Ficha Técnica
FAZES-ME FALTA
Autor: Inês Pedrosa
Publicações Dom Quixote
[Uma editora do Grupo LeYa]
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide • Portugal
Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor
© 2002, Inês Pedrosa e Publicações Dom Quixote
Design: Jorge Colombo
ISBN: 9789722043120
www.domquixote.leya.com
À memória do meu Pai, Ricardo Pedrosa
Para o Nelson de Matos
e o José Francisco Feição,
cúmplices de saudades que não morrem
Fazes-me Falta
Feliz assim por teres tudo o que sou?
Feliz por perderes tudo o que sei?
Só não te dou o que não serei.
Não, a minha morte, não ta dou.
PEDRO TAMEN
1. Não basta morrer para conhecer o sorriso de Deus – mesmo que, como foi o meu caso, se tenha vivido abismada nele uma vida inteira. Quando o pior acontecia, aquele sorriso descia às minhas trevas com um soluço de baloiço, um gingar de gonzos arrancado às cordas da infância. Eu sentava-me nele e subia, balouçando, até à luz. O pior aconteceu-me cedo, tive sorte. Deus procura primeiro os que sofrem antes do conhecimento específico da dor, talvez porque os outros sabem demasiado para poderem ser salvos.
Tu dizias que era ao contrário: que Deus nasce da ignorância própria dos sofrimentos prematuros. Mas tu, meu aluno dilecto, cedo te deixaste povoar pelo excesso do saber. Deus não sabia nada do Universo quando o criou. Imagino que se sentiria só. Imagino que num momento impreciso essa solidão se terá tornado maior do que Ele próprio, estourando numa gigantesca flor de luz. E imagino-O, depois, tentando dar um sentido particular a cada uma das pétalas dessa luz dispersa. Agora que saí do corpo que fui – para me tornar pólen, poeira nos teus olhos, pura imaginação de mim – imagino-o melhor ainda, ébrio de luz, lúcido, encandeado por um Lúcifer oculto e criador incrustado no seu próprio ser, em estado de paixão com a história desencadeada pela sua omnipotente solidão. E balouço no Seu sorriso outra vez, a vez definitiva porque o meu corpo está lá em baixo, num caixão, contemplado e lembrado e chorado pela última vez.
Não me levantarei da cama amanhã depois de lhe pedir em surdina que dê um impulso maior ao balouço, que o empurre com força até que os pés me voem para fora do calor aterrado dos lençóis. Ninguém mais vai estar à minha espera, não terei de me disfarçar de desculpas, não voltarei a iludir ou desiludir ninguém. Não voltarei a morrer no corpo do único homem que me abriu no corpo a passagem secreta para a morte. Não voltarei à desilusão do renascimento. Sobretudo não voltarei a desiludir-te a ti, o descrente que me ensinou a crer melhor, o meu pequeno e velho Deus de algibeira, o meu amigo.
Despojada de corpo é-me mais fácil transformar-me no próprio balouço, na luz dançante de que ele é feito. Num murmúrio de vento peço-lhe que não me empurre tão depressa para esse lugar iluminado que é a Sua Carne, peço-lhe que me deixe matar saudades desse mundo que deixei tão de repente. Matar saudades de ti. Ou matar-te, como fazem as crianças, para recomeçar uma outra história, no balouço quotidiano do teu sorriso.
Só o teu riso dura. Mostrei-te o mar.
Mostrei-to antes e depois de morreres.
LUÍS FILIPE CASTRO MENDES
1. Estou sozinho. Sozinho com o coração em bocados espalhados pelas tuas imagens. Já não posso oferecer-te o meu coração numa salva de prata. Alguma vez o quis? Alguma vez o quiseste? Dava-me agora jeito um deus qualquer para moço de recados. Um deus que te afagasse os cabelos e me recordasse como eram macios. Um deus que me libertasse desta imagem fixa do teu corpo encaixotado. Logo tu, que tantas vezes te rias daquilo a que chamavas o meu «encaixotamento compulsivo»
– Um dia chego cá e encontro-te no meio dessa papelada, morto de cansaço, pronto a encaixotar. Olha, eu é que não te empacoto – ganhei medo a mortos.
Sempre te disse que o medo atrai a desgraça – podes rir-te. Ri agora tudo que ninguém te ouve. Isso; se o teu Deus existe solta uma gargalhada forte para que eu acredite. Mas não, é melhor que não te incomodes: essa gargalhada póstuma destoaria do meu belo arquivo de gargalhadas tuas. Estragava-lhe a estética, entendes? E a estética, para falarmos com franqueza, nunca foi o teu forte. Não suportavas as meias-tintas. Odiavas a renúncia engatilhada sobre os paradoxos da vida. Não podias ter morrido de uma coisa menos esdrúxula, por exemplo? Não podias aguar dar a dignidade das primeiras rugas? Que tendência para o kitsch, minha querida – mas Deus sai-se sempre em kitsch, não é verdade?
Descansa em paz. Fizeste uma morta bonita – mais bonita e serena do que alguma vez foste, cachopa. Compuseram-te a imagem. Disso vivem as figuras públicas, mesmo na morte. Viva a imagem. Talvez fosse melhor não te ter visto, não ter beijado a tua testa. Agarrei-me a essa derradeira nota do teu calor. Ficaste-me com um travo a incenso e flores mortas. O cheiro do amor vedado que abandonáramos pela paisagem na nossa pré-história. Chamo-lhe amor para simplificar. Há palavras assim, que se dizem como calmantes. Palavras usadas em série para nos impedir de pensar. O que existia, existe, entre nós, é uma ciência do desaparecimento. Comecei a desaparecer no dia em que os meus olhos se afundaram nos teus. Agora que os teus olhos se fecharam sei que não voltarás a devolver-me os meus.
Dentro da História onde já não estou, da História que percorri como um carrossel, da História que nos serve sempre de morada provisória, as pessoas perguntam. Que sentido faz a morte de uma rapariga de 37 anos, catano, roída pela própria posteridade? Tinhas deixado de fumar para não morreres de cancro. Não era a morte que te incomodava, dizias, mas o vagar dela, a tortura da doença. A História. Creio que nunca te vi doente – a não ser de amor. Cultivavas o vício da paixão com um método implacável. Corrias em contra-relógio. Procuravas a imobilidade de um tempo -pedra que já era o teu. O nosso – mas como podíamos dizê-lo, se tínhamos de continuar vivos? Nos breves dias em que vivias desapaixonada, tornavas-te impossível. Nada te entusiasmava. Depois iniciaste uma carreira de Poder e perdeste esse gosto profundo pelo romance extático. Entraste na narrativa, no burburinho tranquilizante das intrigas. Até a tua carroçaria se modificou; das últimas vezes que te vi, usavas uns saia-e-casaco pavorosos, umas coisas de mau corte e mau tecido a imitar Armani, nuns cinzentos berrantes. Disse-te: «Ena! Disfarçada de executiva!» e tu explicaste que se tratava apenas de uma farda de trabalho. Que aos fins-de-semana mantinhas o estilo de sempre. Mas o estilo é uma maneira de ser, não uma farda de fim-de-semana. A política retirou-te o estilo e afastou-te de mim. Os políticos não precisam de amigos, precisam de uma corte – vem nos livros. Tu foste simplesmente à tua vida e eu fui à minha. Como sabes, eu vivo por relâmpagos; contigo partilhei uma trovoada um pouco mais longa do que o habitual. Foi apenas isso. De qualquer modo, a morte espreita sobre todos os prazeres dessa cronologia a que nos agarramos para escapar ao tempo. O que somos para além do que vamos sendo? O meu além eras tu – íman da minha íntima, impessoal temporalidade. Redenção dos males que me amputaram. Tu. Agora puro vapor do universo. Serves-me de Deus – quem diria? Serves-me no que não sei ser, e é a verdade. Olho para o mar do Guincho, para essas ondas frias e violentas em que tanto gostavas de mergulhar, e sinto-me também eu meio morto, meio frio. Feliz por estar ao teu lado outra vez. Ao lado dessa que já estava morta um bom par de anos antes de tu morreres. Fazes-me falta. Mas a vida não é mais do que essa sucessão de faltas que nos animam. A tua morte alivia-me do medo de morrer. Contigo fora de jogo, diminui o interesse da parada. E se tu morreste, também eu serei capaz de morrer, sem que as ondas nem o céu nem o silêncio se transtornem. Cair em ti, cada vez mais longe da mísera ficção de mim.
2. Deus afrouxa o impulso, já posso revisitar a cidade que tanto amei contigo. Coisas pequenas: no jardim próximo da tua casa, uma criança abre as asas no meio de uma toalha de pombos cinzentos, que esvoaça e o deixa lá em baixo, a esbracejar. Há uma mulher jovem que passeia para cá e para lá no jardim, vigiando a criança e falando ao telemóvel:
– És um pulha. Digas o que disseres, és um pulha. E o teu filho vai saber o pulha de pai que tem.
Enquanto morria, não vi a minha vida em câmara lenta nem vales verdejantes, nem sequer ouvi músicas celestiais. Talvez seja possível morrer-se assim, como tantas vezes ouvi contar. Talvez até seja possível que, no instante do estertor, o relâmpago do génio ponha na boca de alguns as palavras redentoras. Sempre duvidei disso, mas tudo aquilo de que duvidamos é possível, digo eu, agora que já não tenho o supremo prazer da dúvida. A morte é um segredo bem guardado, o único de cujos direitos de autor Ele não prescindiu. Posso contar-te a minha morte, aqui deste espaço sem espaço, porque Ele sabe que já não me vais ouvir. Mas eu sei que vais imaginá-la de muitas maneiras diferentes, e que, por as imaginares, todas essas minhas mortes existem já, neste nosso íntimo espaço de inexistência.
Morri em eco, desdobrada. Morri com um sem-abrigo perdido no caminho para o meu útero, morri porque o meu corpo decidiu gerar uma vida nova e se enganou. Percebi que a morte abria as comportas do meu sangue, mas só no fim desse rio vermelho percebi que levava comigo um filho impossível. A primeira sensação que experimentei, depois de ter desmaiado de dor, foi um intenso perfume de bebé, um perfume quente e azedo de leite bolçado. O balouço do sorriso de Deus apanhou-me de repente, num rasgão de luz, e sentado no meu colo estava uma espécie de bebé minúsculo, quase só um sorriso de bebé que parecia ter saído directamente do meu ventre para o meu colo. Uma semente, uma pedra, uma coisa quente esvaindo-se de felicidade, arrancando-me a dor. Que se desfez numa luz azul, com um vagido de alívio. Então o balouço ficou mais leve e começou a girar durante um tempo que me pareceu infinito por dentro de uma rosa de luz branca. As ondas de luz dessa rosa em espiral explicavam-me tudo o que eu não sabia sobre a minha morte, e muito do que eu esquecera sobre a minha vida. Coisas simples, como essa criança que eu gerava numa parte inviável do corpo, no lugar cego e sábio da inconsciência. E coisas ainda mais simples, inefáveis, como os defeitos de fabrico da minha amizade por ti. Coisas irremediáveis e tranquilas. Meu Deus, deixa-me aperfeiçoar nelas o primeiro concerto da minha eternidade. Ele abrandou o calor do sorriso, as pétalas solares dessa rosa por onde eu subia afastaram-se, e o sopro que eu sou desceu devagarinho sobre a nossa cidade.
Não é o olhar de desdém inteligente que se aprende nas janelas dos aviões, não. Já suspeitava que o olhar rectangular que se despeja sobre o movimento desvairado das formigas humanas em nada se aparenta à inclinação compassiva do olhar de Deus. Nesta primeira prega da transcendência, neste noante à margem do teu tempo e da minha eternidade, o meu olhar sem órbitas move-se por ampliações máximas de pormenores mínimos. Da criança que quer ser pombo para as janelas fechadas da casa onde tu não estás, porque foste velar o meu corpo. Deixaste a luz da casa de banho acesa, as portas do roupeiro abertas e umas calças de bombazina vermelho-escuras enrodilhadas ao lado da cama. Nem pareces tu.
2. Pensaste em mim enquanto morrias? Dava muito dinheiro por esta resposta – desde que fosse a verdade. Porque há a verdade – não é tudo tão relativo como tu querias ensinar-me. Há a verdade, e era isso o que nos unia; que houvesse a verdade, navio absoluto. Alguns outros concordariam connosco, mas à distância. A distância dos risos e dos copos que se tornou a nova intimidade. Para ti, a verdade não era inatingível – estarias já comigo naquela manhã de infância em que quis nadar até ao navio do horizonte? Apanharam-me antes de lá chegar, com um barco a remos e um par de bofetadas – o menino é doido?
Vive-se melhor a inventar a verdade todos os dias, dizem-me. Faz de conta que não morres. Faz lá. Nós os dois queríamos inventar tudo menos a verdade. Mesmo que ela fosse nossa inimiga. Sobre tudo quando ela era nossa inimiga. Queríamos matar a verdade má e espalhar a verdade boa – o menino é doido?
Como é que eu mato a tua morte? Em sonhos, vens-me buscar, levas-me contigo por um corredor longo e frio. Porque há tantos corredores, e tão escuros, nos sonhos? Mas no fim, olhas para mim e já não és tu. Uma caveira com restos de carne nos olhos ri-se para mim e faz nha-nha-nha, como as crianças – bem feita, bem feita, enganei-te. Acordo e tenho dificuldade em separar-te da caveira. Vejo-te ossos, nervos e pele enegrecendo nos retratos, um sorriso cáustico flutuando no silêncio do quarto. E tudo cheira a velhice, à podridão instantânea em que te tornaste. Não querias que te visse morta; punes-me por isso?
A busca da verdade torna-nos castigadores. Tropecei tanto nas tuas pequenas mentiras. Urtigavam-me tanto. Mentia-te imediatamente, com um pouco mais de veemência, para tu veres. Mentiras. Tornavas tua uma graça que era minha, e essa anedota voltava para mim, aumentada, aviltada pelos pontos de humor que tinhas ganho entretanto no coração de alguém, à minha custa. Quando nos conhecemos não eras assim. Citavas-me. Punhas aspas. O teu encanto era essa – tão rara – cintilação de aspas. Dizias: «Fulano disse-me», «Cicrano contou-me». Sublinhavas a inteligência e a beleza das palavras dos outros. Na passagem à política foste largando esse rigor, como uma pele incómoda. Os nomes eclipsaram-se, varridos para debaixo do solene tapete das «fontes seguras». Depois, à medida que foste ganhando confiança, aprendeste a dispensar inclusivamente esse recurso às fontes. Quantas frases saídas da minha boca para o teu ouvido, desenhadas de propósito para te fazer rir, regressaram a mim. Nos jornais, como «citações da semana» saídas do teu nobre cérebro.
Repara que eu não ponho em dúvida a nobreza e vastidão do teu pensar. Eras uma tese de doutoramento existencial em movimento. Alguma vez te disse isto? Pensavas tanto e tão bem que intercalavas sempre as citações nos sítios certos. Não precisavas de as engolir e vomitar como pérolas próprias. Tornaste-te ostra, sim; molusco, ou menos pessoa, se preferires.
A princípio eu ofendia-me, replicava – fazia teatro. E isso era a verdade. Mas desisti; tu não fazias teatro nenhum.
– Que importância é que isso tem? Não me vais agora fazer uma cena de ciúmes por uma história que eu me esqueci que era tua.
A Lia era assim. O Partido era assim: um clube onde ganha o que mais depressa conseguir caçar e comer as qualidades dos outros. E isso, explicavas-me, não era mentir. Entraste no mundo especializado onde mentir era diferente de omitir. Muito menos grave. E a traição só existia quando muito repetida, nos mesmos lugares, com as mesmas pessoas. O resto – inconfidências, sexo, intrigas, queixas – eram apenas escapadelas humanas.
O teu código moral burocratizou-se; havia alíneas para todas as infracções. E mesmo as maiores passaram a ter pouco valor. Aprendeste que é mínima a distância entre um deslize e um crime. Que todos podemos, num dado instante, escorregar para o negro. Uma bebida, duas, um bêbado, um assassino; um charro, um cheiro de coca, uma dependência, um ladrão. A vida tornava-se assim. Incontida. Demasiado simples e complexa. Música em crescendo, ensurdecedora. Sem qualquer verdade de partida.
– Que importância é que isso tem? Pior é quando eles pegam num projecto meu e proclamam que é deles. E eu já me habituei: são homens, são muitos, sempre governaram assim. Se a guerra se faz com mísseis, não adianta cansar-me a atirar-lhes pedras.
Tinhas resposta para tudo, raios te partam. No tempo em que estudavas História, a tua especialidade eram as perguntas. Interrogavas o passado com veemência e método: porque é que isto foi assim? Porque é que as outras possibilidades não puderam ser? Onde é que está a verdade, para além dos factos?
Riam-se de ti, quando falavas da verdade. Repetiam-te que a verdade não existia – porque essa era a verdade do pedaço de tempo que nos era dado viver. Mas tu não te instalavas no teu tempo. E preocupavas-te continuamente em não te instalares num outro qualquer tempo que te tornasse anacrónica.
– Quero lá saber que me achem caduca. Mas rala-me pensar que posso não ter mais do que ideias-de-reacção. Não nos pode mos deixar levar para o campo do inimigo, meu querido.
O campo do inimigo. Sabias desenhá-lo com a nitidez de um relva do de futebol. Gostavas de futebol porque era parecido com a verdade. Mesmo com árbitros comprados. Ou notas correndo em rios gordurosos debaixo das mesas de fiscais, empresários, advogados. Mesmo quando se tornou um negócio. Os maus e os bons, os puros e os impuros; sim, o correr das notas tornava as distinções mais árduas. Mas o sol sobre o relvado decidia tudo – as pernas dos homens correndo atrás da bola da verdade.
– Vê-se tão bem quem joga com tudo o que é e quem joga só com o corpo, dizias tu. Porque é que a vida não é transparente como um jogo de futebol?
3. De quem é esta morte encenada em caixão? De onde vem esta febre fria que me sela a boca? Luto para fugir desta caixa onde me expoem e me lamentam. Se ao menos soubessem rezar. Pai Nosso, eu não quero já o céu. Aos vivos, incomoda-os o cheiro dos mortos. Por isso o sufocam em flores, incenso, velas, tudo o que possa manter esse cheiro longe do corpo concreto, ainda carne, ainda quente. No lugar do morto, é o medo que enjoa e entontece. O medo que os vivos têm de mim, agora, do futuro que lhes anuncio, vestida para enterrar. Esse medo cria ondas de calor, ondas enevoadas, que a luz das velas, a baba dos sussurros amplia.
Meto-te medo, também a ti? Aqui imóvel, de olhos fechados, olhando-te ainda, para não me olhar a mim, para me afastar do cheiro a medo que é talvez o cheiro derradeiro. Concentro-me em ti, no cheiro da praia, algas e rochas, no cheiro do mar onde tantas vezes mergulhámos juntos, nos cheiros da vida que me salvem desta névoa maciça, da piedade irremediável de mim. Pai Nosso, deixa-me olhar para ele. Deixa que os meus olhos mortos subam na luz das velas, devagar, para olhar para ele.
Contemplo-te, finalmente. Nunca pensei ver-te de meias desemparelhadas – uma cinzenta, a outra preta. Quando cruzaste as pernas e ergueste as costas com um suspiro, deitando a cabeça para trás, apercebi-me desse pormenor e só então me comovi. Porque aquela tua pose sofredora, uma hora sentado de cabeça baixa, podia não querer dizer nada. Ou melhor, podia querer dizer tantas coisas que se tornava uma pose branca, de uma elegância sombria distante de mim.
Passei a vida inteira a querer interpretar-te – oh! delicioso desperdício! – e nem sequer era por amor. Quero dizer, não era por causa daquela coisa que põe as pessoas numa exaltação de posse e de sexo. Através de ti eu existia antes de ter nascido, no vocabulário áspero e secreto de uma guerra que já não me pertenceu – moita carrasco, gatilhos olvidados, o tanas. Nem naquela noite em que despejámos sozinhos a tua preciosa garrafa de whisky velho irlandês e ficámos a ver a primeira demão do sol sobre os telhados de Lisboa nos ocorreu, sequer por um segundo, experimentar isso a que chamam a vertigem do corpo. De certa maneira, sabíamos de cor o corpo um do outro; trocávamos inibições e desaires como os miúdos trocam cromos. Mais do que alegria, era uma espécie de orgulho que nos estonteava nessa troca de intimidades funestas. Sem dormir contigo, aprendi de ti as vitórias e misérias de um homem, o rigor turbulento do prazer, o pavor de falhar, a relatividade das entregas como regra de entrega absoluta.
Sobretudo, gostava de te ver. A escolher lenços de seda italiana, por exemplo, abrindo e fechando as gavetas arrumadas por cores. Podias viver a pão, água e cigarros – mas nunca sair sem um lenço de seda pura ao pescoço. Os teus lenços, como me embaraçavam, ao princípio. Por causa deles, arquivei-te na pasta dos galãs decadentes. Eu era exactamente o oposto: parecia-me um escândalo que se pudesse gastar o salário de um mês numa fatia de tecido, escolhia a roupa em cestos de feira e nas cores dos filmes dos anos 50, deixava-a amontoada nas costas da cadeira do quarto semanas a fio. Mas tu gostavas de olhar para mim. Gostavas dos meus ténis brancos no meio dos sapatos altos, da roda das minhas saias cor-de-rosa por entre os tailleurs azuis escuros. Eu era sempre o que parecia, tu ias sendo tudo o que parecias. Creio que por isso fomos tão íntimos – e por isso nos afastámos tanto.
Quando o teu rosto surgiu, num tremor de velas, sobre o meu, eu já não te via há cerca de um ano. Com aquilo a que chamavas o meu sentido de humor gaiato – e aproveito para te informar que sim, é a última coisa a desaparecer – o teu ar compungido deu-me vontade de rir. Se pudesse, claro. A lista das namoradas? O tema da próxima festa? Uma ida a Nova Iorque? O que estarias tu ali a planear, naquela tão eloquente compostura de viúvo? E então cruzaste as pernas. Ficaste uma boa meia hora de pernas cruzadas e não deste pelo terrível erro. Nem tu nem ninguém, está descansado: nos velórios, a luz é baixa e o morto, apesar de tudo, demasiado presente. Ora o morto, na ocasião, era eu. Ainda tão pouco habituada à ideia que a palavra «morta» não se me ajusta. Por isso te procuro com as palavras da vida, as palavras com que tu me reconheceste e amaste. Mas que sei eu das horas que passaste a velar-me, que sei eu do tempo, agora, que a vida se desenrola diante de mim como um filme longínquo?
Neste lugar sem lugar, passado presente e futuro são contemporâneos. Desabam para o interior do seu próprio excesso de existência. Mas a mágoa persiste, resplandece na desordem. Os meus olhos que já não o são vêem agora tudo o que foi, tudo o que poderia ser, tudo o que é. Concentro-me no que é – estou morta, todos me choram, finalmente despidos da maldade pequena, contínua, mineral, que os vivos entre si aplicam como lei de sobrevivência. Era esta a glória que eu sonhava em adolescente: a de congregar toda a tristeza em volta da minha saudade.
Toda? Falta-me alguém que não és tu. Falta-me o lugar da minha morte – o escuro de umas escadas onde se ouve o barulho da chuva, de umas escadas onde aprendi a chorar. Fui esse lugar, a antecâmara da paixão. Fui o interior do corpo de um homem que não pode ver-me morta. Ele deita-se neste instante no chão do lugar onde há muitos anos me matou. Eu sei que ele está lá, nessa casa agora deserta, nessa casa que ele guardou para ele. Nessa casa que eu queria, quero ainda, que ele tivesse guardado para mim. Encosto-me à porta dessa casa esconsa que guarda o que não sabes de mim, o que eu nunca quis saber e fui. Nunca mais posso bater a essa porta, nunca mais posso chorar para que a porta se abra e me mostre, na névoa das lágrimas, o lugar do amor. Estou morta. Todos me choram. Ele chora. Não há chuva, só o ruído das lágrimas dele. Nunca houve chuva, só as nossas lágrimas, as lágrimas de que fujo, uma vez mais, para o colo espelhento da nossa amizade imanente, moribunda, imortal.
Não me deixes chegar ao céu, meu querido. Eu sempre tive tanto medo de que tu tivesses razão. E se o céu for o desencanto em que crês? E se a nossa amizade mal vivida não couber na perfeição do céu? Deixa-me ser apenas a beleza magoada da tua vida, enquanto a vida for tua.
3. Quando te conheci vivia um período apático. Um dos raros períodos apáticos da minha existência. O esforço do segundo divórcio, a reforma, a morte de um amigo próximo. Entregava-me à cómoda enumeração destas razões. Divorciara-me por iniciativa minha, pedira a pré-reforma porque estava farto do Banco. Só a morte do Alexandre escapara aos meus desejos. De repente, estava quase velho – como toda a vida me apetecera ser. Com direito a resmungar, a jorrar sentenças e lançar ralhetes, a ter a razão respeitada de quem já não espera ter mais nada. E vi-me esvaziado, sem perceber porquê. Com vontade de resmungar sem razão, de sentenciar sem sentido. De experimentar de novo a arrogância aflita da juventude. Inscrevi-me no curso de História para preencher esse buraco. Precisava do sangue da batalha infinita. Fazia-me falta o sangue das ideias dos outros, o sangue da História do Futuro que escorre nas salas das Universidades, nas margens intranquilas dos livros. A História fascinava-me, desde criança. Parecia-me a ocasião para cultivar esse gosto antigo. E homenageava postumamente a minha mãe, que nunca se conformara com a minha falta de licenciatura.
Não consegui escutar uma palavra da tua primeira aula: estava, digamos, hipnotizado pela tua extraordinária camisola. Azul eléctrico, semeada de barcos à vela e golfinhos de lã. Parecias ter quinze anos – e isto não é um elogio. Não acreditava que uma colegial de subúrbio pudesse ter alguma coisa para me ensinar. Nas semanas seguintes diverti-me a transformar o teu zumbido juvenil em palavras. Ia trepando pelas paredes. Para ti, toda a História da civilização fora construída sobre o objectivo sistemático da exclusão das mulheres. Lou Salomé era afinal a autora dos poemas de Rilke e da psicanálise de Freud, Alma Mahler a criadora das sinfonias do marido, Camille Claudel o espírito das figuras de Rodin, e por aí fora. Ficaste pior do que uma barata quando comentei que a cadeira deveria intitular-se História das Musas, em vez de História das Mentalidades. Evidentemente, não deste parte de fraca: marcaste-me um trabalho de casa sobre a influência das musas na História das Mentalidades. Defendi, em síntese, a ideia de que a musa funcionava tão somente como um espelho amplificador da luz do criador. Deste-me um 9 e decidiste ignorar-me.
Este jogo fez-me regressar à cor. Entrei num período rubro, coisa que já não me sucedia desde os alvores da revolução. Comecei a ler livros em catadupa. Coleccionava argumentos para te cilindrar. Ao mesmo tempo, divertia-me descobrir toda esse pleíade de mulheres que tu me apresentavas. Apaixonei-me pelas sobrancelhas negras – tão parecidas com as tuas – de Frida Kahlo. E pelos seus auto-retratos gloriosos, sanguinários. Permanecias imune aos meus exercícios de charme. Para te dizer a verdade, eu não estava habituado a que as mulheres resistissem ao magnetismo natural dos meus olhos azuis. O dom da minha beleza, que tanto me complicara a vida, deixava-te indiferente – a ti, uma rapariga de modestos dotes físicos, tricotadeira de barcos à vela e teorias da emancipação. Eis o que me intrigava.
4. Há tantas coisas que nunca te disse – e dizias tu que eu falava demais. Flutuo por este noante em busca dessas palavras a menos, atravessadas entre nós como um longo corredor de prisão. Em vida, sussurrava: não te perdoo o que não soubeste saber de mim. Este noante revela-me a verdade invingada: não me perdoo o que não soube verter-te de mim. Devias ser o meu herdeiro, o prolongamento da minha luz. Na passagem do ano de 1990, à meia-noite, interrompemos o mah-jong e tu abraçaste-me com muita força. Sussurraste-me: «Se eu não estiver cá no ano 2000, joga por mim. E faz-me o favor de ganhares, para variar, cachopa.» Nenhum de nós pôs a hipótese contrária – tu tinhas então
53 anos, eu apenas 28. Eu pensava que queria mudar o mundo, eu pensava que tu apenas querias mudar de cenário. Eu pensava que pensava – por isso descobria tão pouco do impensável de nós. A fé pode tornar-se também uma arrogância, e tu sabia-lo, embora tivesses sempre mantido a delicadeza de não mo dizer. Usavas a crueza como um bisturi; atingias numa só frase os tumores do meu entendimento, extirpava-los com rapidez e brutalidade, para que eu não me enredasse neles. Mas nunca me estremecias o sistema nervoso central. Podias ter-me dito:
– Pensas que és melhor do que os outros, porque estás protegida por um Deus que eles desconhecem.
Seria inteiramente verdade, mas a minha história não me permitiria reconhecer essa verdade. E então tu rias-te, e calavas-te. Eu dizia-te coisas bárbaras como essa:
– Eu quero mudar o mundo, tu só queres mudar de cenário
e o teu olhar ensombrecia, numa carícia triste, e a tua boca soltava uma gargalhada desafinada, e dizias amen. Vivi enroscada na minha boa consciência – espelho, espelho meu, existe algum ser humano com melhores sentimentos do que eu? Não me chores, meu querido: o melhor de mim vive ainda em ti, sempre viverá nesse saber da fractura que me faltou, nessa coragem da incompletude que só deste noante consigo finalmente ver. Fui tua professora na Universidade, não consegui servir-te de Mestre, mas encontrei em ti esse privilégio maior do ensino: uma alma capaz de acrescentar cor à tela que lhe apresentamos. Disseste-me uma vez, quando eu fui para a política: «O teu Jesus é o militante revolucionário que expulsa os vendilhões do templo, caraças. Os Deuses assim, em forma de tempestade, arrastam multidões e perpetuam a força das bíblias. Quando ensinavas, estavas mais próxima do Jesus que perdoa Judas, o Jesus que agradece a Judas essa escada de amor a que chamamos perdão. Esse Jesus era apenas um homem capaz de cometer coisas imperdoáveis, solidário com a concreta fragilidade dos Homens. Só esse Jesus me interessa.»
Pensei, vê lá tu, que falavas assim por inveja. Nos países pequenos, a inveja torna-se um tema enorme e mistificador, e as teorias da conspiração florescem rapidamente no canteiro da nossa impaciência. Faltando-nos engenho e arte, barricamo-nos na impaciência das teorias. A minha passagem do ensino para a política foi ainda e sempre uma insubordinação teórica – e eu pensava que estava a fugir da teoria para a arte maior da vida.
O que é que te ensinei, afinal? Tudo o que havia de original na minha tese de doutoramento foi escrito e pensado por ti. Em vez de te aconselhar a que prosseguisses uma carreira académica, suguei-te, copiei os teus trabalhos sobre os paradoxos do ideário feminista, conquistei um louvor à custa da tua anónima criatividade. E convenci-me de que tudo se tinha passado ao contrário, de que fora eu a pôr na tua cabeça as ideias que me devolvias, ligeiramente ampliadas. Eu era, por definição, a perfeita, a escolhida por Deus. Se ao menos te tivesse dito «Obrigada». Deus da minha imperfeição, entorna um mililitro da minha voz morta nos sonhos do meu amigo, deixa-me dizer-lhe esse obrigada que tanta falta me faz.
4. E dizia eu que tu falavas demais, gaiata. É verdade que não paravas de falar. Mesmo ou sobretudo sem palavras, com o movimento do teu corpo, a força dos teus abraços em carne viva. Às vezes sacudia-te, só por aflição, imagina, uns desenrascanços de timidez que me punham as moléculas a ferver – não sabia abraçar como tu, percebes? O abraço que me deste naquele fim de ano, já lá vão doze anos – terei sabido recebê-lo? Alguma vez te abracei como merecias?
Quando tu vivias, eu podia acreditar na alma, lama, mala interestelar, o caraças que tu quisesses. Porque a gente olhava para ti e via essa coisa transparente e firme, esse nó de sangue, secreções e luz a pulsar como um farol. Agora, tudo e todos me falam do «espírito que permanece», os teus padres invocam-te, a ti e a dezenas de outros passeantes do Paraíso, a despachar, que as missas querem-se também rápidas, eficientes, by the book. E eunão consigo acreditar nas almas abstractas, bolhas de ar discretas arrotadas entre um chá e dois suspiros.
Fazes-me falta, merda – já te disse? O seráfico do teu Jesus, porque é que não me acode? Porque é que não te ressuscita – por umas horas, Senhor, o que são umas mariquíssimas horas para um gajo repimpado na eternidade?