Ficha Técnica
A DIVINA MISÉRIA
Autor: João de Melo
Publicações Dom Quixote
[Uma editora do Grupo LeYa]
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide • Portugal
Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor
© 2009, João de Melo e Publicações Dom Quixote
Design: Atelier Henrique Cayatte
Revisão: Clara Joana Vitorino
ISBN: 9789722042666
www.dquixote.pt
Uma rua não é uma rua, uma casa não é uma casa; nada é igual a nada,
tudo é normal, tudo é excepcional.
Julio Cortázar
(transcrito de memória)
Os barrocos amavam os equívocos. Calderón e outros com ele elevaram
o equívoco a metáfora do mundo. Suponho que os animava a crença de que,
no dia em que despertarmos do sonho de estarmos vivos, o nosso equívoco ter
reno ficará finalmente esclarecido.
Antonio Tabucchi
Dedicado àqueles que nem sempre podem
manter a fé e a esperança em Deus, na Igreja
e na América – e a caridade não é para aqui chamada.
Capítulo Primeiro
COMO SABE, SENHOR, A MORTE DE UM HOMEM É
SEMPRE UMA DESORDEM INFINITA. OS OBJECTOS QUE ATÉ
então lhe pertenciam ficam desde logo sem préstimo nem função para a vida; caem no torpor e no atordoamento – vagos, sem utilidade, sem alma. Falta-lhes o movimento, o sangue, o calor das mãos que os usavam. Falta-lhes o tempo, a idade, a saúde para que foram criados. Sobretudo, senhor, falta-lhes o ser. A própria matéria reduz-se à sombra que lentamente arrefece e depois se extingue nos quatro cantos da casa – que acaba também por esmorecer e mudar de cor. Nela, o ar torna-se irrespirável; o sol, desnecessário, oblíquo. E tudo se apaga, tudo deixa de ser real. A razão de ser das coisas não reside na sua natureza material, mas antes na metafísica existencial, que é a explicação de todo e qualquer objecto; ela como que emerge do fundo da sua própria extinção, da ausência dessa luz que lhes vinha animando a existência.
Digo-o, senhor, porquanto claramente vi que os espelhos do vestíbulo, ao receberem o sopro derradeiro e o suspiro da sua agonia, se aveludaram de bagas de humidade – como se o alento do morto tivesse voado ao encontro deles nesse mesmo instante – e deixaram de ser os olhos discretos da casa. A memória do defunto evadira-se-lhe do corpo. Estava sendo como que amarrada aos aspectos ignorados do mundo que fora o dele, mas que agora nos parecia estranhamente distante, inerte, à beira do vazio. Como se dali o tivessem varrido os ventos loucos do esquecimento.
Eu nunca estivera antes na casa do padre, compreende o senhor? Não tinha vida nem estômago para isso. Era, nesse tempo, um homem de mil ofícios e caminhos. O mundo sobrevivia, sabe como e porquê? Ora, porque eu o desratizava. Subindo e descendo, por ladeiras e estradas, essas aldeias todas do Nordeste, tocava o meu realejo à entrada da rua principal, vinham logo bandos de homens e mulheres a correr ao encontro dos meus serviços. Via-se-lhes nos olhos as vidas carregadas de pobreza e de uma tristeza sem remédio. Ou tinham tulhas cheias dessas pragas de murganhos que eu devia exterminar, ou traziam-me facas e tesouras e alfaias agrícolas a afiar à lima, ao esmeril, até à lixa grossa; ou então apresentavam-me guarda-chuvas com varetas e molas partidas, e outras ferramentas a precisarem de um conserto destas minhas mãos de mecânico de tudo e mais alguma coisa. Amolava enxós, serras, serrotes, ferros de arado, foices de ceifar trigo ou roçar silvas, o inferno em peso a passar-me pelos dedos. As pessoas pediam-me que lhes fizesse recados e chamadas telefónicas intercontinentais, que lhes levasse cartas para o correio e desse voltas e voltinhas por elas na Vila, à cata de papéis e encomendas, em diligências e estúpidas demandas junto da câmara municipal e do notário. Pagavam-me por isso o que entendiam ou bem podiam. Mas nunca me faltou trabalho, porque a verdade é que não havia em todo o concelho do Nordeste um desratizador como eu. Armava ratoeiras em tudo quanto fosse sítio de ratos: arribanas, cafuões de milho, armazéns de frutas, sótãos onde se vazavam o trigo, a fava, a batata-doce e a comida de Inverno para o gado. As casas ficavam presas e reféns das minhas armadilhas, tal qual o peixe miúdo numa malha entre as rochas ou os pássaros nas redes que eu lançava entre o canavial – enquanto ia amolando tesouras de costura, limando facas de cozinha ou rachando lenha para o lume. Depois ia ver as minhas ratoeiras. Os bichos agonizavam às centenas, espichados pelas duras molas desses meus engenhos, dando à cauda e às patas no ar, os olhos alucinados e as línguas de fora. Abria-lhes então uma boa cova no quintal, ajudava-os a morrer por misericórdia e enterrava-os às pilhas e mais pilhas, para que o mundo ficasse limpo e salvo de semelhantes pragas. À boca de Outubro ou de Novembro, consoante o tempo se anunciasse para a próxima estação, tornava-me carvoeiro. Trabalhava numa furna inventada por mim, espécie de forno abafado, com controlo de fumos e calores, onde a lenha ardia da noite para o dia por sua conta e risco, até o fogo se extinguir por si e as achas se converterem em grandes troços de carvão que eu vendia a peso ou a saco para o tempo frio. Já por aqui se vê, senhor: com uma vida destas, como ia eu ter tempo e paciência para padres e missas? Agora! Razão por que, como lhe disse, nunca tinha estado antes naquela casa.
À parte as duas ou três mulheres que sempre se tinham ocupado da sua vida diária, e alguns mestres de ofícios que em tempos remotos lhe haviam caiado as paredes e restaurado os sobrados e os móveis, ninguém aqui no Rozário podia revelar um único pormenor ou qualquer segredo acerca da mansão do pároco. A sua vida íntima não era aliás menos secreta, pois não se lhe conheciam hábitos, nem doenças, nem um só que fosse daqueles vícios que se cultivam de portas para dentro, no remanso e no conforto do lar. No decurso de sessenta anos de acção pastoral na paróquia, não consta que alguma vez tivesse faltado, por uma gripe ou outro achaque, ao ofício da santa missa, aos sacramentos do baptismo, do matrimónio e da extrema-unção, nem a uma novena ou a um funeral. As pessoas tinham-se habituado a pensar que o seu pároco era um ser que vivia fora do seu próprio tempo carnal, com a saúde lendária dos mitos mais antigos e tendo a idade das ruas, da igreja, dos corais, ou mesmo a eternidade do mar e do firmamento. Tão evasivo e intemporal ele nos parecia, que alguns foram ao extremo de dizer que nem mesmo Deus lhe reconhecera o direito de nascer. Como também nunca fora jovem, pensavam que jamais seria um homem idoso, e muito menos enfermo. Contrapunham outros que não, nada disso, antes pelo contrário, nunca passara de um velho casmurro – tanso, abelhudo, por de mais cingido ao capricho dos seus humores eclesiásticos. Mais do que o Deus omnipresente (que tinha fama de distraído), o padre sempre aqui estivera de olho alerta em tudo, em todos os instantes, em toda a parte: nos trabalhos e nos dias do Rozário, na luz e na sombra, no cometimento dos pecados e na confissão dos arrependidos – senhor absoluto das almas, dos mais íntimos pensamentos, da terra arável e da divina glória que cada um de nós sonhava para si e todos os seus.
Daí a surpresa da sua morte.
Nunca estivera naquela casa, repito, porque sou por natureza um homem avesso a tudo quanto diga respeito a padres, estejam eles vivos ou mortos. Jamais me fora dado imaginar que espécie de hálito impregnara, durante anos e anos (ao longo de mais de meio século), as quatro paredes de uma casa erguida sobre os seus mistérios e equívocos – mas vi que o olhar dos gatos se afiava e estremecia, prestes a assanhar-se, parecendo despertar do seu desmazelo. Pude assistir ao modo como nesses bichos voltava a acordar o velho e desvairado instinto dos felinos: esticando as patas dianteiras, até aí expostas ao sol do mês de Outubro, as unhas afiavam-se como punhais de preguiça, prontas a arranhar quem se atrevesse a chegar-lhes perto. Acto contínuo, largaram pulos acrobáticos, saltando dos armários para as mesas, e destas para os genuflexórios de pau-santo que jaziam empoeirados por ali, com ninhos de ratos e teias de aranha lá dentro, já sem préstimo nem uso, e portanto também sem proveito nenhum para a religião. Apavoradas, as mulheres agruparam-se a um canto da sala. Correram depois a armar-se de vassouras, tamancos, chinelos e conchas de pau, dispostas a enfrentar os bichos – e com tal alarido o fizeram que aquilo deixara de ser um velório, uma festa da morte ou um acto devoto. Era o que se chama um motim a bordo; uma guerra entre os corsários da casa e as viúvas de sangue desse homem agora apenas sobrenatural – sem corpo, sem presença existencial, a quem os relógios e a fé na eternidade não serviam finalmente para nada, posto que teria já sido presente ao Juízo Final, para saber que lugar lhe fora reservado do lado de lá, na chamada vida eterna em que ele acreditava.
– Voam como pássaros enlouquecidos por cima dos móveis, estes diabos – alarmou-se a mais afoita das viúvas ali presentes. Tinha uns grossíssimos, implacáveis pulsos de parteira, mas recuou também para o meio das outras, assustada com a fúria dos felinos.
Quando eu próprio pretendi afagá-los para que sossegassem, senhor, os gatos defenderam-se de mim com as garras em gancho, como se eu ali estivesse para lhes destruir os ninhos. Pareciam, de facto, aves de rapina, pois cravaram-me as unhas nas costas das mãos, morderam-me os dedos e arranharam-me a cara, e pude ver nos olhos deles o mesmo fulgor assassino dos bichos selvagens quando acossados no fojo das suas moradas.
– Estão bêbados de cio! – disse eu, embora erradamente, esquecendo-me de que não estávamos sequer no mês do absinto dos gatos e das suas luas – as luas redondas, prenhes e brancas de que os gatos tanto gostam.
– Qual cio nem qual bêbados, homem de Deus! – contrapôs-me de pronto, tenaz, outra das viúvas do padre, perante a minha total perplexidade. – O senhor não diga disparates desses! Entrou-lhes mas foi o demónio no sangue.
– Ai, pois sim! – acrescentou uma terceira mulher. – É a alma daquele santo que ainda não chegou ao seu destino. Temos de dar tempo ao tempo, até que atravesse a Ribeira dos Mortos e alcance de vez o Paraíso.
À simples lembrança do morto, todas elas se esqueceram dos gatos e se puseram de novo a chorar. Faziam-no em coro, badalando cada uma no sino do seu desgosto – e eu, senhor, sabe o que fiz?, tratei de pôr-me dali a milhas. E desliguei-me do mundo. Compreendi que, se não me desligasse das suas opressões e dos seus desconcertos, começaria a endoidecer com elas, tangido pelas vozes que voltavam a carpir o defunto e a sua desgraça.
Talvez o senhor não saiba ou não tenha ainda dado por isso. Mas o choro sinfónico das mulheres é deveras uma coisa insuportável: um pranto que nos parte e fende por dentro. Fica uma pessoa rasgada ao meio pelo clamor de tanto desatino; perde-se a coragem para continuar ali, de pé entre essas velhas viúvas sagradas, ouvindo-as chorar e planger e vagir a toda a hora, numa música que subia directamente dos infernos para dentro de nós e que aos poucos nos amolecia a vontade, a dureza, a densidade específica do ser.
*
Viera ali parar absolutamente por acaso, dizia-lhe eu, trazido por essa noite pavorosa do Rozário; chamado pelos gritos do Calheta sacristão – o senhor lembra-se dele? –, que se pusera a badalar no sino grande que só se ouve quando há fogo, em caso de ciclone iminente ou de uma catástrofe ainda maior, e que então gritava:
– Morreu o nosso padre, Morreu o nosso padre, Morreu o nosso padre...
Viera embrulhado nessa terrível confusão dos sinos, dos gritos e dos passos apressados dos outros. A casa enchera-se depressa de um tumulto de gente desvairada. Tão grandes eram o peso, o tropel dos passos, o burburinho, o espanto de quantos começavam a acudir à notícia da sua morte, que a mansão paroquial ameaçava alar-se no ar e depois desabar sobre as nossas cabeças. Os sinos repicavam sem parar, num perfeito desvario, não sei se para chamar o povo à igreja, se tão-só para nos ungir da sua aflição.
Muitos eram também os que andavam por fora dando caça a Guilherme-José, o meu irmão mais velho, que havia enforcado numa trave a pobre da minha cunhada. Andava ele a monte, por matas e ladeiras, fugido à sanha deste povo, que tantas e tantas vezes lhe jurara em vão pelo pescoço e pela crucificação da alma. Mas passaram-se as horas (as compridas, esquecidas, frias horas da madrugada) e nada de Guilherme-José; nada de lhe fenderem ao meio aquele crânio de símio com um bom golpe de machado, conforme eu mesmo jurara fazer assim que o visse ou tivesse à mão. E nenhuma justiça terrena para a pobrinha da minha cunhada Glória, que permanecia ali suspensa, ainda quente, entre azul e roxa, na casa revolvida e saqueada, mas depois deserta e creio que amaldiçoada para sempre. Balouçava, a triste, dependurada da sua trave de enforcada, magríssima, chupada pelas mandíbulas das ratas – e persistem em mim, ainda agora, a visão da sua enorme pássara entreaberta ao ar e o bater dos ossos meio desprendidos do corpo, no quarto do casal. Ninguém vingaria a extrema magreza daquela mulher com um ar tão sofrido mesmo depois de morta, usada e abusada na intimidade e amiúde sovada pelo sadismo do marido, esse tal meu irmão, e cujo silêncio marcou para sempre o segredo, o vazio maldito da Regedoria. (Hoje em dia, não passa de uma casa assombrada. Apodrece de abandono e humidade. Dizem até que os anjos da noite são nela circuncidados por damas com pés forcados, de cabra. Eu cá não sei nada disso. Mas é possível que tudo não passe de lendas, superstições, sombras, crendices alimentadas por este povo do Rozário.)
Metade da população havia-se concentrado à porta do presbitério. A outra, como lhe disse, prestava aos sinos uma outra obediência. Sinos ou cães, a mim tanto se me dava. Sirenes ou feras em alvoroço, tudo na noite excitava e engrandecia os ânimos dos habitantes, pois dividiram-se entre o saque da Regedoria e a caça ao criminoso pelas matas mais próximas. Mas quanto a ele, a esse meu excomungado irmão, repito, nada de nada. Sumira-se sem deixar um rasto de baba. O Diabo o levara talvez para bem longe daqui. Se o engoliu o mar, se se dissolveu na morrinha do ar, se cavou a própria sepultura e nela se enfiou para ir direito às profundas do Inferno – não há quem honestamente o possa garantir. O caso é que a sua aura se ergueu e esfumou no ar, voando sabe-se lá para onde e expandindo-se depois em lendas, boatos e outras suposições. Tão cedo o davam rico e triunfante na nossa Cidade, como logo veio gente garantir que não, nada disso: ele apenas se perdera do número dos vivos. A seu respeito cantou-se por aí o romance-de-cego do viúvo assombrado pela vingança da morta, o canto do náufrago matinal que incitava as crianças a irem conhecer o mar, a lenda do anjo que pousava nos mastros dos navios inexistentes...
*