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Tinha sido uma noite estranha, inquietante. Filipa estivera na esplanada junto de Rute. Cantara os parabéns à irmã e sentira uma secreta euforia quando Tomás se foi sentar ao seu lado. Interpretou a iniciativa dele como uma continuação do entendimento que os juntara ao fim da tarde, embrenhados numa conversa que os trouxera a pé da praia, só os dois, vagarosos, atrasados em relação ao resto do grupo, falando das suas expectativas futuras: ele confessando-se indeciso entre terminar a licenciatura em gestão de empresas ou agarrar o sonho de uma carreira artística; ela desejosa de concluir o curso de educadora de infância.
– Adoro crianças – disse Filipa, com uma expressão sonhadora. Ao longe, o Sol punha-se atrás da serra que emoldurava o casario branco do aldeamento. Era possível vê-lo a descer no horizonte, uma bola alaranjada desenhada no céu. Em redor deles, as águas dos pântanos esvaíam-se para o canal que corria para o oceano à hora da maré baixa, revelando o fundo lodoso onde as garças brancas aterravam à procura de alimento e os caranguejos-violinistas passarinhavam entre as poças de água morna. – Quando casar, vou querer um monte de filhos. Tu não?
– Hum… não sei. Vou querer filhos, claro, mas não sei quantos. Ainda não pensei nisso, é muito cedo para mim.
– Para mim também. Só tenho vinte e dois anos, não estou propriamente a pensar em casar. – Até porque, pensou, enquanto tiver a porcaria do aparelho nos dentes, vai ser difícil alguém querer casar comigo.
Filipa sentia-se vulnerável. Deixara-se convencer pela mãe a colocar o maldito aparelho para corrigir os dentes, que teria de usar pelo período de um ano, e que a incomodava e a deixava infeliz sempre que se olhava ao espelho e descobria a sua boca enfeitada com arames. Fisicamente, ela não se tinha em muito boa conta. Não seria feia, mas era, definitivamente, demasiado banal para chamar a atenção dos rapazes. Tinha o cabelo castanho encaracolado, um pouco rebelde, olhos castanhos, um rosto com traços harmoniosos e um narizinho um pouco empinado. Era um exagero de magra – na sua opinião – e, em contrapartida, achava os seus seios demasiado grandes, desproporcionados em relação ao resto do corpo, franzino, que se recusava a engordar por mais que ela comesse. Era assim que Filipa se via e, bem, tinha a sua dose de complexos, mas, se contasse a Tomás as suas inquietações, ele ficaria espantado, pois via-a com outros olhos. Tomás comentara com os amigos que a achava bonita. Ela fazia-o lembrar a Nicole Kidman, sem os olhos azuis. Uma mente imparcial provavelmente não concordaria com nenhum dos dois. Diria que Filipa tinha uma beleza serena, a qual, aliada ao seu jeito suave de tratar toda a gente, com uma delicadeza simpática, fazia dela o tipo de mulher que, ultrapassadas todas as fantasias, a maioria dos homens preferia para casar. Filipa não tinha consciência disso. Olhava-se ao espelho e só via o aparelho dos dentes e uns seios grandes num corpo esquálido. Por outro lado, achava as suas amigas espectaculares e consumia-se em comparações inúteis, sem conseguir evitar um sentimento de inferioridade em relação às outras, se bem que fosse demasiado inteligente e suficientemente orgulhosa para não o admitir em público. Eram coisas só dela e um dia, estava certa, iria ultrapassá-las.
Por vezes, saíam juntos durante o Inverno, em Lisboa, mas sempre em programas de grupo. Um jantar ocasional com amigos comuns, seguido de uma surtida pelas discotecas da capital. Na realidade, nunca haviam sido muito íntimos. Mas conheciam-se bem e a conversa a dois no caminho da praia surgira com a naturalidade de um relacionamento antigo, que podia proporcionar confidências sem surpresa.
*
Era fácil uma rapariga sentir-se atraída por Tomás. Sendo um tipo simpático, despretensioso e, desde os últimos meses, uma celebridade entre a maioria dos jovens que viam avidamente as telenovelas portuguesas que passavam no horário nobre, Tomás não tinha qualquer dificuldade com o sexo feminino. Embora não fosse particularmente bonito, nem sequer muito expansivo, a sua nova carreira de actor ajudara-o a crescer como pessoa e a sentir-se mais seguro de si. Chegara a protagonista da novela quase por acaso. Um amigo de sempre, que lhe conhecia o gosto pela representação que lhe vinha desde as experiências de teatro na escola, e que também sabia do seu talento inato para a viola porque o ouvia tocar há anos, inscreveu-o à revelia num casting para novos actores. Tomás aceitou o desafio e foi lá mais por graça do que por outra coisa, pois não contava que o aceitassem e, de qualquer modo, assumira a responsabilidade de concluir o curso de gestão de empresas e, portanto, pensava, mesmo que seja escolhido, não terei tempo para fazer novela nenhuma. No final, a descontracção com que enfrentou a prova acabou por lhe ser favorável e, não só foi chamado, como lhe ofereceram o papel principal, o que mudou tudo, pois era uma proposta demasiado boa para ele recusar. Acabara de ser descoberto.
Entre os amigos mais chegados nada disto foi recebido com surpresa. Afinal, Tomás não ia a lado nenhum sem a sua viola e, em geral, uma festa não era festa se ele não fosse obrigado a tocar, a cantar e a fazer imitações de figuras públicas até altas horas da noite. Nessas alturas, ele sentava-se à beira de uma cadeira, começava a tocar como se fosse só para si e, gradualmente, as vozes iam-se extinguindo para o ouvir. Uma música mais e estavam todos a cantar um refrão conhecido à volta dele.
A timidez compulsiva aprisionava-o frequentemente dentro de uma alma incapaz de se libertar, mas, quando se via no seu círculo de amigos, incentivado por muitas vozes familiares e pelo humor solto de algumas cervejas, Tomás transformava-se e, como que iluminado por uma estrelinha secreta, agarrava na sua viola e espantava a sala com um talento transbordante.
Até entrar no mundo das câmaras e dos cenários a fingir das telenovelas, Tomás limitara sempre o seu virtuosismo de artista nato às inconsequentes noitadas com os amigos. Representar para o país era algo demasiado assustador para que ele tomasse em consideração ganhar a vida assim. E no entanto… e no entanto, ao chegar às filmagens do primeiro episódio, enfiaram-no entre quatro paredes falsas de um cenário, e disseram-lhe: «Este é o restaurante da tua personagem. Entra a rapariga e ficas encantado. Amor à primeira vista, percebes?» «Só isso?», perguntou. «Só isso», disseram-lhe. E havia menos gente a seguir a gravação do que nas festas em que actuava para os amigos. De modo que foi tudo muito mais fácil do que alguma vez imaginara.
*
Na confusão dos carros, cada um entrou no primeiro que viu e seguiu viagem. De qualquer forma, iam todos para o mesmo sítio continuar a noite numa discoteca em Tavira, a única que havia por aquelas bandas, um recinto intramuros, com vários bares ao ar livre, que em tempos fora uma fábrica de enlatados no extremo da cidade. Era o porto nocturno onde toda a gente ia acostar, mais cedo ou mais tarde, aproveitando o vento fresco da noite para beber um copo tranquilo lá fora, ou cair de cansaço na sauna em que se transformava a pista de dança, lá dentro. Filipa foi num dos carros que partiu em caravana, olhando para trás, ansiosa, tentando localizar Tomás e Rute, querendo certificar-se de que também entravam num carro qualquer. Não os viu. Fez a curta viagem até Tavira em silêncio, apreensiva, cismando no que se poderia ter passado. A última vez que vira a irmã, ela continuava sentada na esplanada a conversar com Tomás.
Iam cinco no carro, com a música alta numa algazarra festiva, que a euforia do álcool já era muita. Àquela hora, qualquer coisa os divertia, rebentavam a rir das suas próprias piadas, descontraídos, com aquele espírito de quem tem garantidos quinze dias sem preocupações. Só Filipa destoava do grupo, calada no seu canto, no banco de trás, apertada contra a porta, alheada, pensativa. Alguém meteu-se com ela e ela fingiu que se ria, só para que não lhe perguntassem o que se passava. «Viram se a minha irmã veio nalgum carro?», quis saber, esperançada. «Deve ter vindo com alguém», responderam-lhe.
Na discoteca, foram-se juntando ao lado do bar exterior, com a pista de dança em frente cheia de gente. Eles foram buscar bebidas, elas ficaram atrás. Filipa esperou até estarem todos, para concluir, desiludida, que a irmã não tinha vindo e Tomás também não. Que estranho, pensou.
Não estava divertida. Uma dor de cabeça leve começava a incomodá-la e a música muito alta não ajudava. Dissera de si para si que a irmã devia ter ficado com outros amigos ou que se sentira cansada e preferira ir para casa. De qualquer modo, reflectiu, não queria saber se Rute decidisse ficar à conversa com Tomás até ao amanhecer. O que é que isso me importa?, pensou. Era só que… Encolheu os ombros, como se estivesse a falar sozinha, era só que tinha sido agradável a companhia de Tomás e pensara que… bem, pensara que… não interessa. Estava a ser parva, Tomás não lhe dera a entender nada, nenhum sinal importante, fora apenas uma conversa de amigos, nada mais. Tomás não iria interessar-se por uma mulher acabada de chegar à idade adulta, tão novinha, tão desengonçada e tão pouco interessante, que ainda usava aparelho nos dentes. Ainda bem que não estou apaixonada por ele. Decidiu esquecer o assunto e aproveitar a noite com os amigos. Tomou uma caipirinha, conversou um pouco, dançou, aceitou uma segunda bebida e continuou a dançar, sem saber se a cabeça estava a andar à roda por causa dos saltos na pista ou das caipirinhas. Em todo o caso, Filipa não estava habituada a beber e, dali a pouco, começou a sentir-se enjoada. Deixou a pista e foi procurar um lugar mais desafogado. Sentou-se junto de alguns amigos que se haviam reunido à volta de uma mesa. Tirou um cigarro de um maço em cima da mesa, acendeu-o e começou a tossir enquanto os outros se riam dela. Filipa não fumava. Dominou a tosse, deu mais uma passa, soprou o fumo para o ar e levantou os olhos para o céu, seguindo o rasto do fumo, desinteressada da conversa, com um sorriso tolo no canto dos lábios. Alguém comentou que ela estava com os copos. Ouviu a risada geral e o seu sorriso tolo alargou-se ainda mais, embora continuando a olhar para cima, admirando o brilho das estrelas. Em Agosto, no Algarve, o céu ficava infinitamente limpo, e ali, naquela zona aberta, sem prédios altos, podia ver-se o espaço negro e estrelado em todas as direcções e até onde a vista alcançava. O espectáculo era deslumbrante. Filipa fixou-se no firmamento insondável, seguiu a luz de um avião que parecia viajar devagar de uma estrela para outra, até desaparecer e, sem saber porquê, uma imensa tristeza apoderou-se de si. Quem me dera ir naquele avião…
Uma amiga distraiu-a da nostalgia.
– Estás bem?
– Estou óptima – respondeu. Esmagou o cigarro quase intacto num cinzeiro, pensativa.
– Pareces triste.
Filipa fez um sorriso triste.
– Acho que bebi de mais – disse.
– Nós vamos embora agora. Queres vir?
– Quero – suspirou. – Estou cansada.
*
Fizeram o caminho calados. Os amigos, um casal de namorados, iam à frente, Filipa no banco de trás. Na rádio tocava uma música velhinha, dos Supertramp, Listen to me please. Filipa olhou pela janela, lembrou-se de Tomás e duas lágrimas desceram-lhe pelo rosto. Limpou-as com as costas da mão. Era tudo tão complicado, pensou, infeliz, a Rute, os pais… Não sabia como poderia convencer os pais de que o passado era o passado e que o que tinha acontecido a Rute não iria, necessariamente, acontecer-lhe a ela. Era mesmo muito improvável. Mas o medo apoderara-se dos pais desde que a família mergulhara naquele pesadelo, que parecia que nunca mais iria passar porque continuava a dominar-lhes a vida mesmo depois de ter acabado.
Naquela noite, os pais tinham ido a uma festa na Quinta do Lago, noutra zona do Algarve, onde ficariam a dormir num hotel, mas fora preciso que Rute e Filipa os arrastassem quase para fora de casa para que eles decidissem ir. Filipa desejava que a família voltasse a ser como era antigamente, feliz, sem fantasmas nos armários; desejava encontrar uma pessoa que a amasse e enchesse a sua vida de alegria, desejava afirmar-se como mulher e deitar para trás a meninice e os seus despojos, aparelho dos dentes incluído. Desejava as coisas simples que qualquer pessoa da sua idade deseja, e no entanto, naquele momento parecia ser tudo tão difícil…
*
O carro parou em frente à casa de Filipa. Despediu-se dos amigos e atravessou o relvado que se estendia desde o alpendre, nas traseiras, até aos arbustos que delimitavam o jardim. Era uma casa pequena, com uma sala e dois quartos, igual a todas as outras que constituíam as várias fiadas de casas que se ramificavam pelo aldeamento, entre ruas mal iluminadas e ladeadas de arbustos, ensombradas pelas árvores luxuriantes dos jardins. Entrou pela porta de correr da sala, que dava para o alpendre, e trancou-a. Notou como o ambiente estava abafado ali dentro. Consultou o relógio. Três e meia da manhã. Não admirava que se sentisse tão cansada. Arrastou-se para o quarto a sonhar com os lençóis. Filipa dormia na cama ao lado de Rute. Abriu a porta, sem acender a luz, a desabotoar a camisa. Reparou vagamente que Rute já dormia. Despiu a camisa e o soutien ao mesmo tempo que se desembaraçava dos sapatos, desapertou o botão das calças, deixou-as deslizar para o chão e sacudiu-as com as pernas, uma de cada vez. Baixou-se para as apanhar e, ao levantar-se, viu um vulto surgir por trás da irmã.
Foi como se o coração de Filipa tivesse parado, o tempo tivesse deixado de correr, e ela própria, paralisada com o susto primeiro, com a surpresa depois, sem reacção imediata, sem conseguir pensar, olhava para Tomás, que deu um salto aflito da cama e tornou a situação ainda mais embaraçosa ao ficar completamente nu à frente dela, que, por sua vez, se encontrava em cuecas, os dois frente a frente, surpreendidos, estupidificados por longos segundos, uma eternidade. «Filipa», disse ele, ela não me vai perdoar, pensou, sem saber muito bem porquê, pois não havia nada a perdoar. «O que é que fazes aqui?», perguntou ela, a pensar que pergunta mais idiota.
– Eu não sabia que dormias aqui – disse Tomás. – Desculpa.
Filipa apercebeu-se de que estava a olhar intensamente para o sexo dele, em vez de se concentrar nos seus olhos, hipnotizada, não chocada – chocada, sim, mas por tê-lo surpreendido na cama com a irmã que, a propósito, continuava a dormir e, reparava agora, igualmente nua. Tomás também viu para onde ela olhava e tapou-se com as mãos.
– Eu… – balbuciou, envergonhada, como se tivesse sido apanhada a ver o que não devia. Lembrou-se que estava meio nua e escondeu os seios com os braços.
Tomás virou-se de costas, atrapalhado, à procura das calças. Filipa voltou-se, agarrou na camisa de noite que estava em cima da cama e saiu do quarto sem dizer mais nada.