Título: Antologia do Conto Português
Autor: João de Melo
Design de capa: Atelier Henrique Cayatte com Rita Múrias
Revisão: Alvaro Marques
ISBN: 9789722041997
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1. Costuma dizer-se que o conto (mesmo enquanto narrativa oral) e a poesia destinada ao canto estiveram na origem de todos os géneros literários e, por conseguinte, também na génese das literaturas do mundo. Em Portugal, essas mesmas tradições orais antecederam toda a escrita literária, mas coexistiram com a lírica trovadoresca galaico-portuguesa, com a historiografia medieval, com o Renascimento e com o Barroco. Usaram-nas os poetas e os cronistas como temas de inspiração ou como fonte documental do que pretendiam escrever. Mesmo quando, nos períodos mencionados, circulava já sob forma escrita, o conto português não foi além de uma narrativa incipiente, umas vezes sobrecarregada pela moralidade religiosa ou social, outras pelas mitologias do maravilhoso pagão, e portanto sem um modelo formal que a aproximasse da sua verdadeira autonomia literária. Nem mesmo o Renascimento lhe trouxe aquela moldura de modernidade e renovação que tanto impacto causou nas literaturas ocidentais. Confundindo-se com as tradições populares da oralidade, esteve quase sempre mais perto do folclórico que do literário.
Tal como o concebemos hoje, o conto chegou à literatura portuguesa só no século XIX, e pela mão dos escritores românticos. Ainda que tardiamente, tanto bastou para que logo ele assumisse entre nós uma identidade e uma idiossincrasia eminentemente próprias. Não que tenha tido ou feito um percurso em separado dos outros modos de expressão; mas porque, mais do que a novela, o romance, a crónica ou outras formas similares, ele cedo se destacou pelo seu fulgor narrativo e pela essencialidade da linguagem. Talvez sobretudo por isso, ascendeu depressa no interior de uma escrita muito pautada pelo lirismo poético, pelo misticismo da prosa ou por um discurso complexo, de pendor barroco. Sem essa ascensão, a nossa ideia mais duradoura do «literário» enquanto categoria de linguagem ter-se-ia confundido durante muito mais tempo com a «arte de fazer estilo» — de que Bernardim Ribeiro, autor da novela Menina e Moça, poderia ser talvez o mestre e o pioneiro. Reagindo à doença infantil de uma escrita algo propensa à adopção do «estilo» como essência da arte literária (excesso retórico, casticismo vernáculo, pura exibição oratória), o conto ganhou relevo e importância decisivos à luz de uma espécie de noção intuitiva acerca de um limite razoável do discurso e de uma economia narrativa, cujo modelo imitou a partir dos mais antigos rituais da narração oral. Tal imitação consistiu em readoptar o ritmo, a tensão e as prosódias típicas da literatura tradicional. A começar pela escolha da própria matéria narrável: assunto, ambiente, tom e colorido do real. A isso se associaram uma modelização estilística própria, a narratividade, a poética da prosa e uma inconfundível «frescura» romanesca. Dois dos nossos mais extraordinários «narradores» da prosa de viagens (Pero Vaz de Caminha, autor da Carta do Achamento do Brasil, e Fernão Mendes Pinto, de Peregrinação) só não podem, nem devem, ser considerados «contistas» porque não foi essa a finalidade nem a forma da sua escrita. Em tudo o mais, eles foram os precursores de um cânone de narração que só os verdadeiros contadores de histórias logram criar e fazer expandir em volta. A obra de Fernão Mendes Pinto, muito em especial, possui uma tal capacidade emotiva, e uma tão intensa concentração no episódio, que os seus muitos capítulos mais parecem constituir-se em contos sequenciais do que no encadeamento de um conjunto textual que ainda está por definir entre a pura crónica de viagens e uma ficção sem género.
São pois os melhores os atributos que mais contribuem para a tão específica subtileza narrativa do conto: equilíbrio e destreza na adequação da forma ao conteúdo, nítida percepção da narratividade como estratégia da eficácia verbal, criação espontânea de uma linguagem intrinsecamente consciente da própria literariedade. Na intuição dos ficcionistas (até mesmo em «estilistas» tão elaborados como Camilo Castelo Branco e Aquilino Ribeiro), é ponto de regra que não se pode dar ao conto a prosa do romance, e vice-versa. Pelo contrário, as respectivas prosódias e retóricas devem ser e parecer tão distintas quanto facilmente detectáveis pelo leitor — o que não acontece muito na obra dos nossos escritores mais canónicos.
Mas se o conto português forjou e moldou um «imaginário» de certo modo específico, é também certo que lhe deu um norte, uma finalidade: diversificou o modelo formal, fez com que o conceito do narrativo evoluísse sobre as estruturas mais opacas da linguagem, reagindo contra a pura retórica verbal e banindo o culto excessivo da imagem, a representação metafórica, o virtuosismo dos jogos estilísticos — que podem, mais livremente, praticar-se em certos tipos de romance do que no conto em geral.
Assim, entre essas primitivas artes de narrar histórias de ficção e o conto português dito contemporâneo, decorreu todo um processo aquisitivo que não teve precedentes nem conheceu qualquer paralelo com outros textos de criação: a síntese e a unidade da narrativa, a integração do ritmo na espessura melódica do texto, a prática da «simplicidade profunda» de que falaram Sócrates e Platão (a qual se aplica mais ao conto do que aos demais textos da nossa convenção literária). Hoje, essa escrita simples e expedita, centrada na «essencialidade» a que me refiro atrás, é já parte indissociável quer da biologia quer da estética do conto. E da sua ética, também.
2. Temos pois que, ainda em plena Idade Média, antes de o ser em teoria, já o conto português o era na prática — enquanto narrativa oral e popular: caso, lenda, fábula, prodígio, exemplo, sátira, moralidade ou poema para cantar. No período de transição da literatura «palaciana» para a do Renascimento (mas na sua vertente tradicionalista), os poemas obrigados a «mote» (tema) e a «voltas» (desenvolvimento) apenas careciam de ser transcritos em prosa; em tudo o mais configuravam estrutura narrativa. O mesmo aconteceria depois com os chamados «romances» populares mais não sendo do que prosificações de antigos textos poéticos, igualmente orais, assim circularam na tradição até serem passados a escrito e só depois sujeitos a outros processos de elaboração.
O Barroco, tido por um tempo da eloquência e da oratória, deu-nos prosadores eméritos (como o padre António Vieira, autor dos mais belos sermões e textos proféticos da literatura portuguesa). Mas a escrita barroca, não obstante a insistência na fugacidade da vida e na efemeridade do ser (que até se adequaria a um tipo de narrativa tão breve), acabou por não trazer contributos notáveis ao conto português, e ainda bem. É que tanto a retórica como a estilística da estética barroca teriam constituído um óbice ou um retardamento à modernização — que exigiu linearidade temática, ritmo narrativo, leveza e proporção de conteúdo, estrutura sumária e acção única: nuclear, absoluta.
Os Românticos descobriram e estudaram o romanceiro peninsular, instituindo-o como disciplina nos estudos literários; trabalharam as lendas e tradições do povo português, introduziram o romance histórico entre nós, revolucionaram a poesia e a literatura em geral, mas o conto muito em particular. Por um lado, deram-lhe uma estrutura definitiva; por outro, fizeram dele um texto de eleição para os temas mais recorrentes da sua literatura: as histórias dos amores contrariados, a morte (física, mundana, espiritual) dos amantes, o conflito conceptual na educação familiar, os episódios históricos (tendo em Alexandre Herculano — poeta, historiador, romancista, insigne autor de Lendas e Narrativas — o seu grande precursor). Foram ainda os contistas românticos que insistiram nos imaginários do sobrenatural: as crenças e superstições populares, o mundo luciferino, as intrigas do maravilhoso cristão, o fantástico, o etno-fantástico. O social não deixava de estar subjacente a essa escrita de evasão, com visões mais ou menos oníricas da realidade. Contudo, só o Realismo deu ao conto a sociabilidade, a grandeza de um género que ainda hoje inspira um imenso «desejo» de literatura, e que o elegeu como meio susceptível, e por excelência, de no mesmo plano abordar o geral, o particular, o local (ou seja, o regional) e o universal. Acresce a isso, mais do que tudo, o facto de o Realismo ter libertado o conto dos constrangimentos ou preconceitos românticos: os da linguagem, primeiro, e os temáticos e ideológicos e seus imaginários algo consabidos, depois. O conto realista veio instaurar na literatura portuguesa uma ideia/noção de modernidade que ainda hoje supera o tempo estrito da escrita, fazendo de nós, leitores de agora, seus contemporâneos literários com um século e meio de idade.
3. Importa, assim, conhecer o conto português à luz dessa ideia de contemporaneidade literária. Tal significa dizer que ele tem de moderno e de contemporâneo não apenas o facto de se enquadrar num conceito de literatura actual, mas sobretudo o de dizer respeito a um modelo social, isto é, da sociedade que é ainda a nossa, em Portugal. Por outras palavras, através dele temos a possibilidade de nos revermos no tempo e no país em que vivemos — e não apenas historicamente, mas também social, estética e até literariamente falando. Em matéria de história e de sociedade, o conto será sempre subsidiário do romance (que cobre, como se sabe, âmbitos bem mais vastos e pode penetrar muito mais fundo no coração e na cabeça dos sistemas). Desse e de outros pontos de vista (incluindo o problema da sua actualidade), todos os caminhos do conto português moderno remontam inequivocamente ao Realismo literário do século XIX e, dentro dele, à obra de Eça de Queirós, o maior escritor português do género. Com efeito, Eça representa tanto o nosso génio absoluto desta e de outras formas de ficção, como tem de ser visto ainda no lugar do verdadeiro patrono da sua modernidade. À luz e ao redor do autor dessa obra--prima do conto português, que é Singularidades de Uma Rapariga Loira, seja por convergência ou por divergência do modelo por ele adoptado, seguimos nós ainda a evolução do género e da escrita, e também as suas manifestações estéticas, temáticas e até geracionais.
Historicamente falando, a abordagem do conto português impõe, como método, sobretudo dois critérios de valoração: a «notoriedade» e a «notabilidade» dos textos e dos contistas. (Nem sempre os conceitos coincidem no mesmo texto e na mesma pessoa. Há contos e contistas «notórios» que de «notáveis» pouco terão. Mas também o inverso será verdadeiro.) Ainda assim, suponho ser fácil obter-se um consenso relativamente amplo acerca dos melhores escritores portugueses de contos. Correspondem, em parte, também aos melhores romancistas. Com excepções óbvias: Camilo Castelo Branco, autor das magníficas e longas Novelas do Minho, mantém nos contos a mesma índole e a verve do romancista de proa que indiscutivelmente é, mas perde-se em expedientes temáticos e em algumas desproporções de estilo em Vinte Horas de Liteira e Doze Casamentos Felizes. Em todo o caso, passa também por ele, autor excelente de Noites de Lamego, uma mestria que viria a influenciar inúmeros contistas do norte português. Outro caso: Alexandre Herculano, cujas belas e muito bem escritas Lendas e Narrativas (também longas e exclusivamente históricas, com a relativa excepção da mais que conhecida A Dama Pé-de-Cabra), não podem, a nenhum título, inscrever-se hoje na modernidade do conto português, e sim nas suas raízes; ou, ainda, o caso de alguns romancistas nossos contemporâneos que ou não escreveram contos ou não admitem como tal os textos narrativos que esparsamente têm vindo a publicar.
4. É bem possível que o conto português, em toda a sua amplitude histórica, comporte em si os temas, as sensibilidades de geração, os sinais, as estéticas de grupo e os imaginários míticos ou territoriais de toda a literatura portuguesa (ou mesmo europeia e até mundial). Na verdade, não existe praticamente um domínio ou um modo de ficção que seja estranho ao nosso conto, sobretudo desde o Romantismo. Mais ainda: a sua história e a sua evolução endógena comportam uma tão grande e tão profunda concomitância de temas, motivos, ambientes e modelos, que há nelas suporte mais do que suficiente para uma teoria própria e para uma visão portuguesa do mundo, de nós mesmos, do nosso tempo. Não seria sequer excessivo acrescentar que o conto português incorre tanto nessa dinâmica de diversidade como nos pressupostos de uma possível universalidade literária, nossa. A «portugalidade» pode servir-lhe de ponto de partida e sobretudo de meio, mas não de limite ou de horizonte. A condição humana dos Portugueses é, tal como noutros povos, apenas e só a condição humana de um povo entre os demais, e esta é uma dimensão de «universalidade» em qualquer literatura que se preze. É por isso que nele, conto, podemos encontrar histórias de todos os tempos e lugares. E temas dificilmente cingíveis à realidade mais evidente, que não seja a da vida quotidiana, do amor, das paixões, da humanidade e dos seus contrários: a violência, a guerra, a pobreza, a injustiça dos modelos sociais, a morte e o mistério de viver — o que pode ser (e é) tão comum a nós como a qualquer outro sistema literário do mundo. Porém, o caso é outro, e a mim cabe dizê-lo: só os Portugueses poderiam ter sido autores e escritores dos seus contos. Para além dos temas e dos dados que derivam da experiência histórica e da realidade portuguesa, há neles um modo de ser, um mundo vivido, um «dizer» apenas nosso; e também esta escrita de raiz telúrica e consuetudinária, e uma poética de contar que se foi enchendo de ritos e ritmos que não se confundem com os dos outros; e talvez um sentido de criação pela linguagem que acrescentou corpo e mundo à língua portuguesa (para que ela não se perdesse, e para que evoluísse na sua própria condição literária).
Acredito no conto como numa secreta e comovida visitação dos mitos do homem, que em nós entraram sempre em relação com a geografia e com a história do vivido. E com a sua memória culta. Trata-se de uma literatura de emergência e de imanência. Escrita por nós, por assim a termos vivido, também. Uma literatura do real que se foi distendendo pela vicissitude do quotidiano, pela porta de saída desse «território» imaginário, o mar, que como tal se insinuou à alma e ao olhar de todos e cada um de nós. Eis-nos, assim, perante uma literatura histórica, mística, mitológica, mágica, etno-fantástica, trágica, realista, moderna, pós-moderna, como só ela sabe ser — e como todas as outras o são também, afinal.
João de Melo
Madrid, Março de 2002
Fez estudos no Colégio dos Oratorianos, com vista ao ensino superior, mas teve de optar por um curso de índole prática que lhe garantisse trabalho (o pai cegara e as condições familiares a isso obrigavam). Cedo se manifestou vocacionado para a literatura e, depois, para a política. Leu os românticos estrangeiros, que o influenciaram a escrever os primeiros versos, frequentou tertúlias e salões literários. Comprometido com a revolta de 1831 contra o absolutismo de D. Miguel, fugiu para Inglaterra, de onde regressou integrado no exército de D. Pedro. Com ele seguiu para os Açores em 1831, e daí para o Mindelo. Como simples soldado, participou no cerco à cidade do Porto, nas lutas da guerra civil e no triunfo da causa liberal. Daí para a frente, a sua vida irá repartir-se entre o jornalismo (fundou e dirigiu a revista O Panorama, e depois vários periódicos), a investigação histórica, a literatura e a política. Protagonista de inúmeras polémicas, bateu-se contra o clero obscuro, desempenhou cargos institucionais, foi, com Almeida Garrett, o introdutor do Romantismo e da novela histórica em Portugal (e também o primeiro historiador digno desse nome). Figura referencial da ética política e da cultura, recusou distinções e honrarias, apesar dos altos postos que ocupou. Cansado e desiludido com a vida pública, casou com uma antiga namorada e retirou-se em 1867 para a sua quinta de Vale de Lobos, onde passou a dedicar-se à agricultura. A sua morte deixou o país consternado pelo luto.
Obras principais: Conto: Lendas e Narrativas (1851); Romance: O Bobo (1843); Eurico, o Presbítero (1844); 0 Monge de Cister (1848); Poesia: A Voz do Profeta (1836); A Harpa do Crente (1838); Historiografia: História de Portugal (4 vols., 1846/ /47/50/53); História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (3 vols., 1854/55/59).
Vós os que não credes em bruxas, nem em almas penadas, nem nas tropelias de Satanás, assentai-vos aqui ao lar, bem juntos ao pé de mim, e contar-vos-ei a história de D. Diogo Lopes, senhor de Biscaia.
E não me digam no fim: «Não pode ser.» Pois eu sei cá inventar cousas destas? Se a conto, é porque a li num livro muito velho, quase tão velho como o nosso Portugal. E o autor do livro velho leu-a algures ou ouviu-a contar, que é o mesmo, a algum jogral em seus cantares.
É uma tradição veneranda; e quem descrê das tradições lá irá para onde o pague.
Juro-vos que, se me negais esta certíssima história, sois dez vezes mais descridos do que S. Tomé antes de ser grande santo. E não sei se eu estarei de ânimo de perdoar-vos, como Cristo lhe perdoou.
Silêncio profundíssimo; porque vou principiar.
D. Diogo Lopes era um infatigável monteiro: neves da serra no Inverno, sóis dos estevais no Verão, noites e madrugadas, disso se ria ele.
Pela manhã cedo de um dia sereno, estava D. Diogo em sua armada, em monte selvoso e agreste, esperando um porco-montês, que, batido pelos caçadores, devia sair naquela assomada.
Eis senão quando começa a ouvir cantar ao longe: era um lindo, lindo cantar.
Alevantou os olhos para uma penha que lhe ficava fronteira: sobre ela estava assentada uma formosa dama: era a dama quem cantava.
O porco fica desta vez livre e quite, porque D. Diogo Lopes não corre, voa para o penhasco.
— Quem sois vós, senhora tão gentil; quem sois, que logo me cativastes?
— Sou de tão alta linhagem como tu; porque venho do semel de reis, como tu, senhor de Biscaia.
— Se já sabeis quem eu seja, ofereço-vos a minha mão, e com ela as minhas terras e vassalos.
— Guarda as tuas terras, D. Diogo Lopes, que poucas são para seguires tuas montarias; para o desporto e folganças de bom cavaleiro que és. Guarda os teus vassalos, senhor de Biscaia, que poucos são eles para te baterem a caça.
— Que dote, pois, gentil dama, vos posso eu oferecer digno de vós e de mim; que se a vossa beleza é divina, eu sou em toda a Espanha o rico-homem mais abastado?
— Rico-homem, rico-homem, o que eu te aceitara em arras cousa é de pouca valia; mas, apesar disso, não creio que mo concedas; porque é um legado de tua mãe, a rica-dona de Biscaia.
— E se eu te amasse mais que a minha mãe, porque não te cederia qualquer dos seus muitos legados?
— Então, se queres ver-me sempre ao pé de ti, não jures que farás o que dizes, mas dá-me disso a tua palavra.
— A la fé de cavaleiro, não darei uma; darei milhentas palavras.
— Pois sabe que para eu ser tua é preciso esqueceres-te de uma cousa que a boa rica-dona te ensinava em pequenino e que, estando para morrer, ainda te recordava.
— De quê, de quê, donzela? — acudiu o cavaleiro com os olhos chamejantes. — De nunca dar tréguas à mourisma, nem perdoar aos cães de Mafamede? Sou bom cristão. Guai de ti e de mim, se és dessa raça danada!
— Não é isso, dom cavaleiro — interrompeu a donzela a rir. — O de que eu quero que te esqueças é do sinal da Cruz: o que eu quero que me prometas é que nunca mais hás-de persignar-te.
— Isso agora é outra cousa — replicou D. Diogo, que nos folgares e devassidões perdera o caminho do Céu. E pôs-se um pouco a cismar.
E, cismando, dizia consigo: «De que servem benzeduras? Matarei mais duzentos mouros e darei uma herdade a Santiago. Ela por ela. Um presente ao apóstolo e duzentas cabeças de cães de Mafamede valem bem um grosso pecado.»
E, erguendo os olhos para a dama, que sorria com ternura, exclamou:
— Seja assim: está dito. Vá, com seiscentos diabos.
E, levando a bela dama nos braços, cavalgou na mula em que viera montado.
Só quando, à noite, no seu castelo, pôde considerar miudamente as formas nuas da airosa dama, notou que tinha os pés forcados como os de cabra.
Dirá agora alguém: «Era, por certo, o demónio que entrou em casa de D. Diogo Lopes: O que lá não iria!» Pois sabei que não ia nada.
Por anos, a dama e o cavaleiro viveram em boa paz e união. Dois argumentos vivos havia disso: Inigo Guerra e Dona Sol, enlevo ambos de seu pai.
Um dia de tarde, D. Diogo voltou de montear: trazia um javali grande, muito grande. A mesa estava posta. Mandou conduzi-lo ao aposento onde comia, para se regalar de ver a excelente preia que havia preado.
Seu filho assentou-se ao pé dele: ao pé da mãe Dona Sol; e começaram alegremente seu jantar.
— Boa montaria, D. Diogo — dizia sua mulher. — Foi uma boa e limpa caçada.
— Pelas tripas de Judas! — respondeu o barão. — Que há bem cinco anos não colho urso ou porco-montês que este valha!
Depois, enchendo de vinho o seu pichel de prata mui rico e lavrado, virou-o de golpe à saúde de todos os ricos-homens fragueiros e monteadores.
E a comer e a beber durou até a noite o jantar.
Ora deveis de saber que o senhor de Biscaia tinha um alão a quem muito queria, raivoso no travar das feras, manso com seu dono e, até, com os servos da casa.
A nobre mulher de D. Diogo tinha uma podenga preta como azeviche, esperta e ligeira que mais não havia dizer, e dela não menos prezada.
O alão estava gravemente assentado no chão defronte de D. Diogo Lopes, com as largas orelhas pendentes e os olhos semicerrados, como quem dormitava.
A podenga negra, essa corria pelo aposento viva e inquieta, pulando como um diabrete: o pêlo liso e macio reluzia-lhe com um reflexo avermelhado.
O barão, depois da saúde urbi et orbi feita aos monteiros, esgotava um quírie comprido de saúdes particulares, e a cada nome uma taça.
Estava como cumpria a um rico-homem ilustre, que nada mais tinha que fazer neste mundo, senão dormir, beber, comer e caçar.
E o alão cabeceava, como um abade velho em seu coro, e a podenga saltava.
O senhor de Biscaia pegou então de um pedaço de osso com sua carne e medula e, atirando-o ao alão, gritou-lhe:
— Silvano, toma lá tu, que és fragueiro: leve o diabo a podenga, que não sabe senão correr e retouçar.
O canzarrão abriu os olhos, rosnou, pôs a pata sobre o osso e, abrindo a boca, mostrou os dentes anavalhados. Era como um rir deslavado.
Mas logo soltou um uivo e caiu, perneando meio morto: a podenga, de um pulo, lhe saltara à garganta, e o alão agonizava.
— Pelas barbas de D. From, meu bisavô! — exclamou D. Diogo, pondo-se em pé, trémulo de cólera e de vinho. — A perra maldita matou-me o melhor alão da matilha; mas juro que hei-de escorchá-la.
E, virando com o pé o cão moribundo, mirava as largas feridas do nobre animal, que expirava.
— A la fé que nunca tal vi! Virgem bendita. Aqui anda cousa de Belzebu. — E dizendo e fazendo, benzia-se e persignava-se.
— Ui! — gritou sua mulher, como se a houveram queimado. O barão olhou para ela: viu-a com os olhos brilhantes, as faces negras, a boca torcida e os cabelos eriçados.
E ia-se alevantando, alevantando ao ar, com a pobre Dona Sol sobraçada debaixo do braço esquerdo; o direito estendia-o por cima da mesa para seu filho, D. Inigo de Biscaia.
E aquele braço crescia, alongando-se para o mesquinho, que, de medo, não ousava bulir nem falar.
E a mão da dama era preta e luzidia, como o pêlo da podenga, e as unhas tinham-se-lhe estendido bem meio palmo e recurvado em garras.
— Jesus, santo nome de Deus! — bradou D. Diogo, a quem o terror dissipara as fumaças do vinho. E, travando de seu filho com a esquerda, fez no ar com a direita, uma e outra vez, o sinal da Cruz.
E a sua mulher deu um grande gemido e largou o braço de Inigo Guerra, que já tinha seguro, e, continuando a subir ao alto, saiu por uma grande fresta, levando a filhinha que muito chorava.
Desde esse dia não houve saber mais nem da mãe nem da filha. A podenga negra, essa sumiu-se por tal arte, que ninguém no castelo lhe tornou a pôr a vista em cima.
D. Diogo Lopes viveu muito tempo triste o aborrido, porque já não se atrevia a montear. Lembrou-se, porém, um dia de espairecer sua tristura, e, em vez de ir à caça dos cerdos, ursos e zevras, sair, à caça de mouros.
Mandou, pois, alevantar o pendão, desenferrujar e polir a caldeira, e provar seus arneses. Entregou a Inigo Guerra, que já era man cebo e cavaleiro, o governo de seus castelos, e partiu com lustrosa mesnada de homens do armas para a hoste de el-rei Ramiro, que ia em fossado contra a mourisma de Espanha.
Por muito tempo não houve dele, em Biscaia, nem novas nem mensageiros.
Era um dia ao anoitecer: D. Inigo estava à mesa, mas não podia cear, que grandes desmaios lhe vinham ao coração. Um pajem muito mimoso e privado, que, em pé diante dele, esperava seu mandar, disse então para D. Inigo:
— Senhor, porque não comeis?
— Que hei-de eu comer, Brearte, se meu senhor D. Diogo está cativo de mouros, segundo rezam as cartas que ora dele são vindas?
— Mas seu resgate não é a vossa mofina: dez mil peões e mil cavaleiros tendes na mesnada de Biscaia: vamos correr terras de mouros: serão os cativos resgate de vosso pai.
— O perro de el-rei de Leão fez sua paz com os cães de Toledo e são eles que têm preado meu pai. Os condes e potestades do rei tredo e vil não deixariam passar a boa hoste de Biscaia.
— Quereis vós, senhor, um conselho, e não vos custará nem mealha?
— Dize, dize lá, Brearte.
— Porque não ides à serra procurar vossa mãe? Segundo ouço contar aos velhos, ela é grande fada.
— Que dizes tu, Brearte? Sabes quem é minha mãe e que casta é de fada?
— Grandes histórias tenho ouvido do que se passou certa noite neste castelo: éreis vós pequenino, e eu ainda não era nado. Os porquês destas histórias, isso Deus é que os sabe.
— Pois dir-tos-ei eu agora. Chega-te para cá, Brearte.
O pajem olhou de roda de si, quase sem o querer, e chegou-se para seu amo: era a obediência e, ainda mais, certo arrepio de medo que o faziam chegar.
— Vês tu, Brearte, aquela fresta entaipada? Foi por ali que minha mãe fugiu. Como e porquê, aposto que já to hão contado?
— Senhor, sim! Levou vossa irmã consigo...
— Responder só ao que pergunto! Sei isso. Agora cala-te.
O pajem pôs os olhos no chão, de vergonha; que era humildoso e de boa raça.
E o cavaleiro começou o seu narrar:
— Desde aquele dia maldito, meu pai pôs-se a cismar: e cismava e amesquinhava-se, perguntando a todos os monteiros velhos se, porventura, tinham lembrança de haverem no seu tempo encontrado nas brenhas alguns medos ou feiticeiras. Aqui foi um não acabar de histórias de bruxas e de almas penadas.
«Havia muitos anos que meu senhor pai se não confessava; alguns havia, também, que estava viúvo sem ter enviuvado.
«Certo domingo pela manhã, nasceu alegre o dia, como se fora de Páscoa; e meu senhor D. Diogo acordou carrancudo e triste, como costumava.
«Os sinos do mosteiro, lá em baixo no vale, tangiam tão lindamente que era um céu-aberto. Ele pôs-se a ouvi-los e sentiu uma saudade que o fez chorar.
«— Irei ter com o abade — disse ele lá consigo. — Quero confessar-me. Quem sabe se esta tristura ainda é tentação de Satanás? «O abade era um velhinho, santo, santo, que não o havia mais. «Foi a ele que se confessou meu pai. Depois de dizer mea culpa, contou-lhe ponto por ponto a história do seu noivado.
«— Ui! filho — bradou o frade —, fizeste maridança com uma alma penada!
«— Alma penada, não sei — tornou D. Diogo —; mas era cousa do diabo.
«— Era alma em pena: digo-to eu, filho — replicou o abade. — Sei a história dessa mulher das serras. Está escrita há mais de cem anos na última folha de um santoral godo do nosso mosteiro. Desmaios que te vêm ao coração pouco me espantam. Mais que ânsias e desmaios costumam roer lá por dentro os pobres excomungados.
«— Então, estou eu excomungado?
K Dos pés até à cabeça; por dentro e por fora; que não há que dizer mais nada.
«E meu pai, a primeira vez lia sua vida, chorava pelas barbas abaixo.
«O bom do abade amimou-o, como a uma criança; consolou-o, como a um mal-aventurado. Depois pôs-se a contar a história da dama das penhas, que é minha mãe... Deus me salve!
«E deu-lhe por penitência ir guerrear os perros sarracenos por tantos anos quantos vivera em pecado, matando tantos deles quantos dias nesses anos tinham corrido. Na conta não entravam as sextas-feiras, dia da Paixão de Cristo, em que seria irreverência trosquiar a vil ralé de agarenos, cousa neste mundo mui indecente e escusada.
(in Lendas e Narrativas, fragmento, pp. 246-256,
ed. Lello & Irmão, Editores, Porto, 1981 — La ed.: 1851.)
Aos dez anos de idade, órfão de pai e mãe, é levado para Vila Real de Trás-os-Montes e entregue primeiro a uma tia, depois a uma irmã e a parentes do lado paterno. Foram os clérigos de aldeia que o familiarizaram com os clássicos portugueses e europeus, com o latim e o francês. Primeiro casamento aos 15 anos. Nasce-lhe uma filha, que morre aos cinco anos. Abandona a mulher. Entre 1843 e 1846, tenta em vão cursar Medicina no Porto e em Coimbra. Rapta uma jovem de Vila Real, levando-a para o Porto, e aí casa de novo. Logo a abandona também. Viria a apaixonar-se por Ana Plácido, mulher de um emigrante rico, que ela abandona para ir viver com ele. Acusado de adultério, é preso na Cadeia da Relação do Porto e aí escreve o seu livro mais conhecido, Amor de Perdição. Julgado e absolvido em 1861, vai viver em 1864 para São Miguel de Ceide, em casa herdada do ex-marido de Ana Plácido. Passa então a viver exclusivamente da escrita. Mas os dias e os anos avolumam a tragédia e a amargura do escritor. Às dificuldades económicas, somam-se a «servidão» imposta pelos editores, a loucura de um filho, a morte dos amigos, as pugnas públicas com os outros, o avanço da cegueira. Trabalhador infatigável da literatura, homem de génio e paixão, publicou 137 obras de vários géneros e temas. Mas não resiste ao sofrimento nem ã desilusão da cegueira e decide suicidar-se.
Obras principais: Conto: Doze Casamentos Felizes (1861); Noites de Lamego (1963); Vinte Horas de Liteira (1864); Novelas do Minho (1875); Romance: Anátema (1851); Onde Está a Felicidade? (1856); Romance dum Homem Rico (1861); Coração, Cabeça e Estômago (1862); Amor de Perdição (1862); 0 Bem e o Mal (1863); A Queda dum Anjo (1866); 0 Retrato de Ricardina (1868); 0 Regicida (1874); A Filha do Regicida (1875); Eusébio Macário (1779); A Corja (1882); A Brasileira de Prazins (1883); Vulcões de Lama (1886).
Aos 24 de agosto, na povoação chamada Cavez, cuja ponte, sobre o Tâmega, extrema pelo norte as duas províncias do Minho e Trás-os-Montes, celebra-se a festa de S. Bartolomeu, santo gravemente infesto a Satanás. Vêm aqui, de muitas léguas em volta, dezenas de criaturas obsessas. É para notar que raro homem ali vá incubado de demónio. As mulheres é que, por cima de muitas outras penas, sofrem o dissabor de serem visitadas pelos espíritos infernais, caso único, a meu ver, em que os sobreditos espíritos se mostram espirituosos.
É de saber que o demo tem caprichos sujos; e nisto, como em muitas outras coisas, parece homem, com ressalva do leitor. A legião deles, que se entranhou na vara de cochinos, era indecente. S. Jerónimo, na vida do beato Hilareão, conta de um formidável demónio que se alojou num camelo, o qual, levado à presença daquele santo, urrou, caiu, e desfez-se da sevandija que o incomodava. O mesmo conta frei Luís de Sousa de um urso possesso, que, ao sinal da cruz de S. Bartolomeu dos Mártires, caiu, estrebuchou, e morreu. Também se mete nos legumes o maldito! O mesmo santo farejou-o nuns feijões fradinhos. Já é condição mui rasteira, ou muito má vontade aos feijões em ódio aos frades!
Afirmam insigníssimos autores que há seis espécies de demónios; ígneos, aéreos, aquáticos, subterrâneos e lucífugos. Anda a gente cercada destes malandrins, que zombam da polícia, e fazem praça do seu despejo até ao escândalo de se meterem nela!
A mim, pois, não me espantava o grande concurso de mulheres endiabradas que vi na romaria de S. Bartolomeu, em Cavez. Do usurpado senhorio de algumas direi que me fez inveja a besta imunda! Eram desempenadas raparigas de Barroso, escarlates e possantes como as matriarcas do género humano; pulsos de ferro, olhos coriscantes, e formas tão esculturais da beleza antiga, que eu fiquei cismando se o demónio desengraça com as raças adelgaçadas, e vai às montanhas procurar corpos com capacidade de o receberem. Ainda bem que vai. Se assim não fosse, a sala de baile havia de ser um pandemónium!... E quem sabe se é? O regirar vertiginoso dos bailados não parece coisa macabra, doidice satânica, vórtice em que as almas vão remoinhando até caírem nas fauces do dragão? Eminentes sábios e santos estão comigo.
Oiçamos o congregado Bernardes:
«Que o que baila e dança tem parte de louco e furioso, basta vê-lo de fora para confessá-lo. Aqueles mesmos movimentos do corpo, tão vários, tão ligeiros, tão violentos, tão afectados, estão indicando que o siso está movido algum tanto do seu assento.»
E ajunta:
«... Bem certificados podemos ficar de que os bailes, danças e saraus costumam trazer consigo muitos pecados. A não ser assim, nem os demónios insistiram tanto em os persuadir...»
S. Valeriano na Homilia 6á De oliosis verbis, diz que as danças são laços do demónio que ajudam a dar muitos garrotes. E o salmo 139, quando diz caput circuitus corum, quer dizer que o diabo é o cabeça das reviravoltas de um baile.
Logo: os bailados são diabruras.
Mas, enfiando outra vez o conto, gentis mocetonas eram aquelas energúmenas que eu vi na igreja de Cavez, em 1842. Há que anos isto vai!... Naquele tempo, até as mulheres com espírito ruim me pareciam boas.
Voltei lá no ano seguinte, armado de figas que espantam maus ares, e nóminas e amuletos refractários ao demónio.
Na aldeia, onde eu então estudava latim, correu a nova de se terem desafiado para a romagem de S. Bartolomeu os valentes de dois concelhos inimigos, desde muito enrixados e aprazados para ali. Um morgado, meu vizinho, de nome José Pacheco de Andrade, filho do antigo capitão-mor de Basto, Serafim dos Anjos Pacheco de Andrade, oito dias antes, mandara demolhar em poças um braçado de paus de carvalho, com o fim de lhes dar elastério, e cingirem-se melhor com as costas das vítimas. Estes preparatórios aqueciam-me o ânimo belicoso, posto que os chibantes da terra avisadamente se rissem dos meus quinze anos.
Por nove horas da noite do dia 23, saímos em malta, caminho da ponte de Cavez, uma légua distante. Por volta de onze horas, fizemos alta numa aldeia, chamada Arosa, convizinha dos montados por onde se estendia o arraial. Ali reuniu-se connosco uma estúrdia, que vinha dos lados de Cerva, e nesta os mais graúdos brigões da comarca, homicidas igualmente impunes que arrogantes, e espécie de barões feudais, a cujas barbacãs não ousavam chegar as justiças del-rei. A cantadeira da estúrdia era uma rapariga de dezoito anos, sécia e talhada a primor, carregada de oiro, mas ainda assim leve como uma arféloa, saltando quando não cantava, rindo a escâncaras quando não saltava, linda como as dríades dos córregos, alegre como a felicidade das serras. Oh! que moça! Que legião de tentadores demónios ia nela!
O morgado, Pacheco de Andrade abraçou o maioral da turba, e concertou o plano da batalha.
Dizia o de Cerva:
— Eu quero-me ver peito a peito com o Vítor de Mondim! Um de nós há-de ficar escutando a cavalaria.
— Que tens tu com ele? — perguntou o morgado.
— Tenho que ele conversou dois anos com a Isabelinha do Reguengo; depois ela deixou-o à minha conta, e voltou-se para mim. E vai ele, na feira de S. Miguel, caiu sobre mim, e mais vinte dos seus. Fiz face a todos, enquanto o pau me não estalou na cabeça de um. Depois cal debaixo de um bosque de estadulhos, e estive à morte. Aqui tem o senhor morgado o que eu tenho com ele.
— A moça vale a pena?
— É esta que está a cantar.
— Guapa rapariga!... Tens razão, Lobo!
— Já correu o primeiro pregão dos banhos.
— Casas com ela?
— É a melhor lavradeira do povo, e de cara ninguém no concelho lhe deita água às mãos.
— Então será bom que te poupes, Lobo! Nada de morrer!...
— Que tem lá isso? Se morrer, já não preciso casar. Morra o homem e fique fama!
A este tempo, cantava a Isabelinha do Reguengo:
Quem quiser cantar comigo
há-de ter no peito amores;
amam as aves cantando
entre arvoredos e flores.
E o competidor respondia:
Entre arvoredos e flores
já te eu vi, linda pombinha,
deixei-te ir sem te dar fogo,
que eras doutro, e nenja[1] minha.
O Lobo de Cerva ouviu esta copla, e franziu a sobrancelha, envesgando os olhos ao cantor; depois foi à beira de Isabel, e disse-lhe:
— Não cantes mais.
— Porquê, João?!
— Não cantes mais, faze-me isso... Oiço cantigas que me bolem cá no interior.
— Pois não canto. Vamos conversando — disse ela com alegre condescendência.
À meia-noite entrámos no arraial. Já o tiroteio tinha rompido das duas margens do Tâmega. As balas assoviavam nas ramagens de carvalheira onde se ajuntavam os caudilhos em conselho de guerra. Nenhum romeiro pacífico já se metia à ponte. Os atrevidos agrupavam-se nas extremidades; os da esquerda esperavam a ronda de Cerva, os da direita a de Mondim. Na ponte passeavam uns doze soldados de infantaria, idos de Guimarães; pobres homens de quem os contendores não faziam caso nem conta. Os tiros, pelo ardor da escorva, viam-se romper dos altos as matas fronteiras. A tropa estacionara na ponte, encarregada de evitar o choque das duas rondas inimigas.
Ora eu, prevalecendo-me da inofensiva presença dos meus anos, desci à ponte, e atravessei-a como coisa que ninguém vira. Fui direito à igreja observar a luta de S. Bartolomeu com o diabo. Era isto principalmente que me chamava.
Quando cheguei, vi simplesmente cinco demoníacos, amarrados por cinquenta braços de pujantes barrosãos, enquanto o santo, de bom tamanho e de pedra, era levado da cabeça de uma para a das outras energúmenas. O demónio rabiava nelas desencabrestadamente, quando o milagroso granito lhes pesava. O padre levantava a voz também enfurecida, e insultava desabridamente o inimigo do género humano, obrigando-o a ir esconder sua derrota nas profundezas do inferno. As raparigas desincubadas caíam sem forças no regaço das mães chorosas, arquejavam, iam-se a pouco e pouco restaurando, e erguiam-se afinal sãs, para irem depor no altar do santo o voto, e rodearem sobre joelhos a igreja.
Disseram-me que, passadas algumas semanas, todas estas moças casavam com os sujeitos que o demónio respectivo de cada uma tinha declarado.
Que ofício adopta o diabo às vezes!... Assim mesmo é o mais útil que eu lhe conheço.
Quando volvi à ponte já não pude romper a mó de povo que se baldeava de uma a outra margem do caminho, e se desfazia em filas desordenadas, as quais pareciam serpentes negras a colearem pela ribanceira acima.
Tinha começado a luta.
A ronda de Cerva avançava da parte dalém; a de Mondim, recebendo aquele movimento como sinal de batalha, avançou também. Ribombavam os zabumbas de ambos os lados, e guinchavam as requintas por sobre a vozearia da tropa, que se esforçava em evitar o encontro, de baioneta calada.
O alarido das mulheres e rapazio de um e de outro lado, retinia nos ecos das margens penhascosas do Tâmega. As fuziladas relampagueavam entre os matagais. A vertigem do terror estendera-se a todo o arraial. Diríeis que os demónios desalojados dos corpos das mocetonas, exasperados de raiva satânica, tomaram à sua conta fazer ali um inferno provisório, mesmo nas barbas de S. Bartolomeu!
Ouvi o retintim das baionetas sacudidas dos seus engastes pelos paus certeiros dos barrosãos, bandeados na hoste de Mondim. Divisei os doze soldados espremidos entre as multidões inimigas. De repente os de cerva fizeram pé atrás; os de Mondim também, e por momentos reinou um silêncio, que devia ser como a serenidade de um céu torvo de borrascas na intercadência de dois raios. Que suspensão fora aquela? Cingi-me com a guarda da ponte, e cheguei ao meio. Avizinhei-me do primeiro grupo dos dalém, e ouvi dizer que, no afogo da briga, Isabel do Reguengo se lançara entre as vanguardas dos combatentes, e bradara: «Matem-me primeiro a mim!» E, dito isto, cruzara os braços.
Vítor de Mondim reconheceu-a, e clamara aos seus: «Alto, meus rapazes!» e o Lobo de Cerva, cobrindo-a com o seu pau argolado de cobre, exclamara: «Olhai que é minha noiva!»
Assim se explicava o improviso regresso de cada exército aos seus arraiais. Caso digno de memória!
É, pois, certo, que Vítor de Mondim lhe queria muito ainda. Que milagre! Dois anos a vê-la todos os dias santificados, e andar duas léguas para vê-la, duas léguas tão queridas na ida, e outras duas tão longas e saudosas na volta!... Porque assim deslealmente o deixaste, Isabelinha do Reguengo? Porque havias de ser tu mulher como tantas? Que átomos da peste das cidades coavam em tua alma, ó virgens dos arvoredos?
Fui onde estava a gente de Cerva. Isabel comia cavacas, e repartia delas com o Lobo, que ensopava um lenço de seda em camarinhas de suor. Uns pimpões estavam encostados aos paus, cruzando com eles as pernas, outros emborcavam grandes pichéis e canecas de vinho. O meu vizinho morgado José Pacheco de Andrade empanava a cabeça partida, e desequilibrava as pernas, não por causa do terreno, senão que o vinho desmentia nele o característico humano da posição vertical, conquanto o meu vizinho, mais que nenhum outro corpo, com grande glória de Newton, pendesse ao centro da terra.
Aí por volta das três horas vieram parlamentários dalém, propondo a passagem livre das rondas de parte a parte. O morgado tomou a si o encargo de responder, e tartamudeou:
— Não há convenções! O mundo acaba-se aqui hoje!
Disse, e deu ares de se acabar primeiro que o restante do mundo. Cambaleou floreando o cerquinho elástico, tropeçou no próprio pau, e caiu na calçada, que, porventura, a fantasia rica e ardente lhe afigurou almofadada com toda a flacidez convidativa de um longo sono.
Os parlamentários foram repetir com gravidade as palavras do ébrio. Rompeu de lá temerosa grita, e logo o tiroteio.
Lobo depôs o varapau, e pegou da sua clavina de dois canos. Isabel segurou-o pelos alamares de prata da jaqueta, rogando-lhe que se aquietasse. O bravo, que seguia a máxima do «morra o homem e fique fama» sacudiu de si a moça, e bradou:
— Rapazes! À ponte!
Ergueram-se todos, e o próprio morgado lá das trevas espessas da sua modorra, ainda rugiu:
— A eles!
Os de Mondim, quando ouviram o instrumental, avançaram à entrada da ponte. A passo igual iam ganhando terreno uns e outros.
Uma voz estridente se fez ouvir por sobre a algazarra dos brados e toada da música. Era Vítor de Mondim que bradava:
— João Lobo de Cerva!
Lobo fez calar os seus, e respondeu:
— Quem me chama?
— É Vítor de Mondim.
— Aqui estou.
— Se és homem, sai sozinho, que eu também saio ao meio da ponte.
— Nunca o diabo te mostrou homem mais homem! Aí vou. Isabel lançou-se-lhe ao pescoço, dando vozes de aflição e ternura. E ele repeliu-a com desamor de inimigo, exclamando:
— Que diabo me pedes tu, mulher? Queres que eu caia aqui morto de vergonha?!
E eu estava de ângulo a espreitar, como um santo bispo de Sevilha diz em seus cantares, o qual santo, segundo modestamente confessa, espreitava de ângulo o batalhar de godos e sarracenos.
OMO ELA O AMAVA
(in Noites de Lamego, 6p ed., conforme a 2.a, revista pelo autor, Parceria A. M. Pereira, pp. 147-161, Lisboa, 1970 — Ea ed. 1863.)