.1. PORTO DE MIAMI
UM PASSAGEIRO NO PORÃO
Cais de embarque do porto Fort Lauderdale, Miami. Junto ao portão de carga e descarga do Vistafjord, um dos encarregados da segurança vislumbrou, meio encoberto por um dos camiões de mercadorias que acabava de entrar na zona de acesso limitado, um homem que se dirigia descontraidamente para fora do perímetro de controlo.
– Pssst! Onde é que o senhor pensa que vai? –, perguntou-lhe energicamente o guarda.
– Vou ali fora só um bocadinho, se puder. O embarque está para demorar e preciso de apanhar ar – explicou-lhe calmamente o indivíduo, aparentemente surpreendido com a interpelação colérica do segurança.
– Volte imediatamente para o navio! Este é o portão de cargas e descargas, não é para passageiros nem para tripulantes – rematou o guarda, com o indicador apontado para o paquete.
Tentando parecer contrariado, o homem deu meia volta e dirigiu-se para o navio, perdendo-se em seguida na confusão de viaturas e de pessoas que abasteciam a embarcação.
Se quisesse sair para «dar uma volta» no cais, explicara o segurança ao passageiro desorientado, deveria fazê-lo pela passerelle, através de um túnel que unia o terminal ao barco, dois pisos acima da zona de carga. Era esse o acesso destinado a clientes e tripulantes, como, de resto, era bem visível naquele preciso momento.
O sujeito, baixo, moreno, vestindo uma roupa leve e informal, com uma pequena capa de couro segura pelo braço esquerdo, não seguiu as orientações do zeloso guarda do portão. Manteve-se na área de cargas e descargas, contornando contentores, cruzando-se discretamente com os estivadores que carregavam os porões. Junto a uma das entradas de mercadorias, aproveitando a momentânea ausência de pessoas no local, saltou para o interior do navio.
No porão o intruso deambulou algum tempo entre volumes. Acabou por sentar-se em cima de um grande rolo de alcatifa. Ali ficou, com os ruídos de carga a martelarem-lhe os ouvidos, durante mais de uma hora. Subitamente, um som cavo e a redução da luz ambiente sinalizaram o fim do abastecimento do navio.
Enquanto esperava pela saída do barco do porto, abriu um pacote de açúcar, despejou o seu conteúdo na boca, derreteu-o com a saliva e engoliu. Alguma agitação no cais e nos pisos superiores do Vistafjord, somada a prolongados e graves sinais sonoros, levaram-no a concluir que o paquete estaria prestes a fazer-se ao mar. Vencido pelo cansaço, acabou por adormecer.
Acordou atordoado com o estrondo da sua própria queda. Apesar de suave, a oscilação do barco tinha-o feito cair de cima do rolo de alcatifa. Levantou-se, procurou uma saída e deparou-se com uma estreita escada metálica. Subiu até uma zona mais iluminada. Pôs-se à escuta e ouviu, longe dali, o que lhe pareceu ser um grupo de pessoas a conversar. Saiu para o exterior e dirigiu-se, lentamente, em direcção ao grupo de passageiros. Ao passar por eles, saudou-os com um leve aceno de cabeça.
Parou junto a um dos grandes salva-vidas do navio, certificou-se de que ninguém estava a observar, levantou o oleado e penetrou no seu interior. Tirou do bolso uma fina caneta-lanterna, procurou uma superfície mole e acomodou-se. Retirou meia dúzia de folhas brancas da capa de pele e começou a escrever. Pouco depois, fechou os olhos e caiu no sono.
Ficha Técnica
Título: NA ONDA DE UM SONHO
Autor: Mário Ferreira
Livros d'Hoje
Publicações Dom Quixote
[Uma editora do Grupo LeYa]
Rua Cidade de Córdova, n.° 2 – 2610-038 Alfragide
Portugal
Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor
© Mário Ferreira, Carlos Romero e Publicações Dom Quixote, 2008
Capa: Ideias com Peso
ISBN: 9789722042987
www.dquixote.leya.com
.2. EMBARQUE EM REYKJAVIC
ROMANCE AO SOL DA MEIA-NOITE
Reykjavic, final dos anos 80. A entrada e saída de centenas de pessoas no Vistafjord, sumptuoso navio da empresa de cruzeiros de luxo Cunard, instala a confusão no porto da capital islandesa. Empresários e reformados endinheirados, casais de meia-idade, sós ou acompanhados pelos filhos, ricaços solitários, norte-americanos, alemães, ingleses, arrastam malas e maletas em direcção ao balcão do check-in. Para o serviço a bordo, a Cunard contratou 482 tripulantes para os 736 passageiros do navio, uma relação reveladora das mordomias preparadas para a selecta clientela disposta a dar a volta ao mundo. Foi na qualidade de empregado de mesa da empresa de cruzeiros de luxo Cunard que me apresentei para embarcar naquele navio. Embora tivesse amealhado bom dinheiro a trabalhar num restaurante londrino nos anos anteriores, surtia já a falta de aventura. Viajar à volta do mundo era um sonho antigo, porém, continuava a ser, o preço de um cruzeiro à volta do mundo era, nessa altura, demasiado pesado para o meu bolso. Uma suite grande, equivalente a um verdadeiro apartamento, custava perto de 200 mil dólares por cabeça. Nesses grandes cruzeiros, alguns casais levavam os filhos e, por vezes, até professores que lhes davam aulas no barco para manter a escolaridade dos mesmos em dia. Um casal que se fizesse acompanhar por dois filhos, mais um quinto elemento, gastava para cima de um milhão de dólares em pouco mais de três meses, sem contabilizar com outras despesas inevitáveis. Uma fortuna!
Tal como eu, alguns dos meus colegas da tripulação mais jovens agarraram a oportunidade de trabalhar a bordo para zarpar mundo fora e ganhar uns milhares de dólares. Saídos de cursos superiores em conceituadas escolas de hotelaria, estavam em Reykjavic para o seu baptismo profissional. Uma experiência dura e exigente, como teríamos oportunidade de perceber logo a seguir. Na tripulação, eu era um outsider: tinha tirado o «diploma» de hotelaria dos dezoito aos vinte anos, como empregado de mesa e gerente do restaurante numa zona chic de Londres. Os anos que passei na capital inglesa revelar-se-iam preciosos para a qualidade da minha prestação profissional, o que foi muito importante para reforçar a minha resistência física, já que ia passar oito meses seguidos a bordo de um barco a trabalhar. Logo a seguir à rescisão do contrato com o restaurante londrino, tratei de gozar duas semanas de férias à cautela, consciente das dificuldades que me esperavam.
Na Islândia, nos poucos dias que me separavam do embarque, experimentei o primeiro choque do viajante: o famoso sol da meia-noite, um fenómeno espantoso que eu conhecia apenas de livros e descrições que me soavam a fantasia. Afinal, a realidade ultrapassava largamente o que eu tinha imaginado. As palavras pareceram-me um recurso limitado para descrever as sensações e o espanto que então me assaltaram. Era tudo muito estranho, a começar na luminosidade irreal e a acabar nas alterações radicais do sono e da vontade de dormir. Excitadíssimo, passei horas intermináveis sem pregar olho.
Pronto para circum-navegar o planeta, encarei com toda a naturalidade a divisão das centenas de pessoas que embarcavam no Vistafjord em duas classes distintas: a dos que tinham arcaboiço financeiro para gozar, sem mácula e sem esforço, os múltiplos prazeres de um cruzeiro de sonho e a dos que, como eu, iam trabalhar duramente para que tudo aquilo decorresse da melhor forma.
Chegou, finalmente, o momento do embarque. O navio, com uma envergadura impressionante, ultrapassava tudo o que eu tinha imaginado nos meus sonhos marinheiros. Como nunca me contentei com pouco, descartei, desde muito jovem, qualquer possibilidade de fazer vida nas pequenas embarcações dos meus conterrâneos pescadores de Leça e de Matosinhos. Ainda assim um barco como aquele não cabia nos meus devaneios de infância e juventude, com os seus 276 metros de comprimento, 25 de largura e 47 de altura fora de água, o correspondente a um edifício de 15 andares.
Entre grande agitação, fiz o check-in já no interior da embarcação. Reykjavic era um dos portos onde se procedia ao turn-around, isto é, onde muitos passageiros terminavam o seu programa de viagem e davam lugar a uma nova remessa de clientes. A Cunard, a exemplo de outras empresas congéneres, disponibilizava vários programas, a preços muito diferentes, desde pequenos cruzeiros de uma ou duas semanas até à volta completa ao globo em 106 dias.
Depois do choque inicial com o belíssimo sol da meia-noite, que apenas serviu para aumentar o meu desejo de correr mundo, seguir-se-ia uma das experiências mais dramáticas da minha vida: os primeiros dias de mar. Para que entendam o quão dramática foi, cheguei, por momentos, a pensar desistir da viagem, logo que me sentisse seguro no próximo porto, o cabo Norte, na Noruega. Vejam lá como as coisas são: a alma de viajante, que eu pensava ser capaz de resistir a tudo e de tudo ultrapassar, esteve para se afogar nas águas furiosas do vigoroso mar do Norte.
Nos dois primeiros dias, o Vistafjord atravessou uma tempestade das antigas, com a ondulação a bater violentamente no casco do barco, fazendo-me pensar várias vezes quando é que o mesmo cedia à força da água. O problema maior não era o de me ver mergulhado no centro de uma imensidão de água salgada em grande agitação, tocada por chuvas e ventos fortes. Mas sim o facto de os meus olhos não verem absolutamente nada para além dos elementos em fúria. O enorme arcaboiço do paquete dava-me algum conforto e confiança, apesar dos constantes abanões provocados pela tempestade. Mas e se eu quisesse abandonar o barco? O que fazia? Pois é... Nada!!! Aguentar o enjoo!
Apesar das pastilhas e injecções que me deram como prevenção, a permanente e prolongada oscilação do barco deixou-me verde de enjoo. Disposto a não dar parte de fraco, fiz das tripas coração e resolvi levar até ao fim as tarefas que me estavam distribuídas, o que, posso dizer-vos, não foi nada fácil. Imaginem só o que é para alguém em agonia ter de garantir o serviço junto dos clientes que estavam a meu cargo?! Fardado a preceito, com a melhor cara possível, lá ia servindo à mesa, sempre à espera de uma oportunidade para vomitar às escondidas num saco improvisado, limpando a cara, de seguida, com uma toalha encharcada em água gelada. Nos momentos mais críticos, quando a náusea atingia o pico e eu ficava completamente desesperado, prometi várias vezes a mim mesmo abandonar a embarcação assim que pusesse os pés em terra firme.
Esgotado por causa do enjoo, com dois quilos a menos, a valentia fanfarrona de alguns dos meus colegas tripulantes ainda me deixou mais desanimado. Asseguravam eles, para meu espanto, que a tempestade que tanto me impressionara e abalara «não tinha nada de especial». Se era mesmo como eles contavam, o meu destino como marinheiro estava traçado. Foi o chefe do pessoal de bordo, um galego chamado José Farto, que viria a tornar-se meu grande amigo, que me ajudou a ultrapassar a crise e a ganhar confiança. Homem sensato e equilibrado, foi-me dizendo que borrascas daquelas aconteciam poucas vezes, não mais de duas ou três por ano. E aconselhou-me vivamente a desvalorizar as opiniões dos meus colegas armados em «grandes marinheiros».
Nem mesmo as palavras e conselhos do galego José Farto impediram que chegasse ao cabo Norte desanimado. Felizmente, a primeira tempestade no mar funcionou como uma vacina de grande eficácia, válida para sempre. Nunca mais enjoei.
A primeira grande paragem depois de ter recuperado o ânimo para o trabalho foi no cabo Norte, onde passei dois dias. O frio era cortante, mas nem isso me impediu de dar um passeio a pé para desfrutar das delícias do sol da meia-noite. Mais magro, um pouco abatido ainda pelos efeitos do enjoo, aproveitei para recarregar baterias e ganhei ânimo para prosseguir viagem em direcção às terras geladas do Norte, até Spitsbergen, a maior ilha do arquipélago norueguês de Svalbard. Um dos objectivos principais da aproximação ao pólo saiu frustrado: em Spitsbergen não vimos nem um único urso polar ou leão-marinho, espécies muito requisitadas pelas máquinas fotográficas de turistas sedentos de provas da sua passagem por terras longínquas.
No dia seguinte, ainda muito cedo, prestes a chegar à barreira de gelo que nos separava de um hipotético percurso pedestre até ao Pólo Norte, acordei sobressaltado com um barulho ensurdecedor, semelhante a sucessivas rajadas de metralhadora. Não me ocorreu que pudéssemos estar a ser atacados – pelo menos, não havia razões para que tal coisa acontecesse –, mas não fazia a mínima ideia do que poderia provocar tamanho estrondo. O mar estava calmo, a tempestade já há muito tinha passado. O que seria? Cheio de curiosidade, vesti-me rapidamente e subi até à proa do navio. À nossa frente, um quebra-gelo da marinha norueguesa abria caminho ao avanço do nosso barco, estilhaçando as partes mais finas da imensa massa gelada. Ao estrondo das colisões dos pedaços de gelo contra o costado do Vistafjord, somavam-se os silvos agudos provocados pelo contacto com a água dos pedaços recém-quebrados, algo semelhante ao que acontece quando largamos gelo muito frio num líquido. Para meu descanso, estava desfeito o mistério do «ataque». Afinal não eram guerrilheiros!
A descida ao longo da costa até à segunda cidade da Noruega, Bergen, foi dos percursos mais bonitos que alguma vez fiz na vida. Não só por causa das belezas naturais e dos extraordinários fiordes, mas também pelo ambiente indefinível e mágico do sol da meia-noite, que tanto convidava ao romance e à entrega sem limites. Penetrámos na costa através de canais interiores e passámos por terras lindíssimas, como Trondheim. O fiorde que mais me impressionou foi o de Geirenger, com as suas seven sisters, umas cataratas fenomenais, de águas cristalinas, alimentadas pelo degelo. Em Bergen, assisti ao incrível espectáculo de um Sol poente a misturar-se aos poucos com o nascer do Sol. Durante horas, tudo e todos mergulharam numa luz quente, de sonho, que tolhia os movimentos bruscos e amolecia os espíritos. Os carentes e os mais afoitos soltaram as vontades, convencidos de que tudo o que viam e sentiam só podia ser interpretado como uma porta aberta para a aventura. Tomado pelo ambiente, rendi-me a um apelo romântico e comecei a namorar com uma colega da tripulação.
.3. MISS COLGATE GANHA CRUZEIRO
Oriunda dos EUA, entrou a bordo uma passageira que me chamou a atenção, para um cruzeiro de 14 dias. Sendo jovem, bonita, de cabelos compridos e com um corpo escultural, era óbvio o contraste com a maioria dos clientes do cruzeiro, pessoas muito mais velhas. Não precisei de esperar muito para satisfazer a minha curiosidade e saber o que fazia uma modelo daquelas a bordo, acompanhada por um rapaz bem-parecido apresentado como sendo seu irmão, que me escolheu para seu confidente. Foi quando fiquei a saber que ali estava por ter ganho um concurso da Colgate norte-americana, de outro modo não teria como, já que era oriunda de uma família sem grandes posses. Valeram-lhe a beleza e a pose!!!
Com uma franqueza e uma naturalidade desarmantes, disse-me que tinha simpatizado comigo desde o primeiro momento em que me viu. Percebi logo que não vinha coisa boa, ou melhor, boa era, eu é que não podia! Não é que a jovem, com aquele arzinho de quem não parte um prato, pretendia divertir-se «o máximo possível» durante a viagem e, como tal, tinha-me escolhido para «brincar, a partir desse momento»?!
Fiquei atarantado a olhar para ela, sem saber o que fazer e com um problema complicado para resolver. O vigor dos meus vinte e um anos puxava-me para a aventura, ainda por cima assim, servida de bandeja, logo uma miúda gira como aquela. Mas eu já tinha namorada a bordo e não tencionava comprometer uma relação duradoura por causa de um entusiasmo momentâneo. Apesar de ter ficado mudo com a proposta, depressa arranjei uma solução.