceiros, mesmo quando estava às portas da morte – disse, enfiando um dedo sob o nó irrepreensível do plastrão, dando-lhe um pequeno puxão para o alargar.
Christian estava esplêndido esta noite, e tudo em si simbolizava um lorde do reino. Os casacos e roupas de linho anunciavam a sua qualidade superior em cada um dos seus fios. O seu gesto para com o plastrão aludia ao desconforto que sentira com a formalidade da noite, de forma tão evidente, porém, como a longa trança do seu cabelo escuro e longo fora de moda personificava a sua propensão excêntrica.
Elliot adivinhou o desejo do irmão de se libertar dos símbolos de alfaiataria da civilização para se envolver no robe exótico que envergava amiúde. Por norma, andava descalço nestes aposentos, e não a usar meias de seda e sapatos de cerimónia. Neste momento, o único indício da sua habitual apresentação desprendida em casa era uma sobrecasaca desabotoada e a forma indolente como o seu corpo alto se moldava aos estofos do cadeirão.
– Verificastes se havia tábuas soltas no chão e afins? – perguntou Christian.
– Arrisquei ser descoberto ao fazê-lo. Estive em ambos os edifícios demasiado tempo e estava a passar um guarda quando saí dos escritórios da City. Estava escuro e não existia nenhum candeeiro próximo da porta, todavia…
A descrição da sua aventura sugeria mais cautela do que aquela que tinha tido. Ele acreditava que existiam ocasiões nas quais não havia outra escolha senão infringir a lei, mas nunca esperara ser tão friamente indiferente quando uma dessas ocasiões se lhe apresentara.
– Estivestes neste baile a noite toda, se surgir alguma questão – declarou Christian. – Langton possuía uma pequena editora que dava preferência a textos radicais. Era igualmente um homem com uma predisposição para a chantagem, como ficámos a saber. Foi uma pena ele ter-se deixado morrer antes de eu lhe conseguir pagar. Agora, o manuscrito de Richard Drury está Deus sabe onde e a sua mentira sórdida a respeito do nosso pai ainda pode chegar a ver a luz do dia.
– Eu farei tudo para que isso não aconteça.
– Achais que alguém lhe deitou a mão antes de vós? É muito provável que não tenhais sido a única pessoa que Langton abordou.
– Não vi qualquer indício de que alguém já tivesse passado a pente fino os seus pertences. Nem sequer o seu procurador ou executor testamentário. Ele só foi a enterrar esta tarde. Na minha opinião, o manuscrito não estava em nenhum desses locais quando faleceu.
– Isso é deveras inconveniente.
– Inconveniente, mas não inultrapassável. Vou encontrá-lo e destruí-lo, se for necessário.
Christian olhou-o com atenção redobrada.
– Falais com uma grande confiança. Sabeis onde está aquele maldito manuscrito, não sabeis?
– Tenho um bom palpite. Se estiver certo, vamos ver-nos livres disto em breve. Ainda vos poderá custar uma boa maquia.
– Pagai-a. Richard Drury era um membro do Parlamento, e, apesar das suas opiniões radicais, um intelectual respeitado. Se as suas memórias incluem uma acusação desse calibre contra o meu pai, muitos irão acreditar nela.
Irão acreditar nela porque bate certo com aquilo que já pensam corresponder à verdade. Elliot não verbalizou a resposta, mas esta insinuara-se no seu íntimo quando ouviu pela primeira vez que Merris Langton planeava publicar as memórias póstumas de Richard Drury. O livro iria incluir segredos e maledicências que se reflectiam de forma negativa em muitos dos grandes e poderosos, quer do passado, quer do presente. A acusação que supostamente continha com respeito ao pai de ambos batia demasiado certo com o que a sociedade já presumia acerca do casamento dos seus pais.
A sociedade enganara-se a respeito de grande parte da história, no entanto. O seu próprio pai havia-lhe explicado isso num momento em que nenhum homem consegue mentir.
Éreis o seu filho preferido. Ela manteve-vos junto de si e eu permiti isso, sendo vós o mais novo. Era um alívio vê-la a lembrar-se de que era mãe, por vezes. Mas agora estou aqui a morrer e mal vos conheço. Não espero amor ou pesar da vossa parte, mas não morrerei convosco a pensar que sou o monstro que ela provavelmente vos disse que sou.
– Onde achais que o manuscrito está? Exijo que me mantenhais a par de cada passo, Elliot. Se não estiverdes a fazer progressos, tratarei disto pessoalmente.
Não era clara a forma como Christian trataria do assunto. Essa ambiguidade levara Elliot a assumir esta responsabilidade. O irmão podia ser assaz impiedoso a silenciar estes ecos do passado.
– Embora não tenha encontrado o manuscrito, descobri papéis relativos a finanças no escritório de Langton. Aquela editora está numa situação precária. Mais interessantes ainda foram os documentos que diziam respeito à propriedade da firma. Richard Drury foi um dos sócios com uma participação passiva desde o início. Não restam dúvidas de que foi por causa disso que Langton recebeu aquelas memórias para publicação.
Christian recebeu os novos dados com interesse.
– Teremos de entrar em contacto com o procurador de Langton para saber quem fica com tudo agora.
– Os documentos indicavam que a participação de Drury foi legada à sua única filha. Ainda existe uma sócia viva com a qual teremos de nos entender, e que provavelmente foi conivente no esquemazinho de chantagem desde o início.
– A sua única filha? Raios! – exclamou Christian. De seguida, empurrou a cabeça contra os estofos do cadeirão, fechou os olhos e emitiu um queixume exasperado. – Não a Phaedra Blair. Maldição.
– Sim, a Phaedra Blair.
Christian murmurou outra praga.
– É tão típico de Mr. Drury, com as suas opiniões radicais e vida pouco convencional, legar a parceria de um negócio a uma mulher, e à sua filha ilegítima, ainda para mais – declarou e fechou as pálpebras. – Claro que ela pode ficar satisfeita com o dinheiro se a editora está em dificuldades. Pode até receber de bom grado uma razão para não publicar as memórias do pai. Não tenho qualquer dúvida de que estarão pejadas de assuntos privados a respeito dela e da sua mãe.
– É possível que sim.
Elliot não se sentia tão optimista no que dizia respeito à simplicidade das negociações. Miss Blair era uma complicação indesejada. Ela podia ver nessas memórias e nos seus segredos um potencial êxito de vendas que salvaria a editora. Pior ainda, podia acreditar que faria jus às suas noções de justiça social ao revelar os podres da alta sociedade.
– A sua própria obra foi publicada por Langton, não foi? Está aqui na biblioteca algures. Confesso que nunca a li. Nutro pouco interesse por mitologia e folclore, e muito menos por estudos sincretistas a respeito disso – assegurou Christian.
– Ouvi dizer que o trabalho académico foi mais do que respeitável – afirmou. Aparentemente, Elliot praticava a máxima de reconhecer a seja quem for o seu mérito. – Ela herdou a inteligência dos pais, assim como a indiferença de ambos a respeito de regras de conduta e observância.
– Atendendo às circunstâncias, nenhum dos seus legados representa uma boa notícia para nós – afirmou Christian, erguendo-se. Abotoou o casaco e inspeccionou a gola, preparando-se para regressar ao baile. – É melhor não comentardes nada com Hayden acerca disto. Ele é muito protector da sua nova esposa e Miss Blair faz parte do círculo de amizades de Alexia. Se fordes obrigado a ser desagradável, é melhor que ambos permaneçam ignorantes desse facto.
– Miss Blair partiu para Nápoles há duas semanas. Entender-me-ei com ela antes que ela e Alexia possam ter outro tête-à-tête.
– Ides partir no seu encalço?
– Pretendia viajar para lá este Outono, seja como for. Quero estudar as escavações recentes em Pompeia para o meu próximo livro. Limitar-me-ei a antecipar a minha partida.
Os dois irmãos caminharam lado a lado até à escadaria. A cada passada, as toadas da música soavam mais alto e o suave burburinho de vozes inundava as alas majestosas. Enquanto desciam em direcção à alegre assembleia, Elliot reparou na expressão impenetrável e distraída de Christian.
– Não fiqueis apreensivo, Christian. Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que a acusação contra o nosso pai nunca seja impressa.
O sorriso fugaz de Christian não dissipou a sua expressão.
– Não duvido das vossas capacidades ou determinação. Não era nisso que pensava há pouco.
– O que era então?
– Estava a pensar em Phaedra Blair e a perguntar-me se algum homem consegue, como afirmastes, entender-se com ela.
Elliot caminhava na escuridão, alumiado pela chama do pequeno candeeiro que transportava.
Os convidados tinham abandonado a casa e os serviçais dormiam. Hayden e Alexia estariam provavelmente a desfrutar do leito matrimonial na casa de ambos em Hill Street. Christian ainda poderia estar acordado, mas não abandonaria os seus aposentos durante alguns dias.
A luz ténue reflectia-se nas molduras douradas da galeria. A lua irradiava um pouco mais de luz através das longas vidraças que atravessavam a parede oposta. Elliot deteve-se em frente de dois dos retratos. Não viera à procura desta ala, mas o seu propósito tinha tudo a ver com o homem e a mulher imortalizados nestas imagens.
O artista utilizara cenários de fundo similares para os dois corpos, e parecia que um dos quadros continuava o cenário e mundo do outro. Era bom ver os seus pais juntos assim, duas metades de um todo, ainda que a unidade implícita fosse uma mentira. Ele podia contar o número de vezes que os vira sequer juntos na mesma sala enquanto ainda eram vivos.
Não morrerei convosco a pensar que sou o monstro que ela provavelmente vos disse que sou.
O pai incorrera num erro. Com excepção de uma explosão emocional, a mãe nunca falara com ele a respeito da separação ou das razões que a motivaram. Na verdade, raramente falara seja do que for durante aquelas horas que ele passara com ela na biblioteca em Aylesbury.
Ele temia o pai pelas suas próprias razões, sem a ajuda da sua mãe. Acolhera com prazer os raros momentos de atenção por parte de um pai que parecia não se recordar que tinha três e não dois filhos.
Retomou o caminho que o levaria à biblioteca a pensar naquela longa conversa com o pai, a única e última que alguma vez tiveram. Aprendeu verdades importantes naquele dia, a respeito de pessoas e paixões, orgulho e alma, e a respeito das formas através das quais uma criança não consegue ver o mundo em seu redor com muita clareza.
Ele emergira dessa conversa sem qualquer temor. Depois dessas confidências, sentiu que era verdadeiramente filho do seu pai pela primeira vez na vida.
Com o candeeiro, iluminou as encadernações de pele da biblioteca. Procurou a prateleira mais baixa das estantes do canto. Depois da morte da mãe, trouxera os seus livros privados para lá, aqueles que a tinha observado a ler em Aylesbury durante o seu exílio.
Ele não sabia por que motivo levara esses livros para Londres. Talvez porque dessa forma uma parte dela perduraria no local onde a família se reunia mais amiúde. Cedera a este impulso muito antes daquela conversa com o pai, naquele que podia classificar-se como um acto rebelde de subterfúgio para tentar acabar finalmente com a forma como ela havia sido tão separada das suas vidas.
Ninguém reparara no seu aditamento às centenas de volumes existentes. Aqui em baixo neste canto obscuro, o facto de as suas encadernações não condizerem com as demais não levantava questões.
Ele deslizou o dedo por um grupo que nem sequer estava encadernado. Eram panfletos estreitos e finos que a sua mãe possuíra. Tirou-os da estante, espalhou-os em forma de leque no chão e passou o candeeiro em cima dos títulos.
Viu aquele que pretendia. Era um ensaio radical que se opunha ao casamento, escrito há trinta anos por uma famosa intelectual. Após a sua publicação, a autora vivera fiel aos seus princípios. Chegara ao ponto de rejeitar a perspectiva do casamento quando deu por si de esperanças do seu amante de sempre, Richard Drury.
Ele pegou no panfleto e, juntamente com o candeeiro, dirigiu-se à estante onde Easterbrook depositava as aquisições mais recentes da biblioteca. Retirou uma dissertação mitológica que ainda cheirava a pele nova.
Levou as duas obras consigo para os seus aposentos e começou a lê-los, para se preparar para se entender com Phaedra Blair.
CAPÍTULO 2
– Signora, não acho que devo pagar por estes aposentos, uma vez que, por minha vontade, nem sequer os estaria a utilizar.
Phaedra formulou desajeitadamente a sua objecção em latim e nas poucas palavras da língua napolitana que havia aprendido. Esperava que o seu tom de voz transmitisse mais fielmente o seu descontentamento a respeito da conta apresentada pela signora Cirillo, caso as suas palavras não cumprissem essa missão.
Recebeu em troca uma réplica longa e zangada, disparada num tom igualmente eloquente. A signora Cirillo pouco se importava com o facto de Phaedra estar retida nos seus aposentos contra a sua vontade. Nem gostava tão-só das implicações dos oficiais da guarda colocados à porta da sua hospedaria modesta, mas respeitável. Ela queria ser paga e acrescentara à revelia um suplemento para compensar a presença intrusiva dos oficiais da guarda junto dos seus outros hóspedes.
Não obstante o facto de se sentir extremamente tentada a dizer a esta mulher para levar a sua conta ao rei, Phaedra foi até ao quarto de dormir e trouxe de volta as moedas.
Fora um erro demorar-se nesta cidade antes de prosseguir em direcção às ruínas. Se o seu cárcere durasse muito mais tempo, ela não teria sequer dinheiro para comprar a passagem de volta para Inglaterra, quanto mais continuar a sua missão neste país. Esta deveria ter sido uma incursão bastante curta no estrangeiro. Afinal de contas, não viera na qualidade de turista. Ela estava aqui por um motivo e tinha questões prementes a tratar em casa depois do seu regresso.
Aplacada por mais uma semana, a signora Cirillo retirou-se. Phaedra voltou para junto da sua bagagem e analisou a sua situação. Abriu a sua maleta e retirou de lá um xaile preto. Desatou o nó atado a uma das extremidades, soltando o objecto guardado cuidadosamente no seu interior.
Uma grande jóia caiu no seu colo, e as suas tonalidades cintilaram na luz repleta de sombras do quarto. Figuras minúsculas requintadamente esculpidas elevavam-se num alto-relevo branco-pérola contra um fundo vermelho-escuro. Estas retratavam uma cena mitológica do deus Baco e a sua comitiva.
Este camafeu fora o objecto mais valioso que sua mãe lhe deixara, tendo sido adicionado ao testamento pelo seu próprio codicilo escrito à mão. Para acautelar o futuro da minha filha, deixo-lhe o meu único objecto de valor, o meu camafeu de ágata, uma antiguidade de Pompeia.
Phaedra não voltara a pensar naquele codicilo nos seis anos que se seguiram à morte da sua mãe. Tinha estimado o camafeu da mesma forma que estimara todas as recordações da invulgar e brilhante Artemis Blair. O seu valor tranquilizava-a em relação ao seu futuro financeiro, isso era verdade, mas esperava nunca ter de o vender. Agora, porém, aquela frase magnificamente redigida levantava questões que exigiam respostas.
Ela atou o camafeu à sua trouxa, devolveu-o à maleta e regressou à sala de estar. Abriu as persianas interiores da janela comprida virada a poente. Ao longe, a baía exibia um azul intenso e a ilha de Ísquia podia ser vislumbrada na névoa distante.
Um odor salgado entrou a rodopiar, fazendo esvoaçar alguns anéis do seu cabelo. A voz do seu oficial da guarda foi igualmente arrastada pela brisa. Ela inclinou-se na janela do terceiro andar para ver com quem conversava.
Viu uma cabeça com cabelo escuro posicionada à frente do elmo de metal e da bainha floreada do sabre do oficial da guarda. O cabelo elegantemente aparado que se agitava de forma romântica ao sabor da brisa pertencia a um homem muito mais alto do que o oficial da guarda. Os seus ombros largos pareciam estar cobertos por uma sobrecasaca com um aspecto dispendioso. As botas eram o tipo de calçado que se podia ver nos melhores pés de Londres. O outro homem que estava lá em baixo era inglês, e um cavalheiro, pelo aspecto da sua indumentária.
Phaedra esforçou-se por ouvir a conversa de ambos. A presença do seu conterrâneo dava-lhe um alento surpreendente, mesmo se este estivesse apenas a pedir direcções para sair das ruas secundárias do Bairro Espanhol.
Ela ponderou chamá-lo e implorar ajuda. Não estava certa sequer de que os ingleses residentes em Nápoles saberiam que ela tinha sido feita prisioneira. É claro que ela duvidava igualmente que se importassem com esse facto se fosse do seu conhecimento. Aqueles que a conheciam não a viam com bons olhos ou desejavam a sua companhia. Por norma, também não desejava a deles, mas a sua incapacidade em penetrar a sociedade inglesa local já dera origem a problemas mesmo antes do seu inesperado encarceramento.
As coisas não pareciam estar a correr de feição para o inglês. Os gestos do oficial da guarda faziam uma pantomina reveladora de um pesar reverencial. Tenho um dever a cumprir. Far-vos-ia a vontade se pudesse, mas…
O inglês afastou-se. Caminhou até ao outro lado da rua e deteve-se. Olhou para cima de sobrolho ligeiramente franzido, mas perfeito. Os olhos atentos e escuros esquadrinharam a fachada do edifício.
O coração de Phaedra rejubilou, e não só porque ele possuía o tipo de rosto que aceleraria o pulso de qualquer mulher. Ela conhecia este homem. Quem estava sob a sua janela era o famoso historiador, Lord Elliot Rothwell. Alexia comentara que ele fazia tenções de visitar Nápoles no Outono mas, aparentemente, viera mais cedo.
Ela inclinou-se para fora da janela e acenou-lhe. Lord Elliot fez-lhe um sinal quase imperceptível com a cabeça. Ela levou um dedo aos lábios e apontou para o oficial de guarda. A seguir, fez, por sua vez, uma pantomina com gestos, pedindo-lhe para se dirigir à parte traseira do edifício.
Lord Elliot retomou o caminho, comportando-se como se estivesse a estudar a arquitectura ao longo da rua. Phaedra fechou as persianas e correu até ao lado oposto do apartamento para abrir a janela que dava para o pequeno jardim das traseiras.
Lord Elliot demorou algum tempo a chegar lá. Por fim, viu-o a assomar pela entrada mais distante, através do portão que dava para uma viela fétida que separava as propriedades. Os seus movimentos não possuíam qualquer hesitação furtiva. Caminhou na sua direcção, alto e confiante, como um homem acostumado a fazer o que lhe aprazia. Mesmo sem o rosto angular extraordinariamente abençoado pela natureza com beleza, o seu porte descontraído e comportamento confiante constituíam obrigatoriamente uma visão impressionante.
Ela estava tão feliz por ver alguém conhecido que não se importou com o clarão crítico nos seus olhos escuros quando a viu. Vira um trejeito semelhante a par do sorriso lento de Lord Elliot no casamento de Alexia. Era a reacção de um homem que a achava vagamente cómica, ainda que desaprovasse a sua aparência, as suas convicções, a sua história, a sua família, o seu… ser.
– Miss Blair, estou aliviado por vos ver de boa saúde e disposição.
A saudação vinha acompanhada pelo mesmo sorriso lento.
– E eu sinto-me aliviada por vos ver a vós, Lord Elliot.
– Alexia deu-me o nome da vossa hospedaria e pediu-me para ver como estáveis, para se certificar de que não precisáveis de nada.
– Foi um gesto bondoso da parte dela. Lamento não poder receber-vos de forma adequada, tendo em conta a vossa visita.
– Creio que não me podeis receber de todo.
Aparentemente, Lord Elliot decidira que bastava de palavras de cortesia.
– Não tenho dúvidas que considereis o meu cárcere surpreendente e até chocante.
– Sou um homem que raramente se choca e raras vezes se surpreende. Todavia, admito que sinto alguma curiosidade. Só estais em Nápoles há algumas semanas. A maior parte das pessoas demoraria pelo menos um ano a acumular crimes suficientes para merecer tal punição.
Ele estava a fazer troça da situação? Nas presentes circunstâncias, considerou a sua apetência por motejos inapropriada.
– Não existiram quaisquer crimes, apenas um pequeno mal-entendido.
– Pequeno? Miss Blair, tendes um membro da guarda do rei à frente da vossa porta.
– Duvido muito que esteja aqui a ordens do rei. Foi um dos funcionários do tribunal que me fez isto. É um homenzinho torpe com demasiado poder e uma inteligência diminuta.
Lord Elliot cruzou os braços, postura que lhe conferia um ar reprovador e poderoso. Ela abominava quando os homens adoptavam essa atitude para consigo. Personificava tudo o que havia de errado com a metade da humanidade a que pertenciam.
– O oficial da guarda referiu um duelo – declarou Lord Elliot.
– Como é que eu poderia saber que estes homens são tão possessivos que tentam matar-se uns aos outros se uma mulher não faz mais do que falar com…
– Com espadas e punhais. Foi derramado sangue, confidenciou-me o oficial da guarda.
– Marsilio é um jovem artista. Não passa de um rapaz. Voluntarioso, mas muito doce. Não fazia ideia de que tinha interpretado mal a nossa amizade ao ponto de desafiar Pietro simplesmente porque dei um passeio na baía na sua companhia.
– Infelizmente para vós, Marsilio, o voluntarioso e doce rapaz é aparentado com o rei e saiu desse duelo quase morto. Felizmente para vós, o oficial da guarda afirma que vai sobreviver.
– Oh, graças a Deus. Mas devo dizer que os relatos aqui são amplamente exagerados. Segundo o que me foi dito, ele não ficou gravemente ferido, ainda que qualquer ferida seja um assunto sério num clima destes. Sinto-me deveras consternada com toda esta questão. Fiz questão de o dizer. Expressei o meu pesar e as minhas desculpas num inglês muito lento e igualmente em latim para que fosse compreendida, mas aquele intrometido, abominável e estúpido homenzinho não me quis escutar. Até me acusou de ser uma prostituta, o que passou dos limites considerados razoáveis. Expliquei-lhe que nunca recebi sequer um centavo seja de que homem fosse.
– Defendestes a vossa virtude e honra ou dissestes ao abominável e estúpido homenzinho que acreditais que as mulheres se devem oferecer livremente?
Ela não gostava da expressão profunda e sabedora patente nos seus olhos quando proferiu esta insinuação directa. Se não se encontrasse numa situação tão ridícula, far-lhe-ia saber que ela podia ser pouco convencional, mas isso não lhe dava autorização para ser grosseiro. Neste momento, porém, era necessária alguma diplomacia.
– Expliquei a minha convicção no amor livre, o qual não é o mesmo do que oferecer-se livremente, Lord Elliot. Tentei instruí-lo. Teria todo o prazer em fazer o mesmo por vós numa ocasião mais oportuna.
– Que oferta tentadora, Miss Blair. Contudo, suponho que as minudências filosóficas tenham sido desperdiçadas no seu carcereiro. Era preferível que tivésseis declarado ser uma cortesã. Esse conceito é-lhes familiar aqui. Conceitos radicais de amor livre, por outro lado, bem…
O seu gesto seco dissera tudo. O que esperáveis, mulher? Viveis fora das regras e até a vossa própria aparência convida a más interpretações.
Phaedra conteve novamente a sua reacção instintiva. Discutir só o levaria a afastar-se e ela desejava sinceramente que ele se demorasse mais um pouco. Não se dera conta da solidão que emanava do apartamento e da tristeza que o isolamento trouxera consigo. Só o facto de ouvir a sua própria língua transmitia-lhe alento.
– Achais que me irão libertar em breve?
O gesto seco foi repetido, mas agora surgia no lugar de um encolher de ombros.
– Aqui não existe constituição, nem tão-pouco qualquer noção de precedente como em Inglaterra. Nenhum direito codificado. Esta é uma monarquia antiquada. Podeis ser libertada amanhã, enviada de volta para Inglaterra, levada a tribunal ou podeis permanecer nesses aposentos durante anos à disposição do rei.
– Anos! Isso não é nada civilizado.
– Acho que não irá chegar a tanto. Porém, podem passar alguns meses até que o seu abominável e estúpido homenzinho perca o interesse – afirmou. Olhou de relance para a parte exterior do edifício e, de seguida, para a porta do jardim. – Miss Blair, não me posso demorar muito mais neste jardim, sob pena de vos fazer companhia na qualidade de hóspede dos oficiais da guarda do rei. Vou tomar as devidas providências para que vos seja entregue alguma comida e vou deixar um montante pelo aluguer do apartamento, que não duvido que estejais a ser obrigada a pagar. Vou pedir ao embaixador britânico para pedir a alguém que venha inteirar-se periodicamente da vossa situação.
Santo Deus, ele ia-se embora! Ela podia envelhecer nestas duas divisões, ou acabar por morrer à fome quando o dinheiro se esgotasse.
Phaedra não era uma mulher que dependia de homens para amparo ou protecção. E as palavras que Lord Elliot lhe dirigiu não lhe granjearam qualquer estima aos seus olhos. No entanto, a ambiguidade do seu futuro ajudou-a a pôr de parte a aversão natural a pedir o auxílio deste homem em particular.
– Lord Elliot – disse, fazendo-o deter-se depois de ter dado três passos na direcção do portão do jardim. – Lord Elliot, a minha situação e a minha posição social não interessam a diplomatas. Será que podeis considerar interceder a meu favor? Tenho a certeza de que o abominável homenzinho ficaria impressionado pelos vossos laços familiares e reputação de historiador. Se falásseis por mim, talvez isso me ajudasse.
A sua expressão era solidária, mas não encorajadora.
– Sou um filho mais novo. A minha posição social está muito diminuída aqui e a minha reputação possui muito pouca influência. Nem tão-pouco este tribunal tem motivos para me conceder quaisquer favores.
– Tenho a certeza de que obtereis uma audiência melhor do que eu alguma vez conseguiria. Pelo menos compreendeis a língua deles. Vi-vos a conversar com o oficial da guarda.
– Estou muito longe de ser suficientemente fluente neste dialecto para apresentar de forma adequada o vosso caso.
– Ficarei muito grata por qualquer tentativa que queirais empreender.
O cavalheirismo seria uma coisa do passado? Ela não acreditava nesses ideais, mas a estirpe deste homem, sim. Ela era uma donzela em apuros e este cavalheiro devia acorrer em seu auxílio, e não ficar parado no jardim, com um ar de quem preferia não ter reparado nela na janela por cima do oficial da guarda.
Ele ponderou o pedido. Ela sentiu o seu sorriso a reduzir-se a um esgar suplicante.
– Isto não é Inglaterra, Miss Blair. Se for bem-sucedido em vosso nome, podereis não gostar das condições que vos irão impor em troca da vossa liberdade.
– Obrigar-me-ei a acatar qualquer condição, embora espere sinceramente que tenteis impedi-los de me repatriarem para Inglaterra no imediato. Fiz uma viagem muito longa e preciso mesmo de… Quero visitar as escavações de Pompeia antes de partir. É um sonho meu.
Ele ponderou o seu pedido durante uma quantidade desmesurada de tempo. O suspiro audível que proferiu indicava que a sua decisão ia contra aquilo que o bom senso lhe ditava.
– Prometi a Alexia que velaria pelo vosso bem-estar, por isso farei tudo o que estiver ao alcance das minhas possibilidades. Encontrar o homem cuja ordem levou ao vosso encarceramento pode ser difícil. Sabeis qual é o seu nome? Preferia não andar a perguntar no tribunal pelo abominável e estúpido homenzinho. Ele pode ouvir essa descrição, o que não iria ajudar a minha missão, e, em todo o caso, esta aplica-se a um número assaz numeroso de funcionários de tribunal.
Ele cedera sob o peso da resignação ao seu sentido de dever, não devido a um desejo genuíno de lhe prestar auxílio. Ela estava demasiado desesperada para ser exigente a respeito dos seus motivos.
– Ele chama-se Gentile Sansoni. Que expressão foi essa? Conhecei-lo?
– Conheço a fama dele. A vossa autodefesa caiu em saco roto, Miss Blair. Sansoni não fala inglês ou sequer latim. E é um napolitano de gema, o que não são boas notícias.
Só mesmo Phaedra Blair para atrair a atenção de Gentile Sansoni, um capitão da polícia secreta do rei. Claro que, com o seu longo cabelo ruivo a cair solto ao longo das costas à luz do sol, com uma escolha bizarra de vestuário e a cabeça descoberta, provavelmente atraíra a atenção de toda a cidade de Nápoles.
Elliot ouvira falar do perseguidor de Miss Blair durante a sua última visita a Nápoles, três anos antes. A embarcação de Sansoni havia aportado numa maré de sangue em 1820, quando um fugaz governo republicano nesta terra fora brutalmente derrotado e a monarquia restabelecida.
Sansoni tinha a reputação de estar por detrás de desaparecimentos inesperados dos Carbonari, ou constitucionalistas, mas apreciava de igual modo abusar da sua autoridade indefinida de formas menos políticas. Sansoni não era o tipo de homem que ficaria impressionado com um cavalheiro inglês, e Elliot duvidava que visse com bons olhos uma tentativa de contornar a sua decisão ao interpor um recurso aos seus superiores.
Uma vez que Elliot não podia entender-se com Miss Blair enquanto esta permanecia sob prisão domiciliária, tomou de imediato a decisão de a tentar libertar. A hesitação que exibiu no jardim fora simulada, para colocá-la em dívida para consigo.
Elliot cedera igualmente à tentação ignóbil de compelir esta apologista declarada da independência feminina a implorar pelo auxílio de um homem. Miss Blair conseguia afrontar um homem pelo mero facto de existir e os seus instintos reagiram em conformidade.
O dever falou mais alto, porém, e no dia seguinte, ele dispôs-se a fazer o que estava ao alcance das suas possibilidades por ela. Sansoni não ficaria impressionado com um cavalheiro inglês, mas havia uma forte probabilidade de pelo menos escutar o que um capitão naval inglês teria para lhe dizer. O tribunal de Nápoles ainda venerava a memória de Nelson e Elliot suspeitava que Sansoni pensaria em Nelson como um irmão espiritual. O grande herói inglês havia ajudado outrora a suprimir uma tentativa anterior de estabelecimento de um governo republicano neste local.
Havia sempre barcos britânicos ancorados no porto de Nápoles e Elliot visitou um cujo capitão conhecia. Dois dias após ter-se encontrado com Miss Blair, acompanhou o capitão Augustus Cornell, portador de um esplêndido uniforme da marinha inglesa, ao longo de quilómetros de corredores palacianos para chegar até ao covil de Gentile Sansoni.
Como compete a um funcionário do tribunal que trabalhava nas sombras, Sansoni encontrava-se nas traseiras do edifício e num nível tão inferior que, em vez de mármore fino, as escadas exibiam pedra travertino à medida que desciam. Apesar da sua localização, Sansoni fizera-se rodear de mobiliário opulento suficiente para parecer importante. Granjeara um espaço adequadamente amplo para as suas ambições, mas o tecto baixo e ausência de janelas tornava-o cavernoso.
– Eu farei as despesas da conversa – afirmou Cornell. O seu rosto suave e pálido ostentava a formalidade austera comum a homens do seu estatuto militar. – Já lidei com ele e todo o cuidado é pouco.
– Comprendeis a língua? – inquiriu Elliot. O napolitano era significativamente diferente da língua falada em Roma ou Florença. Mesmo com as suas fortes derivações do latim, Elliot estava em desvantagem no que dizia respeito à fluência.
– Quanto baste, espero eu. O melhor é que vos deixeis ficar para trás. Servirei de intermediário, física e simbolicamente.
Elliot permaneceu junto à porta, como lhe fora pedido. Cornell atravessou toda a extensão da sala e aproximou-se do homenzinho de compleição escura sentado na grande secretária na extremidade oposta. A descrição de Miss Blair de Sansoni fora apropriada. Com efeito, este exibia um ar torpe e abominável e, neste preciso momento, muito desconfiado. As suas sobrancelhas pretas estavam quase coladas aos olhos amendoados de lince, tão comuns nesta cidade.
Foram oferecidos copos de vinho, fizeram-se brindes e desenrolou-se uma conversa. Algum tempo depois, Cornell retrocedeu na sua direcção.
– Receio que haja uma complicação – declarou tranquilamente. – O tal amigo de Miss Blair, Marsilio, o que ficou em pior estado no duelo, é um parente afastado do rei, mas apadrinhado pela família real devido ao seu talento artístico. Creio que também se trata de um jovem com o qual Sansoni espera casar uma parente sua, cimentando dessa forma a sua posição. Esse enlace é pouco provável, tendo em conta a linhagem humilde de Sansoni, mas este tornou o bem-estar do jovem numa missão pessoal – explicou. O capitão aproximou ligeiramente a cabeça e falou ainda mais lentamente. – Sou igualmente da opinião de que o rei não está ao corrente deste duelo. Mencionei aqui e ali o título de vosso irmão e suspeito que ele só continua a escutar-me pois receia que um marquês inglês tenha à sua disposição meios para levar o assunto directamente ao rei.
Um marquês provavelmente teria esses meios, mas passar-se-iam meses até a sua demanda ter êxito.
– Conseguis fazer com que Miss Blair seja libertada?
– Duvido. O duelo não foi a única ofensa. O rei detém uma colecção de arte e uma das salas é proibida a mulheres. Contém imagens antigas de natureza carnal. Miss Blair convenceu o jovem Marsilio a visitá-la. Sendo assim, a lista dos seus crimes inclui invasão criminosa de propriedade e predilecção por arte licenciosa. Sansoni afirma igualmente que ela é uma prostituta vulgar. Mau grado Nápoles seja célebre por permitir que tais mulheres mantenham esse mister, o facto de fazer gala disso em locais que a corte frequenta…
– Ela não é uma prostituta. Posso dar-vos a minha palavra. É um pouco estranha, sem dúvida. Excêntrica. Uma livre-pensadora, mas essencialmente honesta. Por certo, Sansoni já se cruzou com esse tipo de indivíduos. Explicai-lhe isso.
– O trabalho deste homem é subjugar livres-pensadores e ele fá-lo de bom grado. Todavia, tentarei mais uma vez.
Cornell atravessou mais uma vez a divisão. A conversa foi mais breve desta feita. Os olhos negros de Sansoni procuraram Elliot e examinaram-no atentamente.
Cornell regressou.
– Ele falou mais depressa desta vez e não estou a apanhar tudo. Seja como for, ele quer saber com que autoridade é que vós e a vossa família interferem nesta questão. Ele exige saber se sois algum familiar masculino ou se possuís qualquer outro estatuto.
Elliot não possuía qualquer estatuto, mas admiti-lo não lhe traria qualquer benefício.
– Dizei-lhe que ela é uma boa amiga da minha família. Easterbrook recebe-a como uma irmã – declarou. A mentira descarada nunca seria refutada. Christian faria o mesmo nas actuais circunstâncias. – Dizei-lhe que envidámos todos os esforços para a controlar, mas que ela partiu inesperadamente para Nápoles para escapar à nossa influência. Viajei até cá para velar pelo seu bem-estar e posso prometer que não ocorrerão mais problemas. E se ele der mostras de que pretende um suborno, pagar-lho-ei para a resgatar.
O diálogo entre Cornell e Sansoni foi mais animado desta vez. Sansoni esbracejava numa sucessão rápida de gestos. Quando Cornell voltou para junto de si com o seu relatório, tinha um ar vagamente preocupado.
– Receio ter havido um mal-entendido e corrigi-lo agora irá criar complicações imprevisíveis. Culpo a minha falta de fluência total na língua por esta malograda reviravolta nas negociações – confessou.
– Ele parece estar muito mais calmo e receptivo, não obstante esse facto. Qual foi o mal-entendido?
O rosto de Cornell enrubesceu.
– Creio que ele concluiu, sabe-se lá como, que vós sois o prometido de Miss Blair e que ela veio para cá para fugir de um casamento combinado que a vossa família aceitou devido a um dote bastante avultado. Ele acha que a seguistes para a levar para casa.
–Isso foi um mal-entendido extraordinário. Como é que conseguistes fazer isso?
– Não tenho a certeza. As palavras para família, irmã, dinheiro e fuga devem ter-se misturado e deram a entender mais do que eu pretendia – explicou Cornell e, com um suspiro, rodou nos calcanhares para ir rectificar o seu erro.
Elliot agarrou-lhe o braço, impedindo-o.
– Ele está disposto a libertá-la se não desfizermos a confusão?
– Sim, mas…
– Estais certo de que é isso que ele pensa?
– Não estou seguro da minha própria percepção da sua interpretação errada, mas…
– Nesse caso, não iremos desenganá-lo.
– Não me parece que essa seja uma atitude honrada.
– Não foram ditas quaisquer falsidades. Não é certo que ele vos tenha percebido mal – reforçou Elliot, fixando a mão no ombro de Cornell. – Vamos aceitar isto como uma dádiva da Providência e não pensar mais no assunto. Não se trata de um homem que é recebido pela comunidade inglesa local. Se ele interpretou mal as vossas palavras, nunca o saberá.
Cornell deixou-se influenciar.
– Se estais resolvido a isso, que assim seja. Acompanhai-me. Ele quer a vossa palavra de que ireis controlar Miss Blair enquanto esta permanecer neste reino. Ela deve manter-se sob a vossa autoridade constante e sereis considerado responsável por qualquer outro problema originado por ela. Estais preparado para fazer esse juramento?
Elliot assentiu com a cabeça. De seguida, atravessou a caverna ao lado do capitão Cornell e assumiu a custódia de Miss Blair das mãos do abominável e torpe Gentile Sansoni.