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Ficha Técnica

Título: Esc@ndalo

Autor: Therese Fowler

Design da capa: Neusa Dias

Design da capa: Neusa Dias

Imagem: Alamy/Fotobanco

Tradução: Susana Serrão

Revisão: Maria Cortes

ISBN: 9789892312156

Edições ASA II, S.A.

uma editora do Grupo LeYa

R. Cidade de Córdova, n.º 2

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Fax: (+351) 214 272 201

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PRIMEIRO ATO

Queria viver no teu amor como as algas vivem no mar,

Levada por cada onda à passagem, atraída por cada onda que se desfaz;

Queria desnudar a minh’alma dos sonhos que ela perfaz,

Queria bater com o teu coração a bater, queria seguir a tua alma a avançar.

– SARA TEASDALE

1

Nove horas antes de a polícia chegar, Anthony Winter estava, descalço e agitado, no estreito alpendre da casa onde vivia com a sua mãe. As tábuas pintadas estavam húmidas e frescas debaixo dos pés dele, mas mal deu por isso. Segurava na mão direita uma folha de ácer contra o sol que começava a irromper no horizonte. Na mão esquerda, o telemóvel. Olhou para a folha com os olhos semicerrados, maravilhado com o tom cor de laranja sanguínea, siderado e contente por a natureza poder fazer tal coisa a partir do que fora, poucas semanas antes, verde-esmeralda e, antes disso, verde-lima profundo e, ainda antes disso, o feixezinho apertado de um rebento na ponta de uma haste delgada, a ondular na brisa primaveril da Carolina do Norte. Ele sempre fora observador; nem sempre fora assim tão romântico. Amelia despertava isso nele. Despertava isso em todas as pessoas.

Quando ela atendera a chamada dele, a voz de Amelia estava lenta de sono. Era segunda-feira, o dia que ela tinha para dormir até mais tarde do que o resto da semana. De terça-feira a sexta-feira, levantava-se às cinco e meia para despachar os trabalhos de casa antes de ir correr cinco quilómetros, e isso antes do início das aulas na Ravenswood Academy, às 8:50. Às três da tarde, movimento – balé, jazz e dança moderna – em seguida, aulas de voz duas vezes por semana, às cinco; costumava haver ensaio de alguma peça depois disso, e a seguir, se as pálpebras não quisessem fechar-se-lhe como as persianas baças da sala de estar da professora de voz, Amelia poderia começar a fazer os trabalhos de casa. Porém, o mais certo era esgueirar-se da sua mansão espantosa e passar uma hora roubada com ele. Com Anthony. O homem (ela adorava chamar-lhe isso, agora que ele fizera dezoito anos) com quem ela queria passar toda a sua vida futura e depois, se Deus fosse bom para eles, a eternidade seguinte.

Ao ver Amelia e Anthony juntos, ninguém adivinharia que estavam destinados a qualquer outra coisa que não fosse um futuro encantado, possivelmente à grandeza. Talvez Amelia tivesse, como seu pai gostava de dizer, saído da barriga da mãe coberta de pó de estrelas. E talvez também fosse verdade o que a mãe de Anthony dizia: que o filho fora o primeiro prémio na lotaria cósmica, e que ela ganhara. Separados, eles eram bem tratados e adorados. Juntos, eram uma força da natureza, pequena mas possante. O amor faz isso às pessoas, por vezes.

Nessa manhã, nove horas e talvez cinco minutos antes de ser preso, Anthony deixou-se ficar no alpendre estreito com uma folha e um telemóvel nas mãos enregeladas. Amelia dizia, “Sonhei connosco” numa voz sugestiva que mexia com ele, por dentro e por fora. Ouviu a mãe descer a escada e fechou a porta da frente. Ao contrário do resto da escola, ela sabia dele e de Amelia; à sua maneira, não censurava o namoro. Não obstante, ele preferia ter privacidade nas conversas. Havia coisas que nem uma mãe benevolente queria ouvir. Coisas que ele não queria mesmo nada que a mãe soubesse.

2

Às 8:35 dessa manhã, Amelia estacionou o carro no parque dos alunos e deixou-se ficar com o motor a trabalhar, a manter o calor até Anthony chegar também. Ainda sorria ao recordar-se das palavras dele, ditas baixinho quando ela saíra do sono e entrara no dia. Ele citara Shakespeare:

Assim que se viram, olharam-se;

Assim que se olharam, amaram-se;

Assim que se amaram, suspiraram;

Assim que suspiraram, perguntaram um ao outro a razão;

Assim que souberam a razão, procuraram solução.

Ela sabia os versos de cor. Ela fizera de Rosalinda e ele de Orlando em Como Lhe Aprouver, a peça que a escola encenara no ano anterior. Embora as falas fossem de Rosalinda, acerca do amor da sua prima pelo irmão de Orlando, aquela era a história deles em verso, no fim de contas.

Assim que se olharam; amaram-se.

Amor à primeira vista. Amelia, com dezasseis anos quando se apaixonara, era uma aluna de secundário concentrada no que fazia cuja experiência com rapazes era ténue e limitada, e não quisera crer que aquilo lhe pudesse acontecer. Porém, e como qualquer pessoa que menospreza uma coisa e depois a vive com toda a força – um furacão, Deus, a visita de um fantasma – ela convertera-se ato contínuo. Com o coração tomado como o dos amantes shakespearianos, tornou-se a feliz evangelista do Amor Imediato – mas discretamente. Seletivamente, para que o pai não descobrisse e estragasse tudo.

Sempre que as amigas em quem ela mais confiava a ouviam contar que vira Anthony no palco em audições, que se apaixonara por ele ainda antes de ele proferir palavra, as raparigas acercavam-se dela como se Amelia fosse lume e elas viandantes enregeladas numa paisagem nevada desesperançada e erma. Ah, ser amada. Desfrutar do amor, amor verdadeiro, e não a variedade de pistola no bolso que lhes ofereciam com demasiada frequência. Pior: as ambições sórdidas alimentadas por pornografia online dos mais horrendos dos seus colegas ricaços, cuja mulher ideal era uma Lady Gaga supersexualizada em meias de rede e borlas nos mamilos. Não. Ser Amelia, a qual tinha Anthony, era o sonho que as raparigas alimentavam. Anthony era apaixonado. Inconformista. Talvez o melhor de tudo, Anthony era segredo.

Elas tinham a certeza de que o pai de Amelia, Harlan Wilkes, a mataria, ou mataria Anthony, ou talvez até os dois, se descobrisse que Amelia namorava não só com alguém que ele não aprovava, como também que planeava um futuro com Anthony Winter, a enganar o pai de todas as maneiras possíveis. As raparigas falavam do romance arriscado de Amelia com os semblantes embevecidos e longínquos, sorrisos e suspiros. Andavam atrás de Anthony como aias da corte, sempre respeitosas da primazia de Amelia mas, em simultâneo, sempre na mira de ele se poder virar para elas caso algo corresse mal.

Sentada dentro do carro, Amelia viu um carro após o outro – muitos deles marcas de luxo compradas num dos concessionários do pai – entrar no parque de estacionamento enquanto o ar quente lhe aquecia as pernas nuas debaixo da saia. Tirando pelo prazer de ver Anthony, ela não queria passar nem mais um dia em Ravenswood. Andava naquela escola, naquele campus estimado e arborizado, desde os quatro anos. Os edifícios e recintos, campos de jogos, o estádio, os professores e o pessoal, as salas de aula, o ginásio – parecia que nada mudara nesse tempo todo. Havia alunos novos todos os anos, sim, mas eram, na sua maioria, réplicas dos alunos anteriores, e modelos dos que viriam a seguir. Amelia sabia o termo que se aplicava aos seus sentimentos: ennui. E também sabia qual era a solução: evasão.

Assim que souberam a razão, procuraram solução. Atualmente, ela vivia este verso, embora tivesse tido dificuldade com ele da primeira vez que tinham ensaiado a peça. “A solução”, explicara a Professora Fitz, e encenadora, “para a razão dos suspiros deles. Oliver e Célia estão desesperados por dormirem juntos, e a solução é casarem-se no dia seguinte e tirarem daí o sentido, digamos”. Aquilo que Amelia e Anthony conspiravam era a solução para a vida embrulhada e atada com uma bela fita que o pai insistia fosse o futuro dela – futuro que não dava lugar para ninguém remotamente parecido com Anthony. Nada de intelectuais de espécie alguma (“Muita conversa e pouca ação”, eram as palavras famosas de Harlan Wilkes). Ninguém como um jovem alto e magro de cabelo preto com caracóis a emoldurarem-lhe o rosto em forma de coração, um rosto que sugeria Italiano, ou talvez Judeu ou, consoante a familiaridade que se tivesse com o mundo, Jordano. Anthony podia ser qualquer um destes, podia interpretá-los a todos – e isso, pensava Amelia, era parte da sua excelência em palco.

Kim Winter, a sua mãe ruiva de pele clara, e uma das professoras preferidas de Amelia, só lhe transmitira os olhos cor de amêndoa; o resto das feições de Anthony era contributo de seu pai, o único contributo que o homem fizera antes de abandonar a mulher e o filho por nascer, alegando ter sido um erro casar e outro ainda maior ser pai. Felizmente, Anthony herdara a capacidade que a sua mãe tinha de passar à frente – o que não significava que Kim e Anthony não se ressentissem disso. Quando Anthony ficava taciturno, por vezes falava de como gostaria de mostrar ao pai ausente o quanto se sabia desenvencilhar sem ele, o quanto a rejeição do pai não fora uma perda mas sim um favor, o quanto se revelara útil para ele, como o sangue andaluz responsável pela sua aparência.

A mãe, nascida no estado de Nova Iorque, onde Anthony vivera até aos dez anos, descendia de Judeus Russos, Irlandeses Católicos e Canadianos do Quebeque, com uma dose de Índios Iroqueses algumas gerações atrás. O sangue importava, mas não era e não se devia deixar que fosse tudo. “On est tous dans le même bain”, costumava ela dizer aos alunos de Francês, Amelia incluída. Estamos todos no mesmo barco. Do mesmo modo, Kim recordava-lhes que “As fronteiras são coisas arbitrárias, feitas pelos homens”. E o lema de que Amelia gostava mais: “Questionar a autoridade”. Era o tipo de mote de que Amelia precisava, para a ajudar a ter coragem de viver a sua própria vida.

A mãe de Anthony era popular entre os alunos de Ravenswood, os quais se inscreviam nas suas aulas de Artes Plásticas ou Francês mesmo que não tivessem grande jeito para qualquer um dos temas. Amelia, a caminho da escola para as conferências de pais, professores e alunos do primeiro trimestre do ano anterior, contara isso aos seus pais.

– Não é que ela dê notas boas facilmente, ou que não mande trabalhos de casa. Ela é... fixe.

Isto algumas semanas antes de Amelia conhecer Anthony, numa altura em que só ouvira falar dele, por vezes em termos desfavoráveis. Ele começara na preparatória, quando a escola contratara a Professora Winter, e era um mistério para quem, como Amelia, já lá estava desde sempre. Os colegas dela não sabiam bem aonde o encaixar; ele não se integrava em nenhum dos grupinhos. Não era atleta. Não era betinho. Não era agarrado. Não era gótico. Constava que era inteligente, mas sossegado – embora não fosse marrão. Era mais o tipo de jovem que se via num anúncio da Apple. As pestanas eram tão espessas e pretas que até um olhar inocente poderia parecer lúbrico. Os alunos não o sabiam rotular, e preferiram descartá-lo – as raparigas com pouca convicção porque, afinal, ele era perdido de bom; não havia outra maneira de o dizer. Quando Amelia finalmente o viu, o amou, o conheceu, categorizou-o simplesmente como Anthony.

De volta da escola depois de conversar com os professores de Amelia, Harlan Wilkes dissera:

– Não é nada contra ti, carochinha, mas não percebo o que tem a Professora Winter de especial.

– Pareceu-me muito simpática – dissera a mãe de Amelia, e virou-se para ela, sentada no banco de trás.

– Reparei que não usa aliança.

– Ela diz que quer manter as opções em aberto. – Amelia admirava a atitude positiva da Professora Winter quanto a ser solteira e esperava inspirar-se nela. Sim, Amelia só tinha dezasseis anos na altura, e estava muito longe de poder ser tida como solteirona (se é que usavam o termo na atualidade), mas estava praticamente convencida de que homem nenhum gostaria dela assim que lhe conhecessem os defeitos. Pensava que mais valia aceitar a sua sina. Certas coisas não se conseguiam alcançar, por mais determinação e esforço que houvesse.

O pai perguntara:

– Manter as opções em aberto? Com aquela idade?

– Ela não é velha. Tu és mais velho do que ela – dissera Amelia.

– E sou casado, e estou casado há vinte anos.

– Pois eu acho-a ótima. – Nessa noite, Kim Winter trajava umas calças largas cor de beringela e uma camisola de gola alta creme, com um lenço vibrante de seda moiré à volta do pescoço. Amelia admirava tudo nela, até o estilo.

O pai dissera:

– Pois, ela é ótima, se “ótima” for uma professora de artes plásticas solteira, de meia-idade, que ganha o quê, trinta mil por ano. – E olhou para Amelia por cima do ombro.

– E ainda te admiras que eu te incentive a tirares Gestão.

Ela não se admirava nada. Sabia que ele simplesmente não compreendia. O mundo dele, o negócio de vender carros importados, não tratava de arte nem beleza nem magia. Ele fazia-lhe as vontades, claro, mas só porque as considerava atividades extracurriculares, ao mesmo nível do atletismo ou do Grémio de Teatro, ou do Clube de Francês. Ela teria de esperar até estar sozinha, independente, para viver a vida que queria. Seria um privilégio ficar como a Professora Winter, se tal se traduzisse em fazer as coisas de que gostava.

No ano que passara desde essa noite, não mudara nada na maneira de pensar do pai. Todavia, mudara na de Amelia e, assim que fizesse dezoito anos em fevereiro, ela diria aos pais exatamente em que aspetos mudara. Contaria da ideia de ir com Anthony para Nova Iorque, onde os dois, se conseguissem entrar, frequentariam o curso de Teatro na Universidade de Nova Iorque e, em simultâneo, tentariam fazer carreira na Broadway. Ansiava dizer-lhes agora; custava-lhe manter sentimentos e ideias em segredo. Sabia, porém, qual seria a reação deles, pelo que a melhor estratégia seria adiar até ser fait accompli, facto consumado.

Amelia viu o Mini Cooper velhinho de Anthony atrás do Infiniti novinho em folha de Brandi Wilson, e desligou o motor do seu carro. Cameron McGuiness, a amiga mais fiel desde os primeiros dias no jardim-escola, viu-a do outro lado do parque e acenou. Cameron sabia que não era para fazer conversa de manhã, sabia que os poucos minutos que Amelia teria com Anthony antes das aulas eram um bem de primeira necessidade. Amelia encostou a cabeça ao apoio forrado a pele e suspirou. O verão nunca mais chegava.

Se lhe fizesse a vontade, o pai casá-la-ia no sábado a seguir à formatura (de qualquer faculdade sulista de topo mas, de preferência, da Duke) num enorme casamento branco que incluiria, claro, um vestido branco estupidamente caro, complementado por um anel de noivado com diamantes tão pesados que até lhe custaria levantar a mão esquerda. Um anel que lhe teria sido oferecido com a devida antecedência, vários meses antes (ou seja, mais de nove) por uma versão século XXI do Ken da Barbie. Ken usaria um fato feito à medida, comprado com o ordenado substancial que auferia como quadro superior em qualquer campo. Não haveria carreira na Broadway, apenas bilhetes para a Broadway – cenário de tortura para Amelia, a qual já imaginava a inveja lancinante que sentiria sentada no público a ver mulheres viverem o sonho que ela fora demasiado pusilânime e obediente para tentar realizar. O seu futuro poderia ir por esse caminho com tanta facilidade, se não fosse Anthony.

O sorriso de Amelia, esmorecido com aqueles pensamentos negativos, reapareceu quando ela viu Anthony a dirigir-se ao seu carro. Com aquele cabelo farto, os lábios cheios, a presença de espírito, a autoconfiança tranquila, ele era o seu salvador. Ele fazia-a acreditar que ela devia, não só, querer um futuro só seu quando chegasse a altura, mas também que o faria. O pai não era dono dela. Homem nenhum seria dono dela. Fizesse ela o que fizesse, fosse ela aonde fosse, seria tudo à sua própria maneira.

– Olá, linda – disse Anthony quando Amelia abriu a porta e saiu do carro. Ela sorriu. A emoção de o ver, o amor que ele lhe tinha, a ela e a mais ninguém, alguém cuja infância tivesse sido passada a esconder um qualquer defeito vergonhoso, encantavam-na. Ele olhava-lhe para a boca daquela maneira que a fazia sentir borboletas no estômago, um beijo sem contacto. A segurança primeiro, brincavam eles muitas vezes um com o outro. Oficialmente, publicamente, não passavam de bons amigos que comungavam do gosto pelo teatro, sushi e pela música. Oficialmente, andavam ocupados demais para namorar – com quem quer que fosse, de todo. “Não faltará tempo para isso depois”, diziam sempre.

Amelia imaginou o beijo (os lábios macios dele, o calor da sua boca) e perguntou:

– Não podemos simplesmente fugir? – E olhou para a Upper School, o edifício de pedra branca a brilhar ao sol da manhã. Entravam adolescentes aos magotes, trajados com as fardas de cores azul-marinho, branco e cinzento. Os alunos tinham alguma margem de manobra com a farda da escola: saia, calças ou calções de bom corte; camisa, camisola de bom tricô ou gola polo; decote à barco, em V ou casaco de lã – em qualquer combinação de azul, branco e cinza (mas sem branco no fundo entre o Labor Day e o Memorial Day). Ora, Amelia sentia que a mera exigência de usar farda já era uma espécie de tirania. Liberdade de expressão, era o que ela mais desejava. Liberdade de expressão de toda a espécie.

– Quem é que precisa disto? – Indagou. – Podemos tirar o diploma em Nova Iorque.

Anthony assentiu com um ar sério exagerado.

– Pois claro, nem a secretaria da UNI dá por nada.

– Nem devia dar – continuou ela. – Se ao menos lá pudéssemos ficar, depois das avaliações. – Iam os dois a uma audição, fazia parte da candidatura à Escola de Arte Tisch, da Universidade de Nova Iorque. Tinham marcado para a terça-feira antes do Dia de Ação de Graças, quando já estariam na visita de estudo a Manhattan com o Grémio de Teatro. Era uma viagem acompanhada por adultos mas, como Amelia e Anthony eram seniores, tinham tempos livres para irem às compras ou passear ou, no caso vertente, encaixar uma manhã na UNI. Anthony não precisara de esconder o plano da sua mãe, e Amelia invejava-o. De que valiam os privilégios com que ela crescera se ninguém a deixava ser genuína na sua própria casa? Que bom seria viver cada dia com a maior honestidade.

– Faltam sete meses para a formatura – disse Anthony. – Nós conseguimos. Depois já ninguém pode ralhar que somos irresponsáveis ou que estamos a estragar o nosso futuro.

– Tu não conheces o meu pai.

Ela contara tudo a Anthony, claro, e este vira-o, de relance, uma ou duas vezes, mas ocorria a Amelia se Anthony a acharia exagerada. Harlan Wilkes, empresário, filho de adolescentes que viviam num parque de caravanas em Robeson County, homem que se guindara tão alto que ninguém na Carolina do Norte poderia pensar em automóveis importados sem se lembrar do seu nome, era tido como bondoso e generoso, justo e honesto em todos os negócios. E era, mas também era implacável, pelo menos no que tocava aos limites e à orientação que dava à sua única filha, querida, mimada, protegida. Harlan esperava completamente que Amelia seguisse o caminho que ele lhe ditara. Durante a maior parte da sua vida, ela deixara-o pensar assim; apesar dos seus sonhos, ela também esperara o mesmo de si. Até Anthony chegar.

Este disse:

– Bom, está bem, tu estás a estragar-lhe o futuro a ele seja como for. Vamos garantir que não estragas o teu.

– Nem o teu.

Amelia imaginou-os como cabeças de cartaz, juntos, no Gershwin Theatre para casa cheia. Anthony não era grande tenor no que tocava aos critérios da Broadway, mas o que lhe faltava em voz sobrava em presença. Ele era uma pantera, esbelto, esguio, de olhos oblíquos. Na visão dela – visão com óculos cor-de-rosa na opinião dos adultos – ele não teria problema algum em encantar diretores de casting e o público até lhes convencer os ouvidos a adorarem a voz junto com a presença, tal como a mãe de Amelia ficara encantada ao ver Pierce Brosnan em Mamma Mia!, o filme.

Anthony disse:

– Sete meses.

– Duzentos e dez dias.

– Mais coisa, menos coisa. Anda lá, vamos despachar já o de hoje.

Na segunda hora, toda a Upper School ia ao auditório para Composição do Caráter. A qualidade do mês era a Fiabilidade. Amelia pouco ligava à mulher com ar sério e frágil que estava no palco, numa palestra sobre o valor da confiança. Quem dentre eles não tinha já assistido àquela apresentação? Mais importante para Amelia era o computador portátil esquecido no balcão da cozinha, por causa dos seus devaneios matinais. Precisava dele para a apresentação de Ciências da Terra na quinta hora, um projeto em PowerPoint que lhe levara três semanas a elaborar. Mandou um SMS à mãe a pedir-lhe que deixasse o computador na escola o mais depressa possível, e depois ficou ali a fazer sinais de linguagem gestual com a mão esquerda, a tirar fotografias com o telemóvel e a mandar uma após outra a Anthony. Soletrou S-E-C-A, e depois B-E-I-J-O, e à sua volta muitos outros alunos faziam o mesmo, a mandarem SMS com queixinhas ou piadas ou planos de almoço. Não, não deviam usar os telemóveis, nem outros artigos eletrónicos, nas aulas, mas sabiam que se conseguiam safar na Composição se fingissem que estavam a tomar atenção. Até alguns professores sacavam dos aparelhos para verem emails ou acompanharem as notícias. Os professores mais rigorosos confiscavam tudo o que fosse eletrónico durante as aulas, e a política da escola consistia em reter todos os artigos confiscados até ao final do período. No entanto, a escola recebera tantas queixas de pais que contavam com um acesso contínuo aos filhos que a política não era aplicada; os eventuais aparelhos confiscados eram devolvidos ao final do dia.

Anthony escreveu em resposta: “-S” e Amelia sorriu. Beijos. A seguir à resposta dele veio a da mãe: Olá. Tou Durham reunião. Levo-to até ao almoço, ok? Amelia respondeu Ok, obg. A rapariga à direita de Amelia, Bella Giordano, deu-lhe uma cotovelada e soltou um silvo, “Braddock”. O reitor da Upper School descia a coxia na direção delas. Ocorreu a Amelia que Anthony talvez tivesse razão ao dizer que havia caso entre Braddock e a mãe dele. Ora lá estava, pensou ela, uma coisa esquisita, mas boa; fariam um casalinho perfeito. Como ela e Anthony. Destinados. Amelia apertou o telemóvel nas duas mãos e suspirou. Sete meses, pensou. Duzentos e dez dias, mais coisa, menos coisa.

A espera – pela formatura mas, mais do que isso, pelo Futuro – era extenuante. Cada dia era como andar a vau à espera de um navio que mal se via no horizonte. O tempo passava tão devagar que Amelia podia jurar que a Terra parara a sua rotação – possivelmente a pedido do seu pai. Não havia dia nenhum em que Harlan Wilkes não lamentasse que No ano que vem por esta altura, acordas num dormitório na Duke, o que ele desconhecia que não seria nada assim mesmo que ela entrasse, ou Vai ser demasiado sossegado sem ti por cá, apesar de ela já não passar quase nenhum tempo em casa, e de ele raramente lá estar ao mesmo tempo que ela.

Ele queria que Amelia tivesse outra vez dez anos, a sua princesa adorada e amorosa que acenava no banco de trás de um Mercedes descapotável quando passavam pela baixa de Raleigh no desfile de Natal. Sentia saudades da pré-adolescente que fora sua companheira na “estrebaria”, que o ajudara a lavar e encerar qualquer descapotável que eles levassem num giro nesse dia. Havia Bugattis, Triumphs, um Austin Healey, um Bentley, um Morgan, e um Rolls-Royce Silver Wraith de 1947, que ele só conduzia de manhã cedo em dias com estrada seca e sem vento. Embora Amelia não se interessasse pelos carros propriamente ditos, adorava ouvir o pai contar histórias de infância, do quanto era pobre, do quanto sonhara em um dia ser rico e poder comprar uma pickup Chevy novinha em folha.

– E agora olha só para nós – dizia ele, a polir o para-choques preto do Wraith até ficar um espelho que refletia a sua satisfação e o sorriso orgulhoso dela. Nessa altura, ele era o único homem no mundo dela.

A expressão “Menina do Papá” inspirara-se em filhas como Amelia, as quais não podiam saber que, pelo simples facto de crescerem, iriam dar um desgosto aos pais. Se Amelia soubesse que um homem rijo também pode ser frágil, poderia ter tido ainda mais cuidado para o proteger.

3

Nessa segunda-feira, oitenta e sete minutos antes de chamar a polícia, Harlan Wilkes saiu do escritório às onze, com tenções de trabalhar em casa um pouco e depois, se o tempo se aguentasse, ir à carreira de golfe tentar ver-se livre do gancho que, ultimamente, lhe mantinha a pontuação acima de noventa de cada vez que ele jogava. Sheri devia andar na rua, como de costume. Ele não acompanhava a agenda dela, cheia de atividades que iam do ginásio ao voluntariado na escola de Amelia, na igreja, no canil da comarca e na Cruz Vermelha. Harlan orgulhava-se de Sheri, a qual vinha do tipo de família sulista que ele desejava ter tido, assim como se orgulhava da filha atenciosa e realizada que eles tinham. Muitas esposas passavam o dia a gastar o dinheiro que os maridos labutavam para ganhar. Sheri, não. Era decoradora de interiores quando eles se tinham conhecido – ele contratara-a, na verdade, para transformar a sua primeira casa em algo que se parecesse com um lar. Ela era incansável a trabalhar. Depois de Amelia nascer, Sheri fez carreira a gerir a vida da filha – encontros para brincar e escola e acampamento e aulas e afins. Agora que Amelia se revelara capaz como os pais e admirável gestora da sua agenda, Sheri arranjara maneira de dedicar o seu tempo a quem precisasse.

Harlan dava tudo às suas meninas. Toda a gente o dizia, e agradava-lhe que assim fosse. Orgulhava-se de, graças a muito trabalho, horas sem fim e, no início, alguma subserviência, se ter guindado a uma posição na vida em que podia dar tudo – a Amelia, a Sheri, até ao cão, uma cadela Labrador cor de mel chamada Buttercup. Buttercup já estava a ficar branca em redor dos olhos e no focinho, e a presença de um coelho já não a levava a fazer mais do que levantar-se. Não obstante, Harlan dava-lhe regularmente os melhores restos da mesa, e levava-a para o trabalho nos dias em que não poderia sair cedo. Ela era a sua melhor companheira, ao estilo simples e descomplicado que só um cão poderia ter.

Toda a gente dizia, também, que Amelia e Harlan se pareciam muito em termos físicos, embora menos nos gostos. Ele era alto, e Amelia também, ambos tinham cabelo castanho-escuro com laivos ruivos que, ao sol, brilhavam como o vinho que Harlan roubara numa Stop-n-Shop quando era pequeno. Tinham os dois narizes aquilinos e sobrancelhas expressivas, e olhos azuis-claros que, no caso de Amelia, brilhavam com polvilhos de ouro. O queixo de Harlan era mais anguloso, e a testa aumentava com o cabelo grisalho a recuar, mas via-se bem de quem Amelia era filha. Parecia-se tanto com Harlan que Sheri costumava contar a anedota:

– O que disse a loira quando descobriu que estava grávida? “Ai, ai, espero bem que seja meu!”

Amelia parecia-se com Harlan, mas ele dizia sempre que ela saía à mãe no temperamento: bondosa, generosa e tolerante com os defeitos dos outros. Simpática demais por vezes, pensava ele, mas não se podia queixar, sendo tão bafejado por essa sorte. Ao contrário de Amelia, Harlan não sabia cantar e, fora do duche, nem tentava. Também não sabia dançar e nunca seria ator, isso de certeza. Porém, a esposa dizia que ele tinha o corpo de um deus – um deus menor, ironizava ela, nos tempos em que os espécimes masculinos ideais eram homens como Stallone e Schwarzenegger. Sheri dizia ainda que Amelia tinha o corpo de um anjo.

O facto de Amelia ter dezassete anos era a única coisa que perturbava Harlan. De resto, era o feliz dono do seu universo de automóveis importados – seis marcas agora: Honda, Maserati, Toyota, Rolls/Bentley, Mercedes/VW, BMW, à espera de mais. Os dezassete eram os piores anos de todos os anteriores, estar tão perto da idade em que a lei permitiria a Amelia tomar decisões próprias e tratar de si mesma. Parecia a Harlan uma ideia tola. Aos dezoito anos, ela precisaria que ele olhasse por ela mais do que nunca. Era uma sorte, pensava, que ela já compreendesse isso. Amelia ouvia os conselhos do pai, obedecia às regras e ficava-lhe grata pelo esforço que ele fazia em garantir que ela tivesse tudo o que precisasse (e a maioria do que quisesse) na vida.

Os empregados de Harlan – desde comerciais a oficinas, entre todos os cargos – admiravam a relação que ele e a filha tinham. Pelo que ele ouvia, não faltavam miúdos preguiçosos ou mimados, caprichosos, refilões, e até problemáticos. Harlan conhecia dois que tinham sido presos por posse de droga, alguns acusados de condução ébria, uma que engravidara aos quinze anos – colega de Amelia, a qual tivera gémeos que se recusara a dá-los para adoção. O pai tinha vinte anos na altura, e fora preso por violação. Harlan abanou a cabeça, a pensar nisso. Que trapalhada fora aquilo tudo. Amelia tinha as suas coisas – miúdas, diziam as pessoas a abanarem a cabeça também, adoram dramas, e claro que Amelia também os tinha. Mesmo assim, mesmo que ela fosse teimosa por vezes, ele agradecia a Deus todos os dias pela sua sorte.

Harlan entrou no acesso e estacionou debaixo daquilo a que o empreiteiro chamara uma porte cochère, uma estrutura de passagem como uma ponte que dividia o jardim da frente do pátio, onde o acesso continuava e se dividia em dois. A estrutura fazia parte da casa; a “sala da ponte”, dissera Amelia aos seis anos, quando vira o esqueleto da casa. Ficara encantada quando vira que a estrutura saía dos quartos e ia até à sala dos brinquedos. Tinham mandado fazer a ponte e esta última sala com fiadas de janelas compridas em ogiva, e um designer tinha decorado tudo como um castelo por dentro, incluindo “archotes” a gás e piso empedrado. Os olhos arregalados e a admiração de Amelia quando ele a levara a ver a casa acabadinha e esse espaço tinham-no comovido imenso. Ao deitar nessa noite, Harlan encostara a cabeça ao ombro de Sheri e chorara. Nos quarenta e sete anos que vivera até então, nunca se sentira grato a um Deus que fizera dele um saco de pulgas esquelético, efetivamente órfão de pais adolescentes, foliões e ignorantes, mas depois lhe dera a força e a presença de espírito para vir a ser um homem capaz de fazer aquilo pela sua filha.

Agora entrava para o Maserati GranCabrio e sorria ao ouvir o baque da porta a fechar-se. Os últimos dois anos tinham sido difíceis nas vendas de topos de gama, mas aquele carro, bom, aquele entusiasmava os executivos de grandes empresas que tinham carteiras recheadas e estavam ansiosos por despoletar a retoma e terem um belíssimo aspeto entretanto. Carro de família, o primeiro verdadeiro quatro lugares da Maserati. Ele conduzia-o só para poder atrair esses potenciais clientes, pô-los à procura do concessionário.

– Hã? – Galhofou Harlan a dar palmadinhas no capô do carro. – Um bocadinho melhor do que o chaço do Cutlass. – O primeiro carro que tivera, com os primeiros duzentos dólares que ganhara, a vender erva. Amelia não sabia essa parte da história; quase ninguém sabia. Ter erigido o seu império com início na venda de marijuana aos putos seus amigos agarrados eram informações que devia guardar para si.

Buttercup foi recebê-lo à entrada das traseiras. Harlan agachou-se para lhe coçar as orelhas e dar um beijinho no focinho. Depois largou as chaves no balcão, ao lado do portátil de Amelia – um daqueles Macs espantosamente leves, fino como um bloco de notas. Tinham-no comprado para reduzir o peso que ela já carregava na mochila dos livros. Sheri lera um romance de Richard Russo em que uma filha adolescente andava assoberbada com a mochila pesadíssima, e ficara ralada com Amelia. Harlan não era grande leitor, mas Sheri aprendia bastante com os livros, e ele admirava-a por isso. Quanto ao Mac, bem, era uma bela amostra de tecnologia, e Harlan adorava essas coisas.

Pegou numa garrafa de cerveja fresca e levou Buttercup para o quintal. Os áceres, carvalhos, nogueiras e estoraques que abundavam e rodeavam aquele hectare de terreno brilhavam com as cores de novembro. As faias, sempre atrasadas, começavam agora. Que diferença do Ohio desfolhado, onde ele acabara de passar uma semana a visitar fábricas da Honda. Verdade seja dita, detestava estar longe tanto tempo. Oh, Sheri safava-se muito bem sem ele. Amelia também. Se tivesse de admitir, Harlan diria que era ele quem ficava solitário e taciturno quando andava em viagem. Estar longe roubava-lhe a âncora. Num aluguer de automóveis, ou no passeio de qualquer cidade, ele era apenas um tipo qualquer. Era com demasiada facilidade o miúdo rafeiro que vivera numa caravana ferrugenta, que comera cereais velhos a pensar nos pais que nunca mais curavam a ressaca e voltavam para casa.

O telemóvel tocou e ele atendeu:

– Fala Wilkes.

– Sr. Wilkes, fala Parker Finch. Que tal está a correr o dia?

– Parker, rapaz! – Harlan estava à espera da chamada. – O que é que tem para mim?

– Bom, tenho o prazer de dizer que vamos conseguir dar-lhe o crédito. Com as garantias que o senhor deu, a gerência não se importa nada de adiantar o capital.

Harlan sorriu. A discoteca country western que ele queria comprar parte era um sonho que remontava aos primeiros tempos a vender automóveis. Nessa altura, após longas horas sem vender nada a ninguém e a desesperar por nunca mais arrancar com a empresa, Harlan costumava ir beber umas cervejas a um barzinho gerido por um tipo chamado Clem Carroll. Clem e Harlan passavam o tempo a falar da discoteca que Clem queria abrir um dia. Perderam o contacto um com o outro mas, dois anos mais tarde, Clem entrou no concessionário Toyota de Wilkes para comprar um Tundra, e para ver se Harlan queria ir beber uma cerveja e ser seu sócio nessa discoteca. Harlan propusera que, quando Clem arranjasse 70% do que precisava para se lançar, ele adiantaria o restante. Chegara o momento.

Harlan perguntou a Parker:

– Você tem um par de texanas, não tem?

Parker respondeu:

– Diga-me só quando é que a discoteca abre, que eu apareço com elas calçadas.

– Combinado. – Nessa altura, provavelmente em Julho, Harlan estaria pronto a apresentar Parker a Amelia. Com Parker a trabalhar na agência de Chapel Hill e Amelia não muito longe na Universidade de Duke, teriam a combinação perfeita para namorarem, o que, com o tempo, poderia muito bem levar a que o rapaz ficasse na família. Esta ideia agradava sobremaneira a Harlan; Parker era exatamente o tipo certo para continuar a dar a Amelia a vida a que ela estava habituada, a vida que ela merecia. O tipo de homem capaz de impedir Amelia de acabar como acabara a mãe de Harlan.

Depois de desligar a chamada, Harlan levou os dedos à boca e assobiou à cadela.

– Anda lá – disse quando ela voltou. – Vamos comer qualquer coisa.

Dentro de casa, Harlan pegou numa caixa de salada de batata, a receita especial de Sheri com batatas de casca vermelha, e sentou-se ao balcão da cozinha. Pura e simplesmente por curiosidade, abriu o portátil de Amelia. Apareceu uma caixa no meio do ecrã preto, a pedir palavra-passe. Claro que ela teria protegido o aparelho; caso se esquecesse dele na escola ou em casa de uma amiga, não quereria que lhe mexessem nos ficheiros e tal. Harlan ia fechar o portátil, mas depois abriu-o outra vez.

B-U-T-T-E-R-C-U-P, introduziu. Amelia adorava a cadela como uma irmã que nunca tivera, embora Harlan e Sheri tivessem tentado. Sheri levara outros três bebés quase até às vinte semanas, e quase se esvaíra em sangue ao abortar o terceiro, e o médico dissera que já chegava, e laqueara-lhe as trompas.

Não, a palavra-passe não era Buttercup.

A pensar no sentido de humor de Amelia, Harlan tentou P-A-L-A-V-R-A-P-A-S-S-E. Também não era.

Harlan esfregou a boca, bebeu um gole de cerveja, e tentou C-U-R-R-I-T-U-C-K, a rua onde ficava a casa de praia deles, em Bald Head Island. Amelia adorava a casa, estava sempre ansiosa pelo dia em iam para lá passar o verão, todos os anos – pelo menos, costumava ser assim. No verão anterior ela tinha ido de má vontade, e passara dias amuada antes de se render à rotina da vida na ilha. Harlan ralara-se, mas Sheri dissera-lhe que a deixasse em paz.

– Ela tem dezassete anos. Isto é muito isolado. Monótono, comparado com a agenda habitual dela e a escola. Os amigos são a vida dela.

Terceira tentativa. O Mac informou-o educadamente de que ele tentara iniciar sessão demasiadas vezes sem sucesso, e que tentasse mais tarde. Harlan fechou o aparelho e sentiu-se ligeiramente envergonhado. A família tinha uma dinâmica baseada no respeito mútuo e ali estava ele, a tentar espreitar as coisas particulares da filha, tal como se lhe entrasse no quarto e tentasse arrombar uma gaveta trancada.

Aliás, ele já o fizera, quando Amelia tinha onze ou doze – não por desconfiar de alguma coisa, mas por querer conhecer, conhecer mesmo, a menina em que ela se tornara – pela combinação, pensava ele, da puberdade e de estar quase a ultrapassar finalmente a gaguez que os transtornara a todos desde os cinco anos dela. A gaveta tinha os tesouros típicos das raparigas daquela idade: pedras bonitas, flores e folhas secas, poemas que ela copiara ou escrevera; Harlan, com a pouca instrução de liceu que tinha, não saberia distinguir. Havia um programa da primeira viagem que eles tinham feito a Nova Iorque, para verem O Rei Leão. Dentro do programa estava uma lista cuidadosamente escrita, intitulada: “Passos para o Sucesso”. Amelia só enumerara três: 1 – Treinar canto; 2 – Ver mais teatro; 3 – Perguntar ao Papá dos seus segredos. E Amelia seguira aquele plano à risca; era mesmo menina do Papá.

Tornou a abrir o portátil. O ecrã da palavra-passe reapareceu e deu-lhe outra hipótese. Harlan ficou a olhar para o retângulo com o cursor a piscar, e tentou o melhor que pôde entrar na cabeça de Amelia. Ora lá estava o problema, não estava? Ele não podia lá entrar; por isso é que estava ali sentado, um rubor a subir-lhe pelo pescoço enquanto ignorava firmemente a falta de chá do que estava a fazer – a tentar fazer. Racionalizou tudo como sendo um processo parental para saber o que andava a filha a fazer e, fosse como fosse, ela nunca daria por isso.

C-A-R-O-C-H-I-N-H-A, tentou, a alcunha que lhe dera. Népias.

G-R-A-N-I-Z-A-D-O, o doce preferido dela. Não.

Harlan afastou-se do balcão e fechou os olhos. O que mais interessava à filha? Dança. Canto. Teatro. Harlan pensou no programa de O Rei Leão, e em como Amelia, aos oito anos na altura, ficara tão encantada com a peça que não falara de outra coisa no voo de regresso a Durham.

– Q-q-quero ser a N-n-ala – anunciara ela em voz baixa e deliberada, os olhinhos brilhantes. Depois, muito séria:

– Papá, porque é que tem de ser o r-r-r-ei da selva?

A gaguez dela transtornava-o. Os médicos não tinham explicação para a origem nem para a continuação, e isso também o transtornava; Harlan gostava de ação, movimento, progressos. Quando tinham ido à terapeuta da fala, ele dissera à especialista:

– Vamos acabar já com isto.

Mas só levara com um sermão sobre expectativas razoáveis.

Razoáveis. Bom, isso dependia de quem estivesse com a razão, não era? Se ele não tivesse querido ter razão toda a vida, teria passado os anos a lutar como Clem lutara tanto. Porém, Harlan seguira os conselhos da terapeuta depois de Sheri salientar que ele não percebia nada de curar gaguez.

No avião nesse dia ele respondera a Amelia:

– Não tem de ser, carochinha, aquilo é só uma peça de teatro. Quando fores mais crescidinha vamos a África fazer um safari, o que te parece? E vamos ver as leoas a sério – elas é que mandam, não é, querida? – Sheri, sentada na outra coxia, dera palmadinhas no braço dele, e dissera, sorridente.

– Sempre.

Ele esperara que Amelia adorasse a ideia de fazer um safari, mas não. Recostara-se no assento, dobrara as pernas por baixo do corpo e ficara a olhar pela janela. Os seus sonhos nada tinham a ver com África. Graças à bonomia de Sheri, e graças às raparigas mais velhas que Amelia conhecera desde então, em concursos de canto e no teatro comunitário, que tinham arranjado empregos fracos em produções nova-iorquinas, ela ainda sonhava. Mantivera o contacto com essas raparigas pelo Facebook e estava sempre a contar a Harlan e a Sheri da última peça de fulana e sicrana e beltrana. Fora por isso que ele fizera um esforço sério e contínuo no intuito de a orientar para atividades mais práticas e seguras. Tinha de assegurar-se de que os traços que ela herdara da mãe dele não sobressaíam e lhe estragavam a vida, como as escolhas irrefletidas e sonhadoras da sua mãe lhe haviam estragado a sua – e a dele também, quase.

B-R-O-A-D-W-A-Y, introduziu Harlan, e depois carregou na tecla ENTER.

– Bingo! – Exclamou, e sorriu quando o ecrã passou a um campo de flores silvestres num céu azul. O sorriso só duraria mais sete minutos, e esses sete minutos seriam os últimos de boa disposição durante muito tempo.