Ficha Técnica
Título: Anos Luz
Autora:Inês Pedrosa
Design de capa: Jorge Colombo
Revisão: Álvaro Marques
ISBN: 9789722043069
D. QUIXOTE
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À memória de
Emídio Rosa de Oliveira
Para Hugo dos Santos,
o meu herói do 25 de Abril
Para Maria Antónia Palla,
Fernando Dacosta,
António Mega Ferreira,
os meus heróis do jornalismo
Trinta anos entrevistos
Memória é o nome dessa ponte vegetal, feita de novelos de limos e flores desmaiadas, troncos quebradiços com farpas onde demasiadas vezes tropeçamos. A saudade ergueu-se como arte de fuga desse tropeço, corrida de luz branca e baça, corrida ao arrepio do tempo para o espaço inventado onde a memória se despe da dor que tinha e da cor que havia nesse doer. Quem mora na saudade é a luz póstuma do esquecimento, luz turva com perfume a decomposição e sobrevivência, o perfume em que os vivos embriagam a sua precária imortalidade. Ter saudades do 25 de Abril é também tê-lo esquecido — e fechar as portas dessa revolução aos que chegaram à vida quando ela já estava em movimento. A revolução que Abril inaugurou está ainda em curso, dia-a-dia, porque a liberdade não se institui por decreto nem se fecha na prisão ilusória das frases-chave e dos grafitti. Trinta anos é hoje a idade oficial do fim da juventude, a inquietante celebração da entrada na vida a sério, a data em que nos arriscamos a fixar uma identidade — ou seja, a começar a morrer de facto.
Entre o brilho sedutor de tudo o que não sei, cintila, no coração de cada cravo de Abril, a verdade de um saber fundador e fundamental. Sei que a minha vida teria sido toda ela outra se o 25 de Abril não tivesse acontecido no início da minha adolescência. Não teria surgido o Curso de Ciências da Comunicação na Universidade Nova nem os professores essenciais que nela encontrei, não teria acabado a censura, não teriam aparecido os jornais onde comecei a trabalhar, e creio que nunca me ocorreria apaixonar-me pelo jornalismo. As pessoas que conheci, as ideias e sonhos que me foram moldando, os livros que escrevo — tudo isso o devo à revolução em si e à imagem que dela guardei, iluminada pela figura corajosa e contida, generosa e lúcida, do major de Abril Hugo dos Santos, que de muito perto me ajudou a crescer.
Com Fernando Dacosta, o luxuoso orientador de estágio que me coube em sorte (no semanário O Jornal), aprendi que o jornalismo não se faz desses objectos rastejantes excessivamente tranquilizadores a que se chama factos. Eu atravessava a redacção do jornal zonza de factos, e ele encolhia os ombros, punha aquele seu ar majestático e declarava: «Deixe lá a porcaria dos factos e ponha-se mas é a pensar, menina!» Ensinou-me que não se pode fazer batota com a escrita, e que não há gravador que fixe a densidade de uma voz se não houver uma alma agarrada a esse gravador, uma alma capaz de captar o ritmo da alma do entrevistado. E ao Fernando Dacosta devo ainda a mais rigorosa definição de entrevista: «uma grande reportagem ao interior de uma pessoa.» Foi isso o que tentei fazer: trazer a alma de cada entrevistado para a superfície só aparentemente lisa das palavras. «As entrevistas apresentam ideias abstractas em formatos humanos», escreveu John Brady em The Craft of Interviewing (Vintage Books, 1977), excelentíssimo manual que o generoso Manuel Beça Múrias me passou para as mãos assim que me viu deambular pela redacção de O Jornal. Nunca segui a cartilha do entrevistador-pugilista, que sempre me pareceu de mau agoiro ético e de péssimos resultados práticos. Sim, às vezes os meios utilizados determinam os fins alcançados — e no jornalismo quase sempre: essa é uma das alegrias estéticas da profissão. Intimidar o entrevistado significa quase sempre matar a entrevista — num clima defensivo, desconfiado, em que cada palavra é medida, não se encontrarão certamente revelações interessantes sobre o que quer que seja.
Com o meu segundo mestre, António Mega Ferreira, que era o chefe de redacção do JL quando para lá fui morar, em 1984, aprendi a, tanto quanto possível, prescindir do gravador. Porque uma máquina de registo aparece sempre como um pau-de-cabeleira controlador — e, além disso, distrai-nos. Anotar continuamente as respostas do entrevistado obriga-nos a manter a concentração e a fazer perguntas mais acutilantes. O Mega chegava ao invejável extremo de conseguir anotar tudo apenas com a cabeça, escrevendo apenas meia dúzia de palavras-chave de apoio, e reproduzia depois o discurso do entrevistado com uma exactidão de pormenor, apartes incluídos.
Para que uma entrevista funcione, é necessário, antes de tudo o resto, que o entrevistador tenha uma genuína curiosidade pelo outro. E, evidentemente, — espero que isto seja mesmo uma evidência — que faça o seu trabalho de casa. Não se pode fazer uma boa entrevista a um autor sem um sólido conhecimento prévio da sua obra — e não adianta fingir que se conhece o que não se conhece, porque a entrevista se encarregará, ela mesma, de desmontar o logro. Por muito que se conheça o entrevistado, uma entrevista é sempre um encontro às cegas, um autêntico e inquietante blind-date — é esse, de resto, o seu fascínio, um fascínio que, idealmente, o leitor experimentará também. Nunca se sabe exactamente onde começa nem acaba uma entrevista — e o que se lê é geralmente uma montagem (no sentido cinematográfico do termo) a frio de uma rodagem a quente. Diz-me a experiência que esse filme final sai melhor quando o entrevistador consegue ir fazendo a sua montagem mental durante a própria entrevista.
A dimensão do prazer é igualmente importante: se entrevistador e entrevistado não conseguiram, durante a conversa, sair do registo oficioso dos seus respectivos personagens, dificilmente o leitor conseguirá interessar-se pelo resultado dessa penosa cerimónia. Uma das coisas que tenho a agradecer a todos os meus entrevistados são as horas de genuíno encantamento que me proporcionaram. Tive a felicidade de encontrar, maioritariamente, entrevistados empolgantes — porém, confesso que até aos mais baços fui extraindo novos dados sobre a natureza humana. Porque é isso que, acima de tudo, me faz acordar para cada novo dia com entusiasmo: a infinita variedade da natureza humana. As minhas paisagens são pessoas; são sempre elas a mais forte e permanente reminiscência, de viagem para viagem, de dia para dia. Lévinas escreveu que o movimento ético é desencadeado pelo súbito encontro de um rosto — creio que esse reconhecimento do outro como um ser que partilha a minha fome de amor, saber e consolação, constitui o cerne da felicidade possível.
Nos últimos vinte e um anos destes trinta, tive o privilégio de entrevistar muitíssimas figuras vastas como continentes, infinitamente estimulantes, que me foram acrescentando (e ao público que as foi lendo, espero) novas perspectivas sobre o mundo e a vida. Dessas, seleccionei trinta conversas com personalidades portuguesas de áreas variadas onde se reflecte sobre a identidade do país e a mudança do pós-25 de Abril. A reunião desses trabalhos segue a ordem cronológica, de forma a que se possa sentir a força motriz do tempo sob as vozes. A primeira entrevista aqui reproduzida foi, de facto, a primeira da minha vida — Manuela de Freitas tornou-se-me um talismã secreto e a sua arte de roubar horas à morte um lema de vida. Nessa primeira entrevista pude entender que um jornalista tem de acrescentar à intuição do romancista a capacidade de desdobramento do actor. Nas muitas outras que se seguiram, da primeira à última, nunca aquele arrepio de medo bom deixou de me acompanhar, o medo de não estar à altura do ser e do momento, o medo de falhar que tanto nos ajuda a acertar, às vezes. Quando me perguntam quem foi o meu entrevistado favorito, respondo: foi sempre aquele que estava a entrevistar. Não é diplomacia, é a verdade pura — a verdade comum que me levou a tentar escavar, em cada um deles, o seu máximo denominador incomum. Não esqueço também o acto de confiança que cada entrevista é, da parte do entrevistado. Responder às perguntas do outro é disponibilizarmo-nos para o imprevisível, entregar pensamentos e ideais inconclusos, reticências e risos, a fluidez do que se vai sendo. Agradeço-lhes sentidamente essa cumplicidade, como agradeço a cumplicidade dos fotógrafos que me acompanharam ao longo destes tão delicados trabalhos. «Temos de ter um bocadinho de fé nas pessoas», dizia Mariel Hemingway no fim de Manhattan, um dos filmes de Woody Allen que mais amo. A prática da entrevista demonstrou-me que é a fé nas pessoas que faz avançar o mundo — é nelas que, de forma muito concreta, se manifesta a transcendência.
Todas estas conversas são obvias e reiteradamente datadas. A conversa simultaneamente formal e íntima, ou pessoal e transmissível — para utilizar a feliz fórmula de Carlos Vaz Marques — que cada entrevista é, permite-nos guardar pedaços vivos do passado, confrontar projectos e realizações, reflectir sobre o sentido dos trajectos e a sinuosidade narrativa disso a que chamamos o real.
Há vinte anos, depois de ler a entrevista aqui publicada com Júlio Pomar, pintor que ele muito admirava, o meu então professor Emídio Rosa de Oliveira propôs-se orientar-me uma tese de mestrado sobre «a entrevista». A vertigem do trabalho nas redacções foi empurrando o projecto para o sossego mítico dos anos futuros, enterrado com a morte desse que foi um dos meus mais marcantes Mestres — aquele que me ateou o deleite da desconstrução, aquele que misturava filmes, livros, pintura e música como espiral de inspiração para uma sabedoria incessantemente inatingível. A tese que não fiz serve de música de fundo a todas as entrevistas que faço, e é à voz de Emídio que recorro para fazer as perguntas que arredam obstáculos no corpo a corpo opaco de cada entrevista.
Antes que o azul-febre de Abril desbote de vez na névoa educada da saudade, e que, instalados no seu balanço de madura balzaquiana, deixemos de ver o movimento dessa revolução que continua, aqui fica este álbum sépia de retratos verbais — porque o preto é branco não existe e o tempo parece ter sido devorado pela velocidade estonteante destes anos-luz.
INÊS PEDROSA
LISBOA, ABRIL DE 2004
Manuela de Freitas, a antivedeta
«O teatro é uma paixão muito maior do que eu. Em teatro já fiz tudo, já fui contra-regra, já engomei vestidos. Estou lá para o que for preciso.» Tarde cinzenta de segunda-feira no bar do Teatro Nacional. Hoje não há espectáculo mas ela quis vir, já não sabe estar em casa.
Ela é a antivedeta. Diz que não há nada pior do que sentir-se a rainha do baile, não gosta de telenovela, teme a mediocridade: «Gosto de viver no meio de pessoas que me perdoam tudo mas não me desculpam nada, que acham sempre que eu fiz bem mas que podia ter feito melhor.»
Falar de Manuela de Freitas é contar uma história de amor. Nascida em 4 de Setembro de 194o numa família da média burguesia, viveu a infância e a juventude com o pai (engenheiro), a mãe, três irmãos e uma avó. «Era uma família muito neurótica, havia um sentido de ameaça sempre presente: uma dor de cabeça era já uma doença, um atraso do meu pai era um desastre. O prazer era uma coisa recusada.» Este ambiente tornou-a, segundo afirma, «psicologicamente doente»: para adormecer, tem de inventar histórias que afastem os pensamentos de morte, de catástrofe.
O teatro é onde consegue eliminar o medo. Desde sempre sentiu essa vocação. A oportunidade surgiu aos vinte e dois anos, com Fernando Amado, no Centro Nacional de Cultura. De olhos brilhantes, a laranjada esquecida no copo, vai contando como tudo aconteceu: o monólogo da Castro clandestinamente decorado na casa de banho da empresa (era então secretária de administração, perdida de vez a vontade de seguir Matemática), aquele desejo fundo, a oposição da família.
Decidida, continuou. Esteve na fundação da Casa da Comédia. Mas o caminho não foi fácil. «Aprendi que é preciso ter manha para se conseguir o que se quer.» Assim, vai para o Brasil como recepcionista de uma exposição luso-brasileira, pede transferência para a secção de teatro e acaba por participar na peça Mestre Gil, mais tarde exibida em Portugal. Após entrar em A Mulher de Roupão, 0 Fusível e Celestina percebe que quer algo de diferente. Em 1972, com João Mota, funda A Comuna, e é o êxtase: sete anos de total realização como actriz, fazendo do teatro comunhão com o público, grito de vida.
Mas acabou-se. Sete votos contra seis determinaram a expulsão de Manuela de Freitas e Jean Pierre Taillade da Comuna, em 1979. Ainda hoje a voz lhe estremece, ao falar disso: «A força da pequenez, da inveja, da ignorância, tem sempre resultados desastrosos num grupo de criação.» A generalização, o medo de tocar na ferida: «Sempre me custou muito sair de um sítio, acabar um livro, perder um brinquedo...» Vida versus Morte: o teatro, centro de tudo: «O abrir e o fechar das luzes, o começar e o acabar da peça, o chegar e o ir-se embora do público. O teatro é uma forma de roubar horas à morte. Fora do teatro não sei estar, ajusto-me. Sou como aquele homem que vendia castanhas à porta do Banco e dizia que tinha um acordo: o Banco não vendia castanhas, e ele não emprestava dinheiro.»
No entanto, quando encontra um realizador que ame (como Manoel de Oliveira ou António-Pedro Vasconcelos ou João César Monteiro), faz cinema. Mas não se reconhece no ecrã como no palco.
«No cinema fica apenas um momento de mim.» Esta ânsia de perfeição domina todas as suas acções. Tem uma noção de divindade e de hierarquia que lhe ficou de uma educação profundamente católica. Por isso nunca quis ter filhos, embora goste de crianças: «Teria de me dividir.» Por isso escolhe cuidadosamente as pessoas e as leituras: «Porque é que eu hei-de perder tempo e sobretudo espaço em coisas mesquinhas que correspondem ao pior de mim?» Tem poucos amigos, mas verdadeiros. Lê Sophia de Mello Breyner e não lê as críticas dos jornais. Nem liga a prémios: «Fazem parecer isto uma corrida de cavalos. Em 1981, o Teatro do Mundo esteve para receber o prémio da crítica, mas depois parece que se arrependeram, e ainda bem, porque nós não tínhamos sítio para o pôr.»
Ao completar o seu quarto aniversário, com oito espectáculos realizados, o Teatro do Mundo continua sem sede. Mas parece que este (grave) problema será em breve resolvido, porque a Secretaria de Estado da Cultura está a negociar um espaço («muito bom») com a Misericórdia. «Há, no entanto, certos críticos que escrevem que nós não devíamos sequer ter um subsídio, porque não temos sala! O que é mais engraçado é que um dos que escreve isso pertenceu ao grupo dos que em 1981 nos queriam atribuir o tal prémio...»
Calígula, Ano IV cl. C. , a sua última peça, põe o problema dos limites do poder, dos condicionalismos da criação, e é, afinal, o ponto da situação do grupo. Manuela de Freitas é a encenadora «por necessidade. Não havia encenador disponível, as coisas tinham de andar para a frente, dirigi eu a peça. Eu sei que parece uma ousadia da minha parte, e há muita gente que se irrita com esta ousadia...»
Projectos, não quer: «Alguém pergunta a um escritor, a um músico, qual é o seu projecto?» Mas tem dois sonhos: ir às aldeias («Esta afirmação é parecida com muitas frases demagógicas e pseudoculturais, mas não é. Encontrei nas aldeias público com uma criatividade, uma inteligência, que nunca esqueci») e ter uma sede com um «grupo de loucos» como ela. Diz não estar ainda certa dos actores do Teatro do Mundo, porque ainda não foram experimentados: «É difícil eu perguntar a uma actor do meu grupo porque é que ele está ali, quando de facto ele não conhece outro sítio.»
É assim Manuela de Freitas: uma actriz (extremamente bela) que trocou o sucesso fácil pela luta constante. Uma mulher com teatro nas veias: «Isto é uma tara. Encontro tudo lá, o que é que você quer? Conheço-o tão bem e amo-o tanto que, se eu posso ser boa lá, porque é que hei-de ser suficiente noutro sítio?»
(O JORNAL, 18.2.1983)
Sérgio Godinho, para além das cantigas de amigo
«Já enchemos praças e ruas/
já invocámos dias mais justos/
e as estátuas foram de carne/
e de vidro os bustos»
Puxar a fita para trás e ouvir outra vez. Cem vezes e sabe sempre a pouco. Foi mais ou menos assim: «A principio é simples, anda-se sozinho (...) bebe-se as certezas num copo de vinho.» «Isso é o princípio da canção... As certezas são necessárias porque são o outro lado das dúvidas.» Tinha 20 anos e vontade nenhuma de matar, largou o Porto e ancorou noutros portos, estudou psicologia, foi carregador em Amesterdão, veilleur de nuit e empregado de armazém em Paris, cantor, actor e compositor por todo o lado, duas vezes prisioneiro no Brasil «e o coração que o conte/ quantas vezes já bateu para nada» .
«Acredito muito na minha disponibilidade para a experiência. Essa experiência não é só vivencial em termos de países, trabalhos, etc., às vezes é de tal maneira pessoal, entre duas pessoas... Não consigo distinguir entre o carregador do porto de Amesterdão, ou o tipo que esteve na prisão e levou choques eléctricos na cabeça, ou o tipo que fez uma canção e de repente se encontrou consigo mesmo porque descobriu a canção que queria fazer, ou a pessoa que viu um filho nascer, o momento de riso, as piadas que a gente diz uns aos outros, ou os disparates... acho que tudo isso me alimenta.» Deixa as palavras escorrer para trás e para a frente, 38 anos, o que é isso, «o amor não tem bilhete de identidade». «Há ao mesmo tempo uma tranquilidade íntima muito grande e uma sensação de inquietação.»
O anonimato diluiu-se pelos palcos, a capa do livro em 2.ª edição diz Canções de Sérgio todinho, a fotografia fixa o tal brilhozinho nos olhos. «Eu não fiz um livro de canções, fizeram um livro com as minhas canções. Os meus textos são indissociáveis da música que vai com eles. O Arnaldo Saraiva interessou-se por certas formas de poesia que ele considera literatura marginalizada e fez a recolha dos meus textos e uma análise crítica. Esta análise preenche um espaço que realmente não há cá, que é o de olhar para as coisas de uma maneira séria, um trabalho que afinal tem um percurso de anos. Não sobrevalorizo isso no meu caso, penso que é um trabalho que devia existir em relação a outras pessoas e também para a componente musical. Quando olho para este livro digo: “Olha, já fiz cento e não sei quantas canções...” Procuro não dissecar demasiado as minhas coisas, até porque é um processo assim um bocado obscuro pra mim.»
Folhear devagarinho a presença desta voz que, nas palavras de Arnaldo Saraiva «parece apenas a de um homem» (fenómeno raro, por entre tanto anjo de estuque). «Quando acabo uma canção sinto que é o meu melhor. Só que quando a gente constrói uma plataforma debaixo dos pés, a nossa sina é que o tapete nos fuja e que nos encontremos outra vez no vácuo, à procura de um novo equilíbrio pessoal, afectivo, criativo... Não ouço muito os meus discos quando estão feitos. Há uma saturação. Gravar é um processo moroso, fascinante pelo perfeccionismo que implica, mas não é aquilo que eu gosto mais de fazer.»
«Adivinhar o que há mais/ os segredos dos locais/ que no fundo são iguais/ em todos nós.» «Ah, isso agora... gosto de tanta coisa!» Levanta-se, deita mais whisky no cálice, a gata ronrona, o gravador (a)guarda. «Gosto da relação entre as pessoas, gosto dos amigos, gosto dos meus filhos, gosto de olhar para coisas bonitas, de ouvir coisas bonitas, de pensar, de criar sobretudo, e de ser estimulado.» À volta, dói-lhe a injustiça, a falta de confiança: «não gosto que as pessoas cortem a energia umas às outras, compreendes. Eu já disse mais de uma vez que não sou um animal político, mas não posso deixar de me envolver...»
«Vi-te a trabalhar o dia inteiro/construir as cidades para os outros.» «Faz-me muita impressão o abuso de poder, a facilidade com que se decide, mesmo sobre álibis da pretensa dificuldade, embora reconheça que a função do político é difícil e será necessariamente criticada. Mas continua a fazer-me muita impressão que as coisas não sejam mais cristalinas. Não falo só como poeta, falo mesmo numa prática. Há coisas tão importantes que deviam ser prioridades absolutas; o direito à saúde, à educação gratuita, a uma casa.» «O direito a respirar/ O direito a respirar.» «Porque é que países mais pobres do que o nosso, como por exemplo Cuba, acaba com o analfabetismo e em Portugal há uma percentagem de analfabetos impressionante? Não se trata aqui de defender necessariamente o sistema em geral, mas não posso deixar de vibrar com essas realidades.»
«E viva o dia/em que já não precisas/de reis nem gurus/nem frases-chave nem divisas.» «O meu compromisso com a política é uma coisa epidérmica, os meandros depois já não me interessam.» Pela epiderme lhe passaram (também) saudades e algemas «Mas os percalços que vão acontecendo, prisões e esse género de coisas, acabam por ser só um corolário estranhamente natural daquilo em que acredito.» «Foi muito bonito, mas o tipo já não canta aquelas fortes, entrou numa de compromisso», reclamava uma jovem muito jovem à saída da gravação do programa televisivo A Vez e a Voz. «Não sei onde é que se pode ver isso num espectáculo onde eu cantei canções como Cuidado com as imitações, Não te deixes assim vestir, O Charlatão, Os demónios de Alcácer-Quibir, sei lá... Pelo contrário, o meu compromisso é sempre maior para com coisas que são extremamente radicais nas minhas escolhas, estou perfeitamente à vontade nesse aspecto, não recebo lições... Sabes, tudo o que se transforma na criação é sempre objecto de crítica de forças que são um bocado reaccionárias no conservadorismo, seja ele pretensamente “práfrentex” ou não. Eu faço aquilo que gosto de fazer e ou bem que isso se relaciona com o íntimo das pessoas ou não, é tão simples como isso.» Procura sempre dar o seu melhor, acrescenta, é uma questão de brio pessoal, o respeito pelos outros começa em nós próprios, mas a certa altura criam-se expectativas, vêm angústias, «tem de se ser muito lúcido».
«Atacar os problemas por dentro sempre foi a minha preocupação e continua a ser. E talvez coisas que não são tão óbvias remexam mais no interior das pessoas. O meu trabalho é muito perto daquilo que é banal, do cliché, lugares comuns que tento subverter no sentido de encontrar formas novas.» «Durante algum tempo foi necessário/ pôr o rapaz a uso/ pô-lo a gritar sobre o prestígio pátrio/ e o orgulho luso.» «Ponho-me na boca de personagens. Há um erro que — modéstia à parte — (deixa lá a modéstia noutros dicionários, Sérgio), era o erro que havia quando diziam que o Pessoa não era sincero porque assumia outros personagens. É uma falta de compreensão do que é a canção pensar que é sempre o meu âmago ao primeiro grau que sai. A démarche de um poeta é muitas vezes dramatúrgica.»
Teatro. Antes de Liberdade, Liberdade e até Matinée Mágica, muitas deixas foi deixando. «Senti necessidade de desenvolver o palco como cantor, e para isso tive que deixar de lado o teatro, de que gosto muito, mas exige uma disponibilidade muito grande. Estava a acontecer tudo muito na base do diletante. Claro que não pode estar tudo demasiado no sítio mas, bolas, tem de haver uma escolha num certo momento.» «Enfim, de uma escolha faz-se um desafio.» «Sou muito feito da necessidade de responder a desafios», repetirá a propósito de muito do que tem feito, da peça de teatro infantil que mereceu um prémio da Secretaria de Estado da Cultura, das colaborações musicais que tem prestado ao cinema, «sinto muito a necessidade de solidificar as coisas, procuro conhecer os meus limites e não me espetar, sou muito crítico comigo mesmo».
«Nem aos deuses nem à morte/ peço perdão do que fiz.» «Às vezes arrependo-me, amargamente, mas mais vale uma pessoa arrepender-se do que fez do que do que não fez.» E há milhares de coisas que ele gostava de fazer. «Não me vais agora perguntar os projectos de futuro!», ri-se. Porque os pontos de interrogação fogem-nos por entre os dedos e «prefiro que as minhas decepções sejam só pessoais». Esteve em Berlim Este, no festival da canção política, tem uma série de espectáculos aí pela estrada fora, esboços para outro álbum, nas comemorações do 25 de Abril uma semana da canção portuguesa em Paris, textos para um programa infantil de televisão e o mais que se há-de ver. Descansem que o Sérgio não pára.
E diz com o maior desplante: «A canção foi por acaso. Desde pequeno a minha maior paixão, mais do que a música até, era o cinema. Para mim é quase um prazer óbvio colaborar com realizadores, é uma maneira de estar perto de uma arte que me apaixona.» Perto de tanto afinal Também do Porto, do Zeca e do universo da infância, pedaços sensíveis que vêm à conversa mesmo sem serem chamados, que não couberam no papel mas estão cá. Hoje é apenas o primeiro dia.
(JL -J ORNAL DE LETRAS, ARTES E IDEIAS, 28. 2.1984)
Júlio Pomar, a marca negra das garras
Júlio Pomar é um lince. Um lince muito especial: capta as presas com olhar certeiro, devora-as devagar em papel e tintas, agiganta-lhes a beleza, pendura-as na parede. Atravessa os catálogos todos dos especialistas. Há cerca de quarenta anos parecia ter as características um neos realistus typicus mas escapuliu-se silenciosamente para outras selvas. Neste momento encontra-se em Lisboa. Durante um ano inteiro rondou quatro poetas mortos, e agora eles rugem no Centro de Arte Moderna. Brevemente invadirão os túneis do metropolitano.
Entro pé ante pé. Antes de abordar o predador há que farejar-lhe as pegadas traçadas, neste caso a marcador e tinta-da-china. Mas Júlio Pomar antecipou-se e desliza já entre os seus Camões, Bocage, Pessoa e Almada. «Venho atrasada? É que não vi ainda a exposição, falhei ontem a inauguração...» «Não, não, eu é que vim mais cedo, esteja à vontade.» Lembro-me de uma entrevista em que Pomar dizia odiar as vernissages, porque eram o sítio onde menos se aprendia. Lembro como era bizarro vê-lo ontem distribuir apertos de mão e beijinhos, depois das portas fecharem. E começo a perscrutar serenamente.
Estranho, este felino, logo no tom rosado da pele. Efeitos do sol de Paris? — pergunto, enquanto caminhamos para o bar. «Não, sabe, estive quatro dias no Algarve, antes de vir para Lisboa...», e sorri levemente. Instalamo-nos frente a dois cafés, Pomar acende o primeiro cigarro, atento a todos os sinais. «Esta história começa com um livro do Borges que em tempos ilustrei. Julguei não ter ido até onde podia, tratava-se de um tigre que não aparecia como personagem real, era um rasto... Senti que com as colagens que tinha feito não o tinha apanhado, e então desatei a pintar tigres sobre tigres, em Paris e em Lisboa.» Mais tarde pedem-lhe que ilustre Poe e o seu insondável corvo, tal como o olhavam os seus tradutores Baudelaire, Mallarmé e Pessoa. Pomar aquiesceu mansamente, pôs-se a fixar no papel os Baudelaires e Mallarmés e Pessoas que guardava na retina, e desenhou o corvo que essas visões lhe transmitiam... «Foram muito simpáticos, deixaram-me inverter tudo... Ora, quando me chegou esta proposta, apeteceu-me continuar a fazer retratos; já tinha retratado o Pessoa...»
Era uma encomenda aliciante: davam-lhe um espaço enorme e convidavam-no: «Usufrua. Como quiser.» Exactamente o tipo de conversa com que os ouvidos de Pomar estremecem. Sem cheiro a grades metálicas nem a domadores. «O Pessoa, indissociável para mim da imagem de Lisboa, já estava. Os outros apareceram-me na continuidade desta ideia, como imagens da cidade, ou pelo menos como imagens que eu guardo da cidade...» Quatro, porque a geografia da futura estação de metro de Benfica (o seu espaço) em quatro áreas se repartia. «Tentei imaginar as paredes como páginas de um caderno de desenhos», vai desvendando, fixas as pupilas nas pupilas que o interrogam. «Escolhi de certa forma a solução mais pobre, nada de enfeites — aquilo a que se chama dança a pão seco, isto é, apenas ao ritmo dos passos. É um desafio que conta apenas com o branco do papel e o negro do espaço; pretendi concentrar um máximo de evocações só com essas duas cores. Foi uma procura de verdade sem concessões ao agrado fácil. Porquê, por exemplo, um verso em branco e não poesia rimada?»
Atira-se com gosto às palavras, predador sôfrego e sensível a tudo. «A palavra tem uma existência tão concreta como a linha ou o ponto. É uma matéria trabalhada na qual se investe e da qual se espera uma resposta e uma abertura. Mal vai o poeta se naquilo que diz passa apenas aquilo que ele queria dizer...»
Será então a arte expressão involuntária da timidez? «Bom... a expressão mais directa é aquela a que não se presta atenção, é o «bom dia, como está, passou bem?” Entre a comunicação imediata e a mediatizada vai a diferença que existe entre um sinal de trânsito e o quadro. Face a um sinal de trânsito, não há com certeza timidez...» Haverá talvez intimidação. Falamos de clichés, divertimo-nos, Pomar conta que as provas do catálogo da exposição saíram da tipografia com o Fernando Pessoa transmudado em Fernando Namora... «Quando se associa a outra, a palavra torna-se a sua maravilha ou o cabo dos trabalhos! Uma palavra é sempre insubstituível.» Pois, não há sinónimos! «Exacto. Não há rigorosamente sinónimos. Cada palavra tem uma cor em si mesma. Delacroix dizia qualquer coisa como isto: “dêem-me um pedaço da lama das ruas de Paris e com ela pintarei o retrato de uma mulher...”»
Está solto e manso e afagante. A luz da sala gosta do branco-branco deste cabelo, desta barba. Mostra os dentes à vontade, brincalhão. Mas eis que chega o repórter fotográfico; Pomar levanta-se com um sorriso leve, encaminha-se docilmente para junto dos desenhos. Subimos a escada para Almada e Pessoa ou descemos até Camões e Bocage? Sem desdouro para os inquilinos do andar de baixo, proponho que subamos. Estará Pomar de acordo? Encolhe os ombros astutos: «Não tenho nada a ver com isso. Estou aqui a fazer de pêra...» E Inácio Ludgero vai-lhe trincando a pose em dentadinhas de flash. São imensas as possibilidades; duzentos e muitos desenhos, tamanho natural; ali no meio da sala, Pomar parece agora só um homem de fato cinzento e camisa rosa-vivo. Não fossem os olhos...
Dos olhos fizeram-se traços. Corpos inteiros a transbordar de rascunhos, páginas célebres e páginas rasgadas. Quatro pessoas muito mais que só-isso, a tinta-da-china e marcador. Sobretudo o marcador. «Era o material mais próximo dos cadernos de esboços e dos grafitti murais. Além disso o pincel tem uma linha vibrada que poria problemas à transposição para o azulejo. É uma economia voluntária, no sentido do máximo rigor. Parece-me fundamental que cada um corra o seu risco.» Pomar mistura riscos-traço e riscos-perigo. Só não se arrisca a ver deturpados os seus riscos. Do marcador negro para o azul sobre azulejo branco.
Conversamos. Do azulejo azul e branco, símbolo pátrio. Pomar disse um dia que Salazar e Almada eram os homens que melhor entenderam isso de ser português... «Pois. E mantenho. O Salazar agarrando-se a valores do passado, Almada pela via da modernidade.» Ri-se.
«Ora, ser português é como ter olhos azuis ou um metro e setenta...» E ser português em Paris? Que é a mesma coisa; para lá foi em 1963, «porque era a solução mais fácil...»; depois, «sem dar por isso», foi ficando. Vai ficando. Em Paris a pintar poetas portugueses para iluminar a estação do metro de Benfica. Em Paris visitado por Sommer Ribeiro, já o atelier se atulhava de traços. E assim, sem que o tivesse inicialmente programado, se expõe em Lisboa. «Costumo dizer que não sou um pintor de quadros, sou um pintor em quadros, isto parodiando o Pessoa com o drama em gente...» Os temas desenvolvem-se em sequência, até à exaustão. Que não encontram nunca.
«Sinto que não ficou bem. Então passo a uma segunda tentativa para chegar mais longe. Mas ponho reservas à minha opinião, e não destruo nunca o primeiro desenho.» Pausa. «Ou antes, destruo só em casos de extrema evidência.» Arguto, sabe que as grandes conquistas são feitas de extrema persistência. Sabe também que o mais fraco é o que oculta a fraqueza. Pendura tudo na parede. Explica quase tudo. «Trabalho sempre a andar. Recuo para ver o que estou a fazer, constantemente.» Porque é preciso distância. Não basta estar em Paris, é, preciso às vezes também estar fora de si. Explosivamente.
«Senti-me sempre muito atraído pela grande dimensão. Tive a sorte de aos vinte e dois anos me darem uma parede com cem metros quadrados. Era o Cinema Batalha, no Porto. Só que depois veio a Pide e tapou tudo.» Porquê? «Primeiro, porque aquilo saía fora do que era costume. Depois, porque eu tinha uma atitude muito violenta de oposição ao regime...» Poder-se-á militar conjuntamente na política e na estética? A afirmação ideológica não tolhe a interrogação dos sentidos? «O apoio a certezas ou a certas incertezas é necessário, a dada altura da vida. Sobretudo se o enquadramento é demasiado rígido... Claro, cria-se então uma rigidez oposta. Combatendo um determinado objectivo, muitas vezes se é vítima de um certo mimetismo que nos leva a reproduzir o que visávamos combater... Eu também passei por isso» — desculpa-se.
Que vícios o atacam? Pega no cigarro. «Essa é boa...» Pausa. «O Picasso dizia: “se tiveres uma coisa que imediatamente te agrade, deves destruí-la nesse minuto.” É isso, o pior é a autocontemplação do trabalho que se faz. Toda a vida de Matisse é a destruição da virtuosidade e do agrado imediato. Há um filme do Orson Welles, que se chama O Falsário, ou coisa parecida, em que às tantas aparece um falsificador de quadros que diz: “O que eu faço é melhor do que o Matisse. Ele hesita, e eu não...”» Das hesitações que se desaprendem na escola falamos agora, e aqui é que ele ri mesmo: «Felizmente mandaram-me embora das Belas-Artes... Toda a escola é desastrosa. Por exemplo, não há pintores cubistas, há três ou quatro pintores que usaram determinados processos, que têm certas analogias. Tudo o resto é ganga... Querem introduzir a categoria no que repele as categorias. Uma das características da arte é a diferença. A categoria será talvez uma grande comodidade para os críticos, mas não dá gozo. Nenhum gozo.»
Tem-se sempre que falar disto, dos outros, dos favoritos. Que conste então que as estrelas nacionais de Júlio Pomar são Menez e Paula Rego. Mas acrescenta que conhece pouco dos novíssimos, que fala de confirmações e não de esperanças. Na constelação internacional, mais difícil ainda, breve e entediado suspiro. Que admira o americano Stella e o inglês Bacon, diz. E como recebe Pomar o seu sucesso? «Com um certo agrado e sem me deixar embalar. Quando faço uma viragem (mesmo sendo são todas as mudanças mais aparentes que reais) as pessoas que gostavam do que eu fazia lamentam-se... Há muitas vezes uma resistência do indivíduo que recebe a obra de arte (não gosto da expressão, mas passa). Mas muitas vezes é-se levado a gostar da obra contra aquilo que inicialmente se sentiu. A mim aconteceu-me isso com o Picasso e o Matisse — justamente dois pintores que hoje ponho nos píncaros da lua. Pois é, foram muitos anos de ofício até que eu começasse a sentir o peso de uma obra do Matisse...»
Um trilho literário, de Borges a Poe, de Poe aos nossos poetas... «A literatura é muitas vezes o detonador... Preciso de rastilhos, qualquer pretexto...» Pretexto. Atrás dos poetas há outras coisas. Gaivotas para Pessoa, arlequins para Almada, frades e cupidos para Bocage, bichos para Camões. Se calhar ferozes. Até há um tigre. «Pois há...», eriça-se deliciado. «Sempre gostei muito de fazer bichos. Fui sempre um visitante assíduo de jardins zoológicos. E Camões é a epopeia, o exotismo... Olhe, o rinoceronte que desenhei é exactamente da mesma espécie que aquele que o rei D. Manuel enviou na sua embaixada ao Papa. Só depois de o desenhar é que vi isso num livro. Engraçado, não é?» Porquê estes poetas e não outros? Ainda vivos, por exemplo. Ou já não há poetas de Lisboa? «Então não há!! Mário Cesariny, a poesia de Cesariny é toda Lisboa. E tantos outros! A minha opção não foi fazer uma escolha ou um inventário. Sou contra a natureza morta. Isto é o contrário da estátua. Detesto estátuas de pessoas ilustres, com raras excepções... Tenho horror das cerimónias oficiais. Apeteceu-me assim.» Brilho felino pelo rosto todo: «Gosto de descascar a imagem do lugar-comum, de a arranhar...»
(JL-JORNAL DE LETRAS, ARTES E IDEIAS, 6.11.1984)
As fábulas codificadas de Mário de Carvalho
Matéria de facto: Mário de Carvalho, quarenta e um anos, advogado de profissão, casado, duas filhas, residente na Encosta das Olaias, Lisboa, tem vindo a publicar, desde 1981, contos de fantasia inspirados em insones sonhos. De repente, larga a caneta (perdão, as teclas) sobre os seus pesadelos e pimba: Era Uma Vez Um Alferes. Colhidos os vistos, ouça-se então o réu.
E a primeira coisa que se ouve é o crepitar das chamas. Uma lareira acesa, prenda mais saborosa não há para quem vem da chuva! Mário de Carvalho sorri, conversa muito, onde se terá metido a timidez que tanto me tinham apregoado? No bloco de notas, as palavras começam assim: «Estou um bocado cansado do fantástico. Desconfio da facilidade que tenho em escrever aquelas histórias. Por exemplo, os Casos do Beco das Sardinheiras, escrevi-os em dois meses e podia continuar até ao infinito...» Lustrosos templos, preciosas ilhas onde tempo significa aventura, ilhas coalhadas de estelares heroísmos, por que estradas se chega lá? «Há algumas referências a lugares conferidos, mas geralmente é tudo uma grande batota. Vou lendo umas coisa, o Salústio, um turvo dicionário de Marinha. Num dos Contos da Sétima Esfera fala-se às tantas de uma Guerra de Utica, que de facto existiu. Nessa altura estava muito interessado na Suméria. Sabe, tudo isto tem sido um itinerário para chegar a outra coisa. Gostava de escrever um romance sobre este país, estas gentes...»
Gostava de escrever, diz ele humildemente, não sabe que já começou. Botas cardadas no capim escaldante, um país arranhado a barganhar sangue, navio atrás de navio. Lançam-se os binóculos, focagem nítida: debaixo de uma daquelas botas há uma mina, por cima há um homem, suores frios, clandestinas memórias de juventude, vida subitamente quieta, pendurada pelo pé. «Não fiz a guerra mas estive em Mafra em 71/72. Mafra era uma espécie de recriação de África. Se tivesse estado lá, não sei se teria conseguido escrever este conto... Repare que não há referência expressa concreta ao local onde aquilo se passa; não se percebe se é Angola ou Guiné. De repente lembrei-me de uma aula de minas, em Mafra, onde nos falavam daquele tipo de mina de efeito retardado, que só explodia quando se levantava o pé. Foi daí que nasceu a história.»
Uma história de medos pigarreados em valentia, baços galões. «Não penso que o meu capitão seja um oficial sádico. Nem acredito que houvesse oficiais sádicos. Era apenas um homem medroso. Quem lhe chama sádico é o médico, que é um tipo bêbado, em quem não se pode confiar. Sabe que havia tipos que passavam a guerra permanentemente bêbados?» «Não há azar», exclama o sargento pachorrento, e morre. Que isto do medo é mudo privilégio, de alguns «pois, há homens assim, sem medo. Há quem diga que isso é falta de imaginação. Montaigne chama-lhes tolos». Tórridos suores: «O alferes entra em pânico e disfarça mal. O capitão procura mostrar coragem, valentia, e corre riscos. O seu brio profissional está em causa. (sorri) Talvez quisesse ser ele a desmontar a mina....»
O limite das situações limite. Mário de Carvalho esteve preso, há muitos anos, ontem. «Há pessoas que dizem que na cadeia se conhecem os homens. Falso; na cadeia conhecem-se os homens na cadeia. Conhecer um homem é muito complicado...» Julgar é bem mais fácil, claro. Mas terrivelmente entediante. Mário de Carvalho deita fora os bocejos da profissão e põe-se a olhar. Não há monstros, sublinha. O bem, o mal, ora... «O Padre António Vieira, num dos seus sermões, justifica a queima de um homem alegando que esse fogo lhe será poupado no Inferno....» Labaredas. As da lareira, ternurentas, para lá e para cá.
Seria de bom tom inquirir qualquer coisa como: «Mário de Carvalho, o fantástico foi-lhe então refúgio, uma forma de evitar contar-se, a si?» Mas não se pode, nem ele merece. Sobretudo nunca ao pé de uma lareira, que sacrilégio. Mário de Carvalho tem o talento de calar-se para melhor ouvir. Mas hoje é a minha vez. «O Fabulário está todo codificado. Tem tudo a ver com situações reais. Tebas está relacionado com a minha vida em 1975. Tinha uma impressão de ameaça, sentia que qualquer coisa não corria bem. Estava-se no auge da festa e eu pressentia um cerco. Esse livro era o meu recolhimento, nessa altura tinha uma vida muito agitada. Fiz muitos disparates.» (Pausa.) «Provavelmente fá-los-ia outra vez.» Pausa maior, lenha que estala. «Não consigo falar de certas coisas, ainda. Estive preso, andei fugido, não sou capaz de reinventar essas situações. Contar a vidinha, não me interessa. Defendo a tese de que a verosimilhança se ganha quando se inventa. E por isso que o relatar de coisas reais, tal e qual, é frouxo e soa a inverosímil.» Que gente real não é sinónimo de gente existente, conclui. E aqui é que Mário de Carvalho fica (um pouco) tímido. Ou antes, recatado: «Ando há dois anos com um romance que não passa das seis páginas. Começa com a Polícia a chegar a casa de um Fulano às sete da madrugada.»
Precisa de um romance. Preconceito, talvez, admite. Conto, escrita menor? Mas a Borges, bastou-lhe. Ia assim a conversa, mais acha menos acha; já não sei bem qual era a pergunta (se é que a houve) : «Li noutro dia uma crítica que falava da especificidade do discurso literário, insurgindo-se contra as formas da oralidade e não sei que mais... Enfim, ridículos disparates. Aqui aborda-se a literatura com toda a solenidade. Diz-se “a Escrita”, como se fosse uma espécie de contacto com o demiurgo. A escrita, para mim, não é uma paixão, não é orgástica... Tebas foi o único livro que me deu muito — enfim, algum — sofrimento. O Beco das Sardinheiras foi escrito com um grande gozo. O Alferes escrevi-o o ano passado, por esta altura.» Como? «À máquina, na ponta dos dedos.» A máquina, oh Céus! Resolvida parte do mistério; daquela máquina só podem sair mágicas palavras. É preta, e Royal, e muito antiga e linda. Guarde-se o babete, saia outra pergunta: quando lhe aparecem essas doidas fábulas? «Durante a insónia. Tenho a mania de combater a insónia inventando estas situações bizarras. Agora ando com esta às voltas na cabeça: O que aconteceria se alguém fizesse uma viagem no tempo e fosse apresentar a D. João II o mapa-mundo com todos os continentes?» Tem então muitas insónias? — inquiro, esperançada. «Tenho. Durmo muito mal.» E pesadelos? «Tenho, mas resolvo-os todos. Menos um: debato-me com o imponderável, numa atmosfera cinzenta, pesada. As pessoas à minha volta morreram, está tudo morto.» É um contador de histórias? — derivo, num arrepio. «Não, não sou nada do género de contar histórias ao jantar. Mas espere aí, porque é que perguntou isso dos pesadelos?» Nada lhe escapa, ai, ai. Confesso-lhe papões de infância, falo-lhe do tenebroso anoitecer das cobras debaixo da cama, da coragem que era necessária para abrir a luz e ir buscar um livro. Eram tão parecidos com os dele, esses contos de espantar bruxas. Ri-se, gargalha: «Ah, ah, então as minhas histórias são um antídoto? Se calhar. Conhece as Histórias de Proveito e Exemplo do Gonçalo Mendes Trancoso?» (Que não, digo.) «Foi um tipo que viveu no século dezassete. A família morreu de peste e ele escrevia histórias de encantar. O Frei João Sem Cuidados, por exemplo.» (Assim já me lembro.)
Infâncias, famílias, genes e ares: «Sim, o meu pai era escritor, chamava-se Domingos de Carvalho. Mas acha que isso é hereditário? Escrevia umas coisas, aí por 1960. Depois parei. Tinha a sensação de que havia coisas mais importantes a fazer, levava uma vida muito agitada. Hoje há mais espaço. Mas não passo a vida a escrever.» Profissão escritor, queria? «Estar ligado ao taxímetro? Não. Há pessoas que funcionam assim. Mas eu gosto de outras coisas.» Por exemplo? «De andar por aí. A escrita é inventar o motor a água ou a quadratura do círculo.» E da profissão que assume, gosta? (Riso número cem, afinal o mesmo, o dele.) «Uma entrevista é um acto público. Não faço declarações sobre o assunto.» Faz-se sério: «Às vezes gosto.» E nunca lhe ocorreu pescar palavras nos casos por que pugna? «Como os médicos escritores? Não, não tenho encontrado situações que o mereçam. É tudo tão pequenino, tão mesquinho... Casos de divórcios entre pessoas que já não se podem ver e discutem tudo até à última colher, sabe o que é? Os grandes romances são aqueles que têm personagens e situações típicas, e tudo isto é tão desprovido de grandeza...» Menciona Huckleberry Finn, o Conselheiro Acácio, as Almas Mortas de Gogol, o Bartolomeu Lourenço do Memorial de Convento: «Penso que só vale a pena escrever um romance quando nos acontecem personagens assim...»
Influências, preferências, lá vêm de braço dado, empoadas, irritantes: «Tens que perguntar por nós!» Lembrámos Sócrates e Mark Twain, é verdade; perguntámo-nos mutuamente das causas do distraído desdém com que se brinda o Eça; Borges sentou-se um bocado ao quentinho, mas Astérix também. Porque MC gosta de BD; à saída passa-me um álbum para devolver a Jorge Colombo (ilustrador deste jornal e dos seus últimos dois livros e cúmplice de uma lendária banda a ser desenhada um dia destes sobre um texto de Mário de Carvalho...). Bom, noblesse oblige; espiolhemos-lhe a cabeceira: «Estive a reler o Huckleberry Finn e depois os sermões do Padre António Vieira. Bem vê, um eclectismo completo. A última coisa portuguesa que li foi O Gémeo Diferente da Luísa Costa Gomes. Gostei bastante.» Capítulo fechado. Cada escritor inventa os seus antecessores, parece que foi justamente Borges quem isto disse. Afinal, sem esta lareira, teríamos dito as mesmas coisas?0 bloco cerra-se, a entrevista encerra para balanço. Uma questão muito zita fura ainda: Os seus contos são sempre... «Castos, não é?» Não era isso, mas pode passar a ser. Sim, digo, e acrescento: porquê? «É porque eu sou assim. O tratamento dos temas amorosos de um ponto de vista sexual cheira-me sempre a sensacionalismo. Não suporto o demonstrativismo. Há uma palavra medieval que acho extremamente bonita: “mesura”. As coisas só se devem contar quando têm que ver com a economia do texto.» A pergunta, a outra, era esta: Os seus contos são sempre abertos, ficam pontas soltas... «Nada se resolve. Na vida também é assim.» E sempre o romance. «Vou chamar-lhe Água em Pena de Pato. Gosta?»
(JL-JORNAL DE LETRAS, ARTES E IDEIAS, 29.1.1985)