Título: A Pirata
Autor: Luísa Costa Gomes
Design de capa: Atelier Henrique Cayatte
Revisão: Eulália Pyrrait
ISBN: 9789722042444
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Para o Nuno e o João; o Tomás; a Ágata, a Rebeca e a Francisca; a Madalena; a Isabelinha, a Madalena e a Luisinha; a Rita e a Vera; a Leonor, a Margarida e a Joana; o Vasco, o João e a Carminho; a Bárbara e a Inês; a Bárbara e a Maria; o André; o João e a Carolina; o Rodrigo e a Benedita; o Robin; o Francisco; o Luís Eduardo; e o bebé da Rita e do Zé.
O problema da mãe. O primeiro marinheiro. Nasce Mark.
O segundo marinheiro. A casa da ama Rose.
A mãe da Mary Read tinha um problema, que era gostar imenso de rapazes. Muito pequenina já ela fugia de casa a tropeçar nos tamancos e corria para os cais do porto de Londres. Ia olhar para os meninos sempre atarefados, como homenzinhos, a fazerem coisas de gente grande. É estranho, e até difícil de acreditar, que a mãe de Mary Read não tivesse curiosidade pelo mar. Não lhe interessavam as viagens, nem as grandes naus mercantes, nem as coisas fascinantes que de lá saíam. Ela queria era um rapaz, ou mais que um, para ter em casa. Um dia trouxe um menino pela mão, deu-lhe uma tigela de sopa, mas assim que se sentou num banquinho ao lado dele a alisar a saia, o miúdo fugiu espavorido aos guinchos pela porta. Quando cresceu, a mãe de Mary Read tornou-se um pouco mais tímida e em vez de ficar embasbacada a olhar para os rapazes à vista de todos, escondia-se e espreitava-os de trás das sacas e dos caixotes e dos barris que atravancavam o cais.
Chamava-se Jenny. E foi crescendo. Ficou uma mulher. Houve então um marinheiro que se encantou por ela e casaram e tiveram um bebé chamado Mark e depois o marinheiro fez-se ao mar e nunca mais voltou. Mas Jenny deixou de ser apenas a Jenny e passou a ser a Mrs. Read, que era uma coisa que a enchia de orgulho e satisfação. Ia muitas vezes ao cais perguntar pelo marido a um marinheiro que o conhecia e que o acompanhara em tempos numa viagem. E tantas vezes lá foi perguntar que acabou por se apaixonar pelo rapaz. Não foi amor à primeira vista. Foi aí à décima quinta vista. Apaixonou-se por ele aos bocados, num dia pelo sorriso dele, que era ao mesmo tempo franco e fugidio, no dia seguinte apaixonou-se pela expressão do olho direito dele quando dizia que o marido dela ainda não voltara. E assim por diante, até que ao fim de uns quinze dias, a Mrs. Jenny Read estava apaixonada pelo marinheiro completo e ele também um bocadinho por ela. No decorrer do tempo, deitou-se com ele e fizeram um bebé para juntar ao outro que ela já lá tinha em casa e também o bonito marinheiro no decorrer do tempo se fez ao mar, deixando no cais a Mrs. Jenny Read muito chorosa e com um bebé e meio. Ou seja, um dentro da barriga e um fora da barriga.
Ora é preciso saber que esta história se passa em finais do século XVII, em mil e seiscentos e muitos, muitos, e que nesse tempo as mães não podiam ter nem bebés nem meios bebés sem estarem casadas numa igreja e sem terem, portanto, um marido. A Mrs. Read tinha casado assim de igreja com o primeiro marinheiro, mas com este último marinheiro não pudera casar pela simples razão de que era casada com o primeiro, que embarcara e não se sabia se estava vivo ou morto. Como ela conhecia muito bem a crueldade dos vizinhos e das vizinhas — e sobretudo da sogra que havia de lhe fazer todo o mal que pudesse —, a jovem Mrs. Read resolveu deixar Londres. Fez a trouxa, pegou no pequeno Mark, e refugiou-se longe, numa casa no campo, até nascer a segunda criança.
Não sei bem a quem pertencia esta casa, mas suponho que seria a uma mulher chamada Rose, que era ama de leite. Esta mulher era enorme, com peitos enormes, e olhos enormes, e umas orelhas pequeninas, e espetadas, muito plácida e parecia, sem ofensa, uma vaca. Dava essa impressão por causa dos olhos que eram muito grandes, pretos, afastados um do outro e com umas grandes pestanas direitas. Rose mexia-se pouco, ficava sentada na cozinha a olhar para a lareira, porque estava um frio dos diabos lá fora. A Mrs. Read, habituada ao bulício da cidade em que as pessoas vivem todas umas em cima das outras e há sempre barulho de conversa nas ruas, de carroças a passar, de cavalos, pregões e feiras e mercados, aborrecia-se de morte no campo. A vantagem de uma pessoa se aborrecer de morte é que ao fim de um certo tempo começa a ter ideias. No caso da Mrs. Read não seriam boas ideias, mas eram ideias. Pensou em abrir uma queijaria; uma chapelaria; uma padaria; uma peixaria; uma relojoaria; uma hospedaria; pensou fabricar tónicos e elixires; pensou aprender a fazer retratos em miniatura. Para todas estas coisas era preciso tempo e dinheiro. Tempo ela tinha de sobra, o dinheiro é que era poucochinho: só aquele que o marido lhe dera para o Mark antes de embarcar e mais algum que conseguira da venda da mesa e das cadeiras.
Morre o pequeno Mark. Jenny Read deita-se na cama.
Mary trepa pela ama Rose. Ressurreição de Jenny.
Aconteceu então uma grande tragédia. O pequeno Mark, que na altura teria talvez um ano e pouco, morreu. De repente teve uma febre alta e na manhã seguinte não respirava. A mãe teve um grande desgosto e meteu-se na cama sem vontade de viver. Pouco depois, nasceu a nossa Mary. A mãe não lhe queria chamar nada, nem queria saber disso para nada, foi Rose que disse que ela se havia de chamar Mary como a Rainha que reinava em Inglaterra naquele tempo. Mary era um bebé sorridente e muito trepador. Não sei se conhecem este género de bebé que gosta de trepar pelas coisas e pelas pessoas acima. A primeira pessoa a quem Mary subiu foi Rose, que parecia uma coisa enorme sentada e imóvel, uma colina, um rochedo, ou pelo menos uma árvore. Mas uma coisa a que não havia perigo subir, porque amparava a queda. Mary trepava-lhe para o colo, agarrava-se-lhe ao pescoço, subia-lhe para os ombros, punha-se de joelhos e depois sentava-se em cima da cabeça de Rose e ria-se muito. Rose dizia a rir:
— Estás a fazer de chapéu, Mary?
E ela descia pelo outro lado, ia a correr até à porta da cozinha, espreitava para fora, apontava qualquer coisa, dizia uma frase que ainda não se percebia e voltava a correr para subir pela Rose acima. Jenny, deitada na cama, virava-se de costas para elas e tapava os ouvidos. Irritava-a o riso da menina e as corridinhas até à porta. Parecia que a vida dela tinha parado quando parara a respiração do filho. Sufocava, sem conseguir aprender a respirar outra vez. Mas um dia, quando Mary tinha pouco mais de um ano e como acontece às vezes, sem razão nenhuma de especial, Jenny ressuscitou. Acordou muito cedo, ainda não era dia, e doíam-lhe as costas por ter estado deitada tantos meses. Levantou-se, vestiu-se, bebeu uma grande tigela de leite e sentou-se em frente da janela a pensar no futuro. E estava tão embrenhada a pensar, que não viu Mary levantar-se do cesto de verga em que dormia aos pés de Rose. Mary veio devagarinho pôr-se ao lado da mãe e ficou a olhar para ela. E quando por fim a mãe acordou daquele pensamento sobre o futuro e olhou bem para Mary, viu Mary com olhos de ver, e achou-lhe imensa graça. Porque ela era engraçada, era ruiva, tinha um narizinho minúsculo que mais parecia um botão e umas bochechas coradas do calor da cama. Jenny pegou-lhe ao colo, tirou água do cântaro, aqueceu-a e deu à Mary um banho quente. Depois sentou-a em cima da cama e começou a experimentar nela a roupa que fora de Mark. E toda a manhã vestiu e despiu Mary, e lhe provou cueiros e meias de lã e calções e casaquinhos com muitos botões e toucas. E de cada vez que lhe vestia qualquer coisa ria-se e batia palmas e Mary estava a achar-lhe também imensa graça. Jenny tinha uns belos cabelos fortes, muito compridos, que os meses de cama tinham tornado ainda mais sedosos e Mary subia por eles acima e lá em cima agarrava-se às orelhas da mãe e olhava fundo nos olhos dela, muito junto da cara.
Jenny leva Mary a passear. Um pastor sem uma perna.
O cão acrobata. O rabo de uma ideia. O que é uma síntese?
Depois foram passear a um bosque que havia ao pé de casa. Mas Jenny ia outra vez a pensar no futuro. Sabia que não podia continuar muito mais tempo em casa de Rose. Tudo o que tinha era para lhe pagar a hospedagem e mesmo assim sobrava uma dívida. Mary começou a trepar a um grande carvalho, pé aqui, pé ali, e a mãe sentou-se à beira de um regato a olhar para a água que corria entre as pedras. Nesta altura ouviu uma voz atrás dela que dizia muito alto:
— Mas que belo pimpolho vocemecê ali tem! — e quando se virou viu que quem falava era um pastor só com uma perna, arrimado a um cajado, mas o mais interessante do pastor (do ponto de vista de Mary, que desceu imediatamente da árvore) era o cão do pastor, que só tinha um olho. Mas o outro olho, o olho que restava, era azul e límpido como a água do regato. Este cão gostava de fazer habilidades, ao contrário de outros cães que por aí andam, a quem se pede e se volta a pedir, e se ordena e se volta a ordenar:
— Senta! Deita! Rebola!
E eles nada. Mas este cão, que tinha andado com o pastor na guerra em que ele perdera uma perna e o cão um olho, tinha sido a mascote do batalhão na guerra do pastor e adorava entreter e divertir. Assim que Mary se chegou ao pé dele, sentou-se logo, deu a pata, cumprimentou, cantou, ladrou uma canção popular, fez o pino nas patas da frente, depois empinou-se como um corcel em fúria, equilibrou o cajado do pastor na ponta do focinho, rebolou pelo chão e ficou de patas para o ar e Mary fez-lhe festas na barriga.
— Está bom o seu menino, está forte! — disse o pastor.
Uma ovelha, lá ao fundo, no pasto, baliu. Jenny ia para responder que Mary não era menino, que era menina, mas alguma coisa a parou, porque acabava de ter o princípio de uma ideia, mas ainda não era uma ideia toda bem formada, era só o rabinho de uma ideia, como um gato com o rabo de fora. E enquanto assistiam às loucas habilidades do cão pastor, Jenny foi puxando pelo rabo da ideia, até que ela se mostrou completamente e a ideia toda era esta assim: a avó de Mark. Isto é o que se chama em Filosofia uma síntese. Porque a ideia toda completa e por extenso era mais comprida: se fosse possível enganar a avó de Mark, Mrs. Read, mãe do pai de Mark e sogra de Jenny, convencendo-a de que Mary era o irmão (que morrera mas ela não sabia), então ela havia de ajudar Jenny a criar o que ela julgava ser o seu próprio neto. Jenny achou que teria de usar este estratagema. Os estratagemas servem é para serem usados em situações como esta. E assim Mary tornou-se no seu irmão e foi com a mãe para Londres, conhecer a «avó».
As tropelias de Mrs. Read. Estranhos insultos. Uma mentira piedosa.
Cavalgando pela vizinhança. As negociações para a semanada.
A analogia com o galgo.
Esta Mrs. Read que vivia numa rua suja e desgrenhada de Londres não era, não julguem, uma dessas avozinhas amorosas das histórias para crianças. Era uma criatura guinchona e invejosa, sovina e malcheirosa, que passava o dia a implicar com toda a gente. Chegava a ir a casa das pessoas propositadamente para as insultar, sem razão nenhuma. E sobretudo insultava-as de uma maneira esquisita, que elas não percebiam, e não percebendo, não sabiam bem como reagir.
— Seus palonços! Pezudos patinhadores e espezinhadores de bosta de cavalo e de palha encharcada em porcaria de porco! Seus felpudos granulosos! Seus barbudos arquibundos! Venenosos adiposos! Incontinentes piolhosos! Gasosos! Imundos verbosos!
Se ela lhes chamasse coisas horríveis, mas que eles pudessem reconhecer, os vizinhos responderiam à letra. Oh, se responderiam! Mas assim, a velha Read não passava de uma bruxa louca, coitada, que era preciso aturar. E quando acabava de os insultar, a velha Read roubava-lhes roupa do estendal! Toda a gente sabia que era ela que roubava! E era a esta mulher horrorosa que Jenny ia pedir ajuda? Ora, adeus!
Quando Jenny passou a porta de entrada da velha Mrs. Read com a pequena Mary pela mão, Mrs. Read não reparou em Jenny, nem viu que ela trazia apenas uma trouxa muito pequena de roupa, e que parecia exausta. Mrs. Read viu exclusivamente o seu pequeno Mark e os caracóis ruivos despenteados e os olhos verdes todos a rir e nem foi preciso Jenny mentir, porque a alegria da velha Mrs. Read foi tão imensa ao ver o neto que ela julgara perdido, que teria sido uma verdadeira crueldade dizer-lhe a verdade.
Afastou Jenny, pegou em Mary, pô-la em cima de um banquinho e, ajoelhando-se diante dela, começou a brincar e a falar essa língua esquisita que as pessoas de certa idade falam com as crianças:
— Ó meu anjinho lindo! Meu netinho adolado! Quele um biscôtinho, quéle? Um bolachita? Quéle que a vovó dê biscôtinho ao menino? Olha que lindos olhos, olha que belos calacóis luivos! Vamos passeále os dois?
Mary saltou-lhe logo para as costas e a velha Mrs. Read trotou pela cozinha e saiu para a rua suja e desgrenhada e galopou para casa da vizinha mais próxima, gritando:
— É o meu netinho Mark que eu julgava perdido! É o meu querido netinho Mark que vem viver comigo!
Jenny estava a ver que lhe saíra mais que a encomenda. Ainda bem que a sogra acreditava que se tratava de Mark, mas também era preciso que ela percebesse que Jenny é que era a mãe e que não iam viver ali as duas com ela, porque só precisavam, digamos assim à maneira moderna, de apoio financeiro. A velha Mrs. Read, depois de muito cavalgar pelas vizinhanças com Mary às costas, parou. Jenny pôs-se então a negociar com ela em voz baixa e bzzz para cá e bxxx para lá:
— Não dou mais!
— Sim, um pouco mais!
— Já é demais!
— Não é nada demais!
— Desgovernada!
— Chega sim!
— Não chega, não, que o menino precisa de comer carniça de vez em quando!
— Qual carniça, onde é que já se viu?
— Olhe, guarde mas é o seu dinheiro, velha forreta, a ver se me ralo!
— Ah! não precisas do meu dinheiro? Orgulhosa!
— Prefiro andar a pedir à porta das igrejas!
— Então, está bem, que seja pelo meu querido netinho!
E ficou combinado que Jenny viria a casa de Mrs. Read com Mary todas as semanas buscar uma moeda. Jenny e Mary foram viver para perto das docas, onde havia umas casinhas podres e húmidas e baratas, e com baratas e percevejos e pulgas e piolhos e todos esses muitos e variados insectos e bichos interessantes rastejantes que viviam com as pessoas nesse tempo antigo. Jenny voltou a encontrar os rapazes que trabalhavam no porto e embarcavam nos navios mercantes ou iam para a guerra (havia sempre guerras para entreter os rapazes) e em pouco tempo arranjou uns dois ou três que não lhe largavam a porta e com quem ela e Mary iam passear ao longo dos cais do Tamisa. Mary olhava e olhava para os barcos e quando eles zarpavam, barrigudos, no vento, ela ficava de repente muito parecida com um galgo que cheirou uma perdiz. Para quem não sabe o que é um galgo, trata-se de um cão de caça muito esperto e muito veloz e que não pode ver uma perdiz! Corre logo como uma seta atrás dela e não descansa enquanto não a abocanha e a traz ao dono. Mary esticava o focinho (salvo seja) e punha a pata no ar e ficava com o corpo todo tenso e cheio de intenção.
Caça à semanada. A avó Read bate com a cabeça.
Começa o século XVIII.
Eu continuo a chamar-lhe Mary mas de facto ela andava sempre vestida de rapaz, e toda a gente lhe chamava Mark e ninguém podia saber o segredo dela. Todas as semanas ia a casa da velha Mrs. Read e todas as semanas ela escondia a moeda da semanada num sítio diferente e fazia com que Mary a procurasse. E todas as semanas Mary procurava e acabava sempre por encontrar: uma vez por baixo da enxerga, outra por trás da porta e outra debaixo do banquinho, e ainda outra vez por cima do fogo da cozinha e outra dentro do bolso e outra no vaso de uma única rosa cor-de-rosa, que era a coisa mais bonita que lá havia em casa; e dentro da arca, enrolada na roupa; e outra vez debaixo da candeia; e uma vez até teve de subir ao telhado e procurar no colmo e outra vez encontrou a moeda dentro do pão! Até que uma semana chegaram a casa de Mrs. Read e não houve moeda nenhuma e uma mulher muito alta lhes disse numa voz roufenha que Mrs. Read tinha escorregado na lama e batido com a cabeça numa pedra e morrido logo ali no meio da rua. O que não lhes disseram foi que Mrs. Read vinha a correr à frente de um casal de vizinhos a quem ela roubara os únicos calções de fivela que estavam estendidos a secar ao pé da porta. A morte da velha Read era um sério contratempo, dado que ia haver grandes festejos do virar do século (daí a três dias entrava-se no século dezoito) e Jenny já tinha destinado grande parte da moeda ao pagamento de uma casaca para Mary e uma bela saia de lã da Escócia para ela, de modo a estarem mais que preparadas para as celebrações. E esta falta da moeda não calhava nada bem. Mas foram as duas às festas e viram o fogo de artifício que celebrava o final do século, que fora um século terrível, cheio de peste e fogo e morte e guerra, e agora entrava o ano de 1700, que era fim de um tempo e ao mesmo tempo princípio de outro tempo que se esperava que fosse de paz, boa saúde e abundância para todos.
A Madame propriamente dita. Descrição física,
psicológica, sociológica e patológica. Mary é vários criados.
Diálogo entre Solange e Solange. O longínquo País de Gales.
Ternas despedidas.
Madame Jeanne Elianne Monge Leponge de Bijoujaune (lê-se: jáne eliáne monge leponge de bijujône) era uma snob insuportável. Parecia um pão-de-ló polvilhado de açúcar muito fino. Era gorda e amarelada com os olhos muito redondos e juntos, como dois berlindes, e a cara toda branca do pó-de-arroz. As sobrancelhas fininhas faziam a forma de um V invertido, o que lhe dava sempre um ar triste, desolado e aborrecido. Estava sempre cansada e sempre sentada e sempre a dar ordens. Dá-me isto, traz-me aquilo, ó Mark corre a buscar-me as cartas de jogar! Ou tossicava, apontava para Mary com o leque e dizia:
— Ó Mark, vai-me lá acima buscar o leque!
E Mary dizia:
— Madame tem o leque na mão.
E Madame dava-lhe uma sapatada com o leque onde calhasse. Mary tinha uma vontade incontrolável de lhe pregar partidas e uma ou duas vezes ainda lhe escondeu o leque, mas depois era tão fácil aborrecê-la, que já nem tinha graça. O que mais a irritava era aquela mania que a dita Madame tinha de rezar por tudo e por nada e de obrigar Mary a ajoelhar e a rezar com ela e com os outros criados ao deus dos franceses. É verdade, ouviram bem. O deus dos franceses.
Em casa dela, onde Mary trabalhava como Mark, era tudo a fingir. Tinha três criados, mas fingia que tinha aí uns dez. Quando havia visitas, armava um verdadeiro teatro, e obrigava-os a mudar de casaca e de cabeleira como se fossem personagens diferentes numa peça de teatro. A cozinheira Solange fazia de camareira e de cabeleireira, arranjava o banho que a madame tomava uma vez por semana de semicúpio, era criada de fora, atendia à porta, e muitas vezes era obrigada a dar ordens a si própria e a ser a sua própria ajudante.
— Ó Solange, vai ao mercado e traz-me uma couve-de-bruxelas para a sopa! (A que Madame Jeanne Eliane Monge Leponge de Bijoujaune chamava potage princesse royale).
E Solange respondia:
— Agora não posso, Solange, tenho de ir arear as falsas pratas, vai lá tu!
— Agora não posso! — respondia Solange a Solange. — Tenho de ir pentear a peruca da Madame, já são quase horas da ceia, a Madame vai zangar-se.
Mary tratava de tudo o que havia a tratar e que nem Solange nem Jacques (o calaceiro do camareiro trapaceiro) tratavam. Cuidava dos dois magros cavalos, que a bem dizer era só um, porque o outro praticamente nem se conseguia aguentar nas canetas, e tratava da carruagem da senhora, e andava acima e abaixo o dia todo e às vezes parte da noite quando a senhora tinha amigas a jogar às cartas até ao romper da aurora. E estava a ficar farta de vestir e despir casacas e calções para fingir que era aí umas cinco pessoas diferentes (Antoine, Joseph, Albert, Baptiste e Mark) e ainda por cima nenhuma delas era a própria Mary.
Mary tinha nesta altura uns treze anos e era alta e forte. Tinha as pernas compridas, as mãos grandes, e ao fim de pouco tempo as casacas já lhe ficavam apertadas nos ombros e no peito. Gostava de subir e descer escadas a quatro e quatro, desde que não a obrigassem a fazê-lo. Quando a Madame lhe dizia para ir buscar isto ou que lhe trouxesse aquilo, ia por ali acima o mais devagar que lhe era possível. Queixou-se um dia à mãe de que aquele trabalho era estúpido e que a aborrecia ficar às ordens da viúva francesa para sempre. Mas Jenny, que entretanto se tinha apaixonado por um velho marinheiro que lhe propusera reforma e casamento, disse-lhe que não havia alternativa, que ela teria de ficar ali com Madame J. E. M. L. B. para ter um tecto, uma cama e algum dinheiro, ainda que muito incerto. E assim se despediram mãe e filha. Jenny partiu de Londres para o longínquo País de Gales com o velho marinheiro, que tinha família numa pequeníssima aldeia junto ao mar, e Mary nunca mais soube nada dela. Teve imensas saudades mas ao fim de uns meses aceitou que a vida era mesmo assim, as pessoas ficam connosco uns tempos e depois vão à vida delas e ela já era crescida e havia de fazer o seu próprio caminho.
Uma bela manhã subjectiva. O gigante que rimava.
O ensino à pancada. O buçozinho de Mary. A língua dos marinheiros. Falta joie de vivre.
Mas não ficou em casa de Madame J.E.M.L.B. muito mais tempo e uma bela madrugada fugiu para o porto e embarcou num galeão que levava tropa e mantimentos para a guerra da Flandres que não era longe, mas metia água pelo meio. Quando digo uma bela madrugada quero dizer que era uma bela madrugada na cabeça de Mary (era a madrugada de uma libertação), porque fora da cabeça de Mary estava um nevoeiro húmido e cerrado, um frio de rachar e o galeão rangia por todos os lados e fazia um barulho medonho. Ainda por cima, ela saíra da casa de Madame J.E.M.L.B sem comer.
O capitão da nau era um gigante tonitruante com uma pala negra no olho zarolho que rimava sem querer e que sempre que rimava sem querer só lhe apetecia era bater e ficava tão furioso (o que dava aos marinheiros imenso gozo) que começava a distribuir estaladas e palmadas e murros aos urros e quanto mais tabefes distribuía mais rimava e mais eles se riam e mais furioso ele ficava. No entanto, esta distracção não era suficiente para fazer com que Mary gostasse de estar no galeão, que ia ainda por cima cheio como um ovo e mal podia navegar. A vida a bordo era no final de contas muito parecida com o trabalho em casa de Madame Jeanne Elianne Monge Leponge de Bijoujaune, e consistia numa correria de tarefas e de serviços pesados que Mary tinha de aprender o mais das vezes à pancada, não porque fizesse mal as coisas, mas porque era normal para o gigante tonitruante, os marinheiros e os soldados ensinarem tudo à pancada. E sempre com medo de que os marinheiros descobrissem que ela era rapariga, porque já tinha o peito crescido e as ancas redondas. Tinha de usar uma faixa atada à volta do peito, mas felizmente tinha um buçozinho ruivo que ela cofiava para dar um ar masculino. É preciso saber que nesse tempo era absolutamente proibido haver mulheres a bordo dos navios, porque os marinheiros eram muito supersticiosos e achavam que as mulheres dentro do barco davam azar. E, de facto, davam, porque como só havia uma mulher e aí uns cem homens naturalmente surgiam sempre brigas. Mary dormia no convés do galeão, no meio dos cabos e das barricas e dos patos e das galinhas, e das cabrinhas, para não ter de ouvir os palavrões dos marinheiros e dos soldados que jogavam aos dados e bebiam cerveja amontoados no porão.
A primeira coisa que Mary teve de aprender foi a língua dos marinheiros. É verdade que eles falavam inglês, mas era um inglês feito de palavras e expressões incompreensíveis para quem não fosse do ofício. Mary teve de aprender os nomes das várias partes do barco, as dimensões e as peças do navio, os tipos de mastreação, como funcionavam as âncoras e os vários tipos de amarração, como se chamavam os diferentes mastros e as velas, as funções de cada um dos oficiais e quem é que mandava o quê e em quem. Como grumete, tinha de fazer de tudo: dar ao cabrestante para içar a âncora, largar os cabos, subir aos mastros, içar as velas, ferrar as velas, lavar e raspar o convés, pôr breu nas fendas para calafetar o navio, remendar as velas. A verdade é que para o trabalho nesse barco devia haver uns cem pares de mãos e o capitão só contratara dez pares. Os soldados não faziam nada de útil, excepto limpar as armas, brigar, beber, jogar e fumar cachimbo. E assim Mary passava o dia a trabalhar, e tinha fome e frio e medo do gigante e por isso não reclamava como dantes. Começou a emagrecer e a perder a força e aquela alegria de viver que já tinha nascido com ela e que até aí nunca a tinha abandonado.
Truque na taberna. Um cartaz muito atraente.
Os mais espertos fogem. Elogio da vida militar.
Mas a vida no galeão ia durar pouco tempo. Numa das viagens, fez escala nos Países Baixos para descarregar tropa e armamento para os Exércitos Aliados. Estes incluíam os ingleses, os holandeses, os dinamarqueses e mais uns alemães, que estavam em guerra contra os franceses e os espanhóis e mais outros alemães. A causa da guerra, como de tantas outras antes e depois dessa, era a sucessão ao trono espanhol. Luís XIV de França queria que o trono ficasse para o neto, para unir a França e a Espanha, e os ingleses e os holandeses, que tinham o mesmo rei, queriam no trono um príncipe alemão para evitar que existisse na Europa uma superpotência que pudesse pôr em perigo a independência das outras nações europeias.
Mary foi com os marinheiros a terra fazer a ronda das tabernas. Estavam eles a beber à compita como era costume e a cantar a plenos pulmões, quando entraram dois soldados ingleses fardados a rigor e se encostaram ao balcão e se puseram a olhar para os marinheiros todos sorridentes. Por trás deles, pregados numa tábua, por cima do balcão, estavam dois cartazes de propaganda ao Exército da Rainha Ana de Inglaterra. Num dos cartazes havia uma pintura em belas cores fortes de um cavaleiro, um Dragão da rainha, no seu uniforme de gala, de espada ao alto, montado num belo corcel empinado; esse homem assim pintado ria-se e parecia gozarem pleno a glória da vida militar.