Título: Treze contos de sobressalto
Autor: Luisa Costa Gomes
ISBN: 9789722042055
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«Every book holds danger», Simone begins by saying, «Danger is bound up with sailing, sailing with sea, sea with soul. Each book is a danger that wants to go out to sea, that does not reiterate once more the outside world in words (with an embittered nurse’s finger past frayed wounds), nor lobby an abstraction. Whoever wants to go into the soul must go through nothingness, meaning through fear.»[1]
BURNIER, Andreas, aliás Catherine
Irma Dessaur, A Contented Smile, 1965.
PINTADA de fresco, mas já se distingue o grão de ferrugem. A mancha que alastra, subterrânea, até cobrir a grade, o portão. Costumo sentar-me a observá-la, poucos minutos de cada vez, às tardes, vê-la crescer; e outras coisas. Tenho dificuldade em contar, falta-me o hábito. Lembro-me de ter visto a mulher; era domingo, já estava frio; a casa sossegada.
As janelas estão fechadas nas portas de madeira, um coração oco recortado em cada meio; abriu-as uma vez de manhã, quando eu passava, de par em par, por assim dizer, vislumbrei sombras de coisas, fixas; mas à tarde, nunca. Do lado de fora, grades de ferro forjado recobrem as portadas; são cachos de losangos; o ferro é enquadrado por um aro forte, à volta; as redes-mosquiteiro, Jorginho, devem filtrar a luz, esquartejando-a, raio por raio, mas ao mesmo tempo é subitamente matéria, passa-se o dedo, fuma-se lá para dentro, nascem animais e visões; ao fundo da rua, na vala, os insectos borbulham à espera do escuro; ela recolhe a manta, e como vejo o fumo branco da chaminé, volto para casa. Nas floreiras, as rosas, muito sonsas, erectas, são grandes antenas de grilo guardando os parapeitos; já imaginei os quartos, satisfazem-me — devem ser espaçosos e cheirar a bafio; montinhos de pó acolchoando os cantos, onde as aranhas refocilam arranhando, se se abre a janela de repente há grãos de poeira na luz — que vai directamente à cama baixa e amolgada, como um grande pacote de manteiga. Conheço os hábitos desta gente. Não devem ter mobília, esta é uma casa secundária. É porque a abandonam que a preservam, recobrindo-a dos sinais aparatosos da preocupação e do sobressalto. A grade eriçada de picos, e do lado de trás, onde há um muro, enterrei eu laranjas nos estilhaços dos vidros, para os experimentar; são bons vidros, aguçados, rasgaram-nas até ao caroço de um só gesto. As chaves, os corredores, as escadas, eis o que verdadeiramente me aflige. As chaves são, ainda assim, o problema menor. Tudo o que seja mãos, resolvo — os moldes estão prontos desde o primeiro tempo.
O escritor é, por assim dizer, o homem que não soube perder o hábito de fazer redacções; redacção — os passarinhos; redacção — as minhas férias. Mas o falar é a infindável discrição e sem sentido, o mais das vezes. O escritor não. Quando se senta, cruza os pés sob a cadeira e zuca zuca arrasta o braço, como um ponteiro, no mostrador envernizado. Do que o escritor gosta é do arranhar da caneta e do derramar da tinta, fanaticamente, do sentimento do papel em resmas acabadas de comprar; e tem a mania das papelarias, apalpa furtivamente as sedosidades da borracha de lápis, a lisura do caderno de apontamentos; não é homem de absurdos acessórios, mas exige extrema acuidade do clássico arsenal do ofício. Por isso não sou escritor, conto isto apenas porque falhei a minha empresa.
Observava a casa há seis meses. Sabia que vinham só aos fins-de-semana, sentavam-se no pátio; a mulher lia, enrolando o cabelo em pequenas madeixas no dedo, compondo o xaile ou o casaco inesperadamente. Vieram uma tarde dois homens. Compreendi que traziam fechaduras e barras de ferro, que colocaram na porta de entrada e na porta de trás, nas duas janelas de cima; tive de esperar uma semana até aparecerem para aferrolhar o resto das janelas com novas trancas. Isto adiou a minha aventura, e continuei a tarefa de observar e recolher dados para a memória, durante mais três meses. Os corredores ainda me davam que pensar, sonhava — umas vezes eram estreitos, longos, outras alargados com inúmeras portas e arcos. Uma noite pareceram-me atulhados de objectos preciosos, jarrões e estatuetas, e mesinhas muito finas, com embutidos; outra vez eram circulares, imprevisivelmente dirigidos para um lado e outro, labirínticos; acordava a boiar num sentimento falso, uma calma perplexidade. Até que o marceneiro veio retirar a porta da frente, que eu sempre considerara muito frágil, colocando no seu lugar outra mais sólida, entalada na ombreira de tijolo, esboqueirando uma batente de ferro robusta, das que soam cavo e seco.
A casa, envolvida cada vez mais nas suas múltiplas janelas, redes, ferros, grades, portas impenetráveis, rosas, mil fechaduras; eu sentava-me e deixava-me ficar, Jorginho, insensivelmente mais tempo, excitado e fascinado. Sabia que, por necessidade, a escada seria de caracol. Gosto de escadas-de-caracol; põem-me tonto; como se rodasse sem rodar, ando sempre em frente e de súbito estou de costas para mim mesmo; roda-em-mola, ou quando subo a espiral, faço render esse espaço intermédio entre o baixo e o cima, esbanjando degraus e passos, com generosidade.
Decidi esperar, porque sem conhecer os donos da casa lhes adivinhava as capacidades de invenção e malabarismo; não me desiludiram; dias passados, três homens saltaram da carrinha desenrolando centenas de metros de arame farpado, como para uma cerimónia muito solene. Quando acabaram de rodear a casa, considerei que as condições não poderiam melhorar e resolvi-me a tratar de questões de pormenor enquanto o tempo amadurecia e as noites se tornavam mais quentes. Para cada acto há apenas uma ocasião, deve ser bem escolhida quando isto é possível. Não sou eu quem o diz, vem nos livros.
Na noite do arame farpado não voltei para casa. Deixei-me ficar junto da mancha, muito quieto, rememorando e projectando; um homem passou, pediu-me lume; fui subitamente trespassado pelo sentimento de fracasso. Não podia senão falhar. As chaves e as gazuas, os machados, os alicates, as ventosas, as cordas, o pequeno precioso corta-vidros-de-ponta-de-diamante; tudo isto se me apresentou, enquanto medulava as janelas e a porta, os infinitos envoltórios; desejava tanto a gema do olho na casa de clausura, via-me aos pés da escada recebendo a luz no rosto, alterando as sombras nas feições; caleidoscópio; contidas na pele-de-guerra; na desbravada penugem do milagre.
Então, adoeci. Mas, Jorginho, suporto com paciência os golpes baixos do corpo ( que os desfecha sempre de propósito) , e a adversidade imprevista foi saudada e curada; a mancha crescera entretanto; o ferro tinha sido repintado e à porta acrescentaram um batente. Pareceu-me ver uma sombra, por trás de mim, no passeio. Mas olho a casa — a fachada impávida, os arrebiques — a nossa preservação de espírito onde a antena flutua — como a vela única no bolo de aniversário em chamas. Há um ninho de ratos junto à porta no muro; será fácil alargá-lo, destruindo o muro ou cavando uma passagem; fácil de mais, Jorginho. O telhado, talvez por ser negro, tentava-me. A clarabóia não tinha rosas, isso agradava-me. Quando me senti de novo forte, resolvi entrar.
Mas essa noite estava demasiado clara; esperei sentado no passeio até amanhecer; vi enfim a escada, o seu contorno austero, oblíqua. Pus-me a trabalhar o arame farpado; não era tão resistente como supusera, qualquer criança o poderia ter cortado, e mais depressa; lancei a corda à janela de cima, à direita, passei o outro extremo à volta da cintura, e subo a pulso, ventosa aqui, ventosa acolá, até ao primeiro andar; já lá estou, e dum salto atinjo a clarabóia; espreito. É o sótão, um quarto vazio. Há um livro caído no chão, uma garrafa; oiço o sino do carrinho do leiteiro, escondo-me e vou rodando e permanecendo oculto, à medida que ele vai passando na rua; não poderia dizer com propriedade que jogamos às escondidas, o leiteiro e eu, porque ele ignora que eu me escondo. Serro o aro protector, para perder tempo; passo às grades, uma a uma, raspa-raspa, até me doer o braço. Abri as portadas exteriores e risco o vidro, sai uma circunferência muito perfeita. A mão esquerda abre a janela por dentro. Coloco tudo como estava antes; estou no centro dum coágulo de luz — grito de alegria quando me apercebo de que a porta do sótão está fechada e trancada por fora. Trouxe uma carga explosiva, mas escolho guardá-la amorosamente para mais tarde. O machado será utilizado, desenvolvendo todas as prodigiosas potencialidades da sua natureza, nesta circunstância. Abre um rombo no bandulho da porta — no passeio, quando espreito, há um homem parado em frente da casa, que a olha inconspicuamente. No entanto, eu cheguei primeiro; tão verdade que já estou do lado de dentro enquanto tu te embasbacas, chapéu enterrado e cachimbo (o fumo é azul, é de manhã) . As escadas não rangem. Nada me perturba.
Desço como um rei até ao patamar, encarando a mulher despida, na moldura, como um encontro dentro da ordem das coisas. Algo mexe, rearranja a luz musgosa; não sei porque me sento no último degrau, olhando a base do sexto degrau atentamente (o que é que eu esperava? ); e desencorajado. Só faltava o andar térreo, das desancadas poltronas de tela.
Mais vale dizê-lo já: não consigo sair daqui. Não sei o que irá acontecer quando eles chegarem, o mais que posso fazer é imaginar o espanto e a indignação proprietária, familiarizar-me com a ideia da vergonha. Mas não sei sair. A porta está trancada por dentro, a clarabóia é alta de mais para saltar. As janelas são trespassadas por fios eléctricos de alarme — estranho mesmo que a clarabóia não tenha retinido —, não consigo encontrar o comutador. As paredes estão repletas de anúncios e avisos, máximas moralistas (o poema «se» dum tal Kipling, abominável trocadilho em verso branco; a carta dos direitos do homem entre dois castiçais de mármore clamando o direito inalienável à propriedade) . Percorro os dias ern grandes passadas no tapete de remendos, passadas circulares, e sem outro sentido.
O frigorífico está vazio, havia apenas umas conservas na despensa, a fome está próxima, e o fim-de-semana. Dei em sonhar com a casa ao lado; com as suas janelas em ogiva, a chaminé delgada. O homem continua parado no passeio, vem de manhã, observa a clarabóia; a boca distorcida de fumar. Olhamo-nos, enquanto eu procuro verificar a solidez das grades, imaginar o salto; chego a colocar a corda à volta da cintura, atá-la à trave do tecto, e quando ele afinal parte, ergo-me até meio-corpo, ponho o joelho no parapeito e estou de cócoras; a altura enjoa-me de repente, retrocedo.
Esta manhã, ficou mais tempo. Aproximou-se da grade, rodeou uma das barras com a mão direita, na luva preta. Mastigava qualquer coisa; quando eu olhava ele punha muito depressa a mão atrás das costas; eu tinha encontrado uma lata de ervilhas cozidas, tirava-as com dois dedos e comia-as devagar, uma por uma, enquanto o observava. Quando eu descia os olhos sobre a lata para colher uma ervilha, ele aproveitava para dar uma dentada no que quer que fosse que estava a comer e voltar a esconder a mão. Esperava, alterava o ritmo. Mas não consegui saber o que era. Quando parou de mastigar ficou muito quieto, fixando um ponto (imagino que seria a mancha). Depois olhou atentamente a casa ao lado, a que eu agora cobiçava; acendeu o cachimbo e retomou o caminho, para o lado da vala.
ÀS três da tarde não devia haver ciclistas. Destes que decidem atravessar sem aviso prévio — ia a beber duma garrafinha de água que voou cinquenta metros.
Pela esquerda deslizam chapéus e cotovelos cujos olhos evita, das suas molduras de vidro; imóvel, calcula que não podem ver o corpo — bicicleta caída mais à frente, o volante encaracolado, a roda vã girando no ar... e como o corpo sangra. Do chão fixa mansamente o farol aceso.
As mãos tremem e o depósito da gasolina está meio vazio; o tapete tem manchas de lama seca, a maçaneta perdeu a cabeça e o só problema, o que conta, é que não há um mapa no porta-luvas, na pasta.
A única certeza — é uma auto-estrada. Que auto-estrada não sabe dizer, não sabe por onde começar a pensar. Vítima de sinalização derisória. Um cartaz diz obras a cem metros ( não existem) , outro — perigo — de repente é uma auto-estrada lânguida comendo as suas vacas pelas bermas e no verde — começar por um ponto de referência nebuloso, paira a luminosa seta vermelha cris aponta talvez para cima, estertor e morte do sistema, orienticida.
Esconder o corpo.
Aproximam-se mais chapéus e bandeiras, há uma festa num sítio algures — enumera os mais prováveis —, a minimaratona do norte, a gincana de trangalhadanças, a ele homem de festas o que lhe foi acontecer.
O que me foi acontecer, um cartaz diz-me Dortmund outro Marlboro, um pouco roído, um deles pelo menos devia ser azul, mas são ambos escritos à mão, provisórios, propositados, um depois do outro em pouco espaço, eu sei o que é Dortmund, é onde eu vivo, talvez esteja a voltar para lá — saio do nevoeiro. Suponho que há uma relação entre todas estas coisas, mas foi-se-me a alma de abacista e o fôlego nas contas, cem metros, mais/cem metros, um sinal mais um sinal, dois sinais a cem metros igual a saber onde começou o nevoeiro e-onde acabou, talvez os cálculos me levem para longe de Dortmund. Suporto com brandura o ordálio — o nevoeiro, a auto-estrada, o acidente.
Orientar-se, é a partir dum ponto dado, ordenar tudo — e pensou ter arrumado a questão do mapa. Mas que ponto é esse, o ponto em que estou, à minha frente, atrás de mim, o amolgão no farol à esquerda, o corpo à minha direita, definido o sistema das coisas neste momento como ordenar o lugar para onde vou se o desconheço, se desconheço-o próprio lugar onde mato um homem? é preciso antes conhecer tudo.
Deixar aí a bicicleta.
O homem volta a sangrar, mancha, andara vinte quilómetros — o pisca-pisca ficou preso, teria de voltar indefinidamente à direita, criar um círculo e percorrê-lo preso ao mesmo centro, um picadeiro de areia movediça. Enterrá-lo, puxar da pá e enterrá-lo.
Se o ponto de referência se move, tudo viaja com ele; se eu vou, tudo irá comigo, o mostrador, o corpo, a mala, nas posições respectivas, a planície perder-se-á, aparecem montes ao fundo, chaminés e outra planície impondo-se muito branca, não saberei se é a mesma, compreendo unicamente o morto que posso dizer lestá à minha direita mas só enquanto eu estou à sua esquerda tudo isto conheço com rigor. E mais dada, o resto é sorvido, como a bicicleta, a minha casa, ontem, na mesma espiral e à frente os aros são tão largos que os não posso ainda definir.
Viajar para Dortmund.