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A neve que caíra durante toda a semana gelara pelo frio, reflectindo a luz estrelar que salpicava o agora negro céu da noite.
A pequena aldeia, acolhida nas fragas de pedra escura, mantinha-se calma, adormecida.
Todos tinham recolhido às suas casas, há já muitas horas.
O gado, as cabras e as ovelhas dos pastores mantinham-se no curral há longos meses, tal estava a ser aquele Inverno, incluído nos almanaques como um dos mais frios de todos os tempos e ainda só estávamos em Janeiro.
Todas as casas estavam embebidas no fumo que saía das chaminés vindo das lareiras, onde um fogo quase morto ardia muito vagarosamente.
O silêncio era sepulcral, nada se ouvia, e nem os cães, ao contrário do que era hábito, se manifestavam, recolhidos que estavam nas suas casotas, enroscados para se manterem quentes.
Só um levantou a cabeça; estava à escuta. Ouvia algo, passos ligeiros que faziam estalar o gelo e crepitar a neve. Era um pequeno e sorrateiro gato malhado que furtivo se esgueirou por entre os muros dos quintais desaparecendo pela pequena abertura de uma porta rente ao chão. Entrava numa daquelas casas, na cozinha para ser mais preciso, onde, e ao contrário do que se passava em todas as outras, alguém permanecia acordado.
Encostada à lareira estava uma mulher, fazendo renda e ouvindo a pequena telefonia que lhe trazia uma das cantigas que se ouviam agora na capital.
Iluminada por uma pequena lâmpada fosca, pendendo vigilantemente das traves do tecto, e pelas chamas que dançavam bruxuleantes sobre as cinzas, ali estava a ti’Olímpia. Mulher de meia-idade, grisalha, com os cabelos apanhados num firme carrapito que mantinha na nuca. Era alta e esguia, talvez por isso admirada por todos na aldeia, mas acima de tudo era respeitada por ser a única parteira que lhes podia valer ali naquele fim de mundo. Até se dizia, mais por piada, apesar de ter a sua razão, que havia quase tantas pedras por aqueles montes quantas crianças tinha ela posto no mundo. Era por isso que estava acordada.
Com os anos desenvolvera, o que ela gostava de chamar, um sexto sentido especial. Sentia com muita certeza que não devia ir para a cama; sabia que ainda naquela noite iria ser precisa. Tinha a cabeça longe da renda que fazia mais mecânica do que conscientemente.
O silêncio da noite foi então quebrado.
Por entre a névoa um vulto cortava a escuridão. Descia dos montes em passo apressado. O barulho das chinelas trazia à quietude da noite o bater da madeira das solas nas pedras da calçada. À lareira, as mãos da rendeira tinham parado; ouvia o barulho já há algum tempo e desconfiava que sabia onde iam parar aqueles passos. Ali mesmo à sua porta.
Levantou-se, silenciosamente, pontapeando ao de leve o gato que estava no seu caminho aquecendo-se no borralho. Meteu o xaile pela cabeça e aproximou-se da entrada. Escutava.
Os passos foram-se aproximando, o matraquear nas pedras era cada vez mais audível, mas ia abrandando, acabando mesmo por parar ali mesmo, como ela já imaginava.
Ouvia a respiração ofegante da sua visita nocturna. Não esperou que batessem à porta, falou primeiro:
– Quem está aí? – perguntou num audível sussurro por entre as frinchas da porta, numa tentativa de não acordar toda a casa.
– Ai ti’Olímpia! Ainda bem que ainda está a pé, graças a Deus!
– O que se passa? – voltou a perguntar enquanto abria a porta ao reconhecer a voz que lhe falava.
– É a Laurência! Arrebentaram-se as águas, está para ali que é um sufoco. – Mas ainda não está na altura, ainda faltam uns meses!
– Ai Jesus lhe acuda! Tem de lá ir ti’Olímpia, ajude aquela criatura!
– O que se passa mulher? – perguntou o recém-acordado marido da ti’Olímpia, alarmado pelo alarido da visita nocturna.
– A Laurência está a ter a criança.
– Qual Laurência? – voltou a questionar de sobrolho franzido por não se lembrar de nenhuma mulher com aquele nome ali pelas redondezas.
– A mulher do Fausto, ali da Portela. Tenho de lá ir.
– Queres que vá contigo? – perguntou cuidadoso, com medo do caminho e mais até dos lobos e outros animais daquelas serranias.
– Não há necessidade, vai dormir em paz meu marido. Consegues-te arranjar com o comer pela manhã?
– Cá me arranjarei. Agora vai antes que seja tarde de mais!
– Parto já!
– Ai graças a Deus! – louvou a mensageira.
Olímpia apertou o xaile na cabeça, consertou um pouco as saias na tentativa de se proteger mais do frio da madrugada e saiu para a noite.
– Ainda por cima não tem cá o marido.
– O Fausto não está cá? – perguntou surpreendida por ele ter deixado a mulher grávida sozinha em casa.
– Não, como ainda faltavam uns tempos para o nascimento ele foi trabalhar pró Ribatejo.
– Então está sozinha em casa?
– Não, está lá com outra vizinha. Mas nós não sabemos muito bem como fazer, se fosse um bezerrito, ou um cabrito, nós éramos capazes, mas como faltava ainda tanto para o fim do tempo... achámos melhor vir chamá-la.
– Fizeram bem, agora apressemo-nos – rematou para poupar o fôlego para todo o caminho.
A aldeia começava a ficar para trás. Enveredaram pelos carreiros que levavam para lá das serras. Com a pouca luminosidade que as estrelas e a Lua no minguante concediam à noite escura, foram subindo a gélida serra, sem se conseguirem desviar das pedras que as faziam tropeçar.
Lá em cima o frio era ainda pior; uma leve brisa que se levantava trazia pequenos cristais de gelo que lhes cortavam a face enquanto ouviam ao longe o uivo de um lobo esfomeado.
Chegaram, por fim, ao pequeno aglomerado de casas. Eram tão poucas que se podiam contar como os dedos de uma só mão.
Os cães não paravam de ladrar. Tinham chegado aos planaltos, onde de Verão o gado pastava pelos verdejantes prados, que agora não eram mais do que campos cobertos por um espesso cobertor de neve, lembrando um extenso mar branco salpicado de pequenas ilhas de penedos rochosos.
Ainda não se tinham aproximado muito da casa de Laurência e já se fazia ouvir, por entre os uivos e latidos dos cães mais próximos, o urrar tão característico do desespero de uma parturiente.
Entraram logo para o quarto onde deitada numa pequena cama de ferro lacada a branco, comprada em recentes núpcias, estava uma transfigurada Laurência.
Por muito parto que a ti’Olímpia tivesse feito durante a sua vida, nada a poderia preparar para aquela visão. Laurência urrava e gritava, agarrada à cabeceira da cama. Embora o frio ali dentro fosse insuportável, ela transpirava em bica, envergando apenas uma camisa de noite muito fina.
Os seus olhos raiavam de sangue, a sua cara estava rubra de esforço, praticamente irreconhecível.
– Ai valha-nos Deus. Parece o demónio! – gritou uma das mulheres, a tal vizinha.
– Cale-se com isso mulher! – interveio prontamente a ti’Olímpia já refeita do choque inicial.
Começou então a ver o que poderia fazer tentando ignorar os gritos da parturiente, procurando reunir toda a sua concentração.
Pelo que via a criança iria mesmo nascer muito antes do tempo.
De súbito surgiu a cabeça de uma criança. Mas logo a ti’Olímpia percebeu que algo estava mal. Para além de ser naturalmente pequena vinha totalmente roxa. Enrolado ao seu pequenito pescoço vinha o cordão umbilical. Era tarde de mais, nada havia a fazer. Estava morta.
Os urros e os gritos voltaram depois do choque. Não eram do esforço mas sim da dor. A pior dor que pode existir no mundo, a de perder um filho.
A ti’Olímpia fo rápida. Com toda a sua experiência embrulhou o nado-morto numa das toalhas ensanguentadas e levou-o logo para a cozinha. Ainda tentou fazer alguma coisa, como às vezes faziam aos cachorros. Esfregou o peito do bebé, mas os seus conhecimentos não lhe davam para mais do que isso. Embrulhou-o de novo e deixou-o ali. Voltou ao quarto para acabar o parto retirando os restos da placenta.
Tal não foi o espanto da pobre mulher quando, no meio de novos e ainda mais fortes gritos, viu uma outra cabeça a aparecer. Estava a nascer outra criança.
– Ai valha-nos Deus, ti’Olímpia que são dois!
– Cala-se mulher e vá buscar mais água quente.
A sua cor parecia normal e o pescoço estava livre, o que deixou a parteira mais descansada, pois aquele à partida parecia vivo.
Tirou-o do ventre da mãe que chorava num misto de desespero, alegria e ainda mais de alívio. Ti’Olímpia é que não estava assim tão descansada. Aquela criança não reagia, não respirava, também para aquela tinha sido tarde de mais. Para aquele rapaz, como para o outro, a vida fora curta.
A parteira meteu o dedo mindinho da sua mão na pequena boca do prematuro com a esperança de o libertar de algum fluido que lhe obstruísse a garganta. Deu-lhe uma ligeira palmada nas costas. Foi então que ele recebeu o sopro da vida.
Encheu os pequenos pulmões pela primeira vez com aquele ar gélido.
Abriu tão profundamente as goelas que com essa primeira inspiração fez a maior choradeira que a ti’Olímpia alguma vez tinha ouvido.
A mãe exausta após tão grande esforço, respirava fundo, olhava sorridente para o seu filho, muito pequenino, acabado de ser envolto na mais fofa toalha da casa.
– É forte! Vai sobreviver – tranquilizou a parteira a pobre mãe.
– O outro? – perguntou numa voz sumida.
– Não sobreviveu. Já vinha morto. Mas tens aqui um rapagão!
– É um rapaz!? Que bom!
– Que nome lhe vais dar Laurência? – perguntou uma das vizinhas.
– Não sei ....
– Fausto como o pai? – voltou a perguntar.
– Não. O que acha a ti’Olímpia de lhe chamar Olímpio, em sua honra.
– Não, não vou deixar! – Não gostava nada daquele tipo de coisas, fora assim que ficara com aquele nome e não queria que se repetisse. – Se há alguém a quem temos de agradecer é a Nossa Senhora do Carmo. Não lhe dê o nome de Olímpio, peço-lhe por tudo.
– Então que nome lhe irei dar?
– Por mim ponha o nome do pai – voltou à carga a mesma vizinha, já um pouco ofendida por não terem aceite à primeira a sua sugestão.
– Não, Fausto não. Já sei, será Pedro como o nosso santo padroeiro e será Carmo, pela ajuda que Nossa Senhora do Carmo me deu! Sim, Pedro do Carmo!
– Pedro do Carmo, que nome, oh! Laurência francamente, o nome Fausto é tão bonito. E quando o Fausto chegar não sei se vai gostar que o seu filho varão não tenha o seu nome! – voltou a insistir a dita vizinha.
– Está dito! Será Pedro do Carmo!
E assim foi.
Naquela madrugada fria, quando o Sol se ergueu ao longe nos rasgados vales de pedra, existia mais uma pequena criança para o mirar.