Título: Os Íntimos
© 2010, Inês Pedrosa e Publicações Dom Quixote
Edição: Cecília Andrade
Revisão: Clara Joana Vitorino
ISBN: 9789722043212
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Publicações Dom Quixote
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Estar com estes gajos é a adolescência que não tive. Vivi uma juventude carregada de tarefas, perigos e responsabilidades. Não tinha tempo para pensar em mim, era apenas um elemento num grupo vasto que tinha a obrigação de mudar o mundo. Na época de não ter memória, eu tinha mesmo de ser memória. Vivi demasiado tempo como justiceiro, lutei por coisas que afinal não eram justas. Ou que não era exactamente o que pareciam. Sou do tempo da cisão, do desdobramento. Das palavras necessárias. Agora, sinto urgência de dizer o desnecessário. Dizer tudo o que me apetece, de forma simples. Usar as palavras como simples extensões da personalidade – as mulheres são melhores nisso do que nós. Mais livres. Mais sérias, também. Demasiado analíticas: tudo tem de significar alguma coisa. O absurdo é uma coisa macha. Dá para o pior, mas também para o melhor: o humor desbragado. As mulheres nunca se riem verdadeiramente de uma anedota; na melhor das hipóteses, respondem com uma gargalhada polida, cerimoniosa. Se a anedota for porca, afectam um arzinho superior, chamam-nos infantis, dizem: que coisa. Se as anedotas se sucederem, desatam a bocejar. Têm outras vantagens, claro. Inúmeras.
A esperança, por exemplo. A política teria mais esperança se fosse uma actividade dominada por mulheres. Margarida fica uma fera quando digo isto:
– Ideia de um machismo refocilante essa; antes os gajos que dizem que as mulheres são demasiado nobres para poderem interessar-se por uma actividade medíocre como a política. Esses ao menos dizem ao que vêm.
Se respondo que não entendeu o que eu queria dizer, eriça-se ainda mais, chama-me paternalista. Desisto, abraço-a, desço-lhe as mãos pelo corpo e digo
– Deixa-me sentir-te.
Nisto entendemo-nos. Nos sentidos. Não me canso dela como sempre me cansava das outras. A tese das almas gémeas é uma fraude, mas é verdade que há uma pequena percentagem de corpos incompatíveis, uma alta percentagem de corpos compatíveis e uma minoria de corpos feitos um para o outro. Quando se tem a sorte de encontrar esse corpo que se funde no nosso como o mar com o horizonte num dia de Verão, isso é a felicidade. Nem o amor nem o sexo servem para definir essa fusão. Trata-se de um fenómeno mais simples e mais complexo, assustador pela sua grandeza. Há quem fuja deste encontro como da peste; se eu me tivesse deitado com a Margarida aos vinte anos, teria certamente fugido dela com todas as minhas forças. Nessa época não só não acreditava no amor, como fazia da Liberdade uma espécie de deusa exigente erguida sobre um pedestal altíssimo. Livre sou-o agora, pela primeira vez, quando entro no corpo da Margarida, quando me inebrio com o cheiro e o toque da sua pele e deixo de saber quem sou. Tenho medo que ela desapareça. Que lhe aconteça alguma coisa. Que ainda pense no Afonso. Sofreu tanto por causa dele. Sei que não pensa nele quando está comigo, o que só me aumenta a vontade de estar com ela. Mas temo que ainda sinta amor por ele. Tem-lhe ainda demasiada raiva. Ela nega – com demasiada veemência. As mulheres amam sempre mais aqueles que menos as amam. Nisso, são iguais aos homens.
Não deixei de ser sensível a um corpo bem torneado, a um par de mamas saliente, ao sorriso de uma mulher. Entra agora na tasca uma mulher bonita, e o cérebro descarrega-me no corpo uma sensação agradável. Imagino-me a mexer naquela mulher. Mas é uma imaginação curta, sem vontade de enredo. Pensei que esta concentração da libido num só corpo me faria sentir diminuído. Mas é exactamente o contrário: deixar de ser escravo do sexo indiscriminado é uma libertação. Agora posso ser apenas amigo de uma mulher. Apenas amigo – triste expressão, que diz muito sobre o tempo que vivemos. A mulher bonita zanga-se com o homem que bebe sozinho na mesa do canto. Agarra-lhe no braço:
– Ou vens agora comigo ou já não voltas a entrar em casa.
Ele murmura qualquer coisa, com olhos de súplica.
– Gostas, gostas. Gostas é de garrafas, e de gajos de calções atrás de uma bola. És um bêbado. Que faço eu com um bêbado?
Boa pergunta. O homem acaba por pagar a conta e sair, cabisbaixo, atrás dela, deixando uma garrafa de vinho ainda a meio na mesa.
– Celiazinha, traz-nos o resto do vinho desse infeliz, para brindarmos à sua felicidade, vá lá.
– Estava bem arranjada se precisasse dos vossos brindes, eu.
– O Augusto não falava da tua felicidade, boneca, mas daquele pobre homem arrastado pela bruxa da mulher – explica Afonso.
Célia responde, a rir, que aquela nem sequer é a mulher dele: é «a outra». Explica que com a mulher e os filhos vem ele almoçar ali ao fim-de-semana.
– Eu francamente não percebo o que é que leva uma mulher a meter-se com um homem casado. É desgosto garantido, e desfeitas umas atrás das outras – acrescenta.
– Tens toda a razão, querida: eu acho que um homem casado só deve meter-se com mulheres casadas. Sou pela igualdade de género – diz Guilherme, rindo.
– Vocês têm todos muita garganta, isso é que é. Trago mais uma dose de batatinhas fritas?