• I •
Da gravata para as chuteiras
«Nasci para te amar
Com cada batida do meu coração
Sim, nasci para cuidar de ti
Todos os dias da minha vida»
Freddie Mercury, Queen
«Tinha tantas saudades vossas. Hoje, aqui, agora, posso dizer que vocês são a melhor afición do mundo.» O Vicente Calderón tem lotação esgotada. Grita o meu nome. Quer ouvir o que tenho para dizer. Mas não está previsto que eu fale. Estou ali apenas para ser apresentado. O presidente, Jesus Gil y Gil, discursa. Promete êxitos para a nova época, grandes conquistas, o céu e a terra. Tudo de bom que existe no mundo do futebol será do Atlético de Madrid. Mas os adeptos colchoneros não querem ouvi-lo. Não querem saber.
Cantam: «Paulo, Paulo, Futre, Futre.»
E repetem ainda mais alto: «Paulo, Paulo, Futre, Futre.»
Não param. Abafam Gil y Gil. A sua boca mexe, mas já ninguém consegue escutá-lo. Ele percebe que só há uma forma de os silenciar. Chama-me ao palco para acalmar os 50 mil adeptos. Eu percebo que tenho de fazer aquilo. E são estas as minhas palavras. As minhas primeiras e únicas palavras. Falo na falta que eles fazem na minha vida. Da grande nostalgia que experimentei durante os quatro anos em que estive longe deles. Dos adeptos do meu coração. Da minha segunda família. Foi o que senti desde o primeiro dia em que as nossas vidas se cruzaram. É o que continuo a sentir.
Seis meses antes, em dezembro de 1996, decidi abandonar a carreira de futebolista com a camisola dos ingleses do West Ham. Queria jogar, continuar, correr mais, marcar golos. Mas o meu joelho direito, após três cirurgias, apontava no sentido contrário. O momento da retirada é das decisões mais cruéis para um desportista. E não havia nada a fazer. Estava com 30 anos. Tinha chegado o momento de pendurar as botas e mudar de vida.
Vim a Portugal e marquei uma conferência de imprensa no hotel Altis, em Lisboa. De surpresa. Com todos os jornalistas à minha frente, tirei umas chuteiras debaixo da mesa e lancei uma frase que se tornou histórica. Uma frase que correu a Península Ibérica no dia seguinte. Abriu os noticiários e foi primeira página de todos os jornais. Em todos os media de Portugal e Espanha. «É a olhar para estas míticas chuteiras, com as quais fui campeão da Europa pelo FC Porto, em Viena, que quero anunciar-vos o fim da minha carreira de futebolista profissional.» Ninguém esperava esta notícia. Entrou pela casa das pessoas como uma bomba. Uma bomba que parecia ter morto alguém.
Centenas de pessoas ligavam-me a chorar, mandavam cartas a explicar como estavam tristes pelo meu adeus.
Dezenas de programas televisivos queriam entrevistar-me, homenagear-me, perceber os motivos da minha da saída.
Decidi ir a vários. Um deles era um programa desportivo da SIC. Enquanto estou a ser entrevistado, Gil y Gil telefona e entra no ar. Fala no seu estilo inconfundível, para o país inteiro ouvir, e faz-me um convite irrecusável: «Paulo, quero que sejas a imagem internacional do Atlético de Madrid.» Também diz que quer homenagear-me com a insígnia de ouro e brilhantes. A distinção máxima que se pode receber de um clube de futebol espanhol (e da qual falarei mais à frente).
Aceitei e comecei a trabalhar em janeiro de 1997. Era embaixador, estava sempre a viajar e representava o clube em todos os cantos do mundo. Ao mesmo tempo, aproveitei para assistir a jogos de outras equipas e observar jogadores que nos poderiam interessar. Ou seja: para além de embaixador, dava os primeiros passos como diretor desportivo (função que viria a ocupar anos mais tarde).
Dois atletas despertaram a minha atenção. O italiano Vieri (Juventus, Itália) e o brasileiro Juninho (Middlesbrough, Inglaterra), que, embora fosse muito jovem, já era internacional brasileiro. Um ponta de lança e um médio ofensivo. Jogadores de classe mundial. Consegui fazer a ponte com os empresários e levei os dois para o Atlético de Madrid. Foram as minhas primeiras contratações, numa altura em que essa nem sequer era a minha função.
Os dias passavam e eu sentia-me cada vez mais confortável neste papel de representante do clube. Começava a esquecer-me do fim da minha carreira e a abraçar esta nova vida. Dentro do futebol, mas fora do relvado.
Em abril, fui assistir a mais um treino da equipa, como fazia normalmente quando não andava em viagens ao serviço do clube. Estava a fumar dois maços de tabaco por dia e não jogava desde dezembro (quando abandonei o West Ham). Não jogava mesmo. E não fazia qualquer tipo de desporto Durante todos esses meses, nem sequer tinha dado uns toques numa partida de amigos. Nada.
Sento-me no banco e preparo-me para ver o jogo de treino entre o plantel. O treinador é o sérvio Radomir Antic. Anda ali no relvado, conta os jogadores, olha à volta e dirige-se a mim. Parece que falta um. Pergunta-me se eu posso entrar e respondo imediatamente que não: «Mister, está louco? Farto-me de fumar e o meu joelho não está em condições. Ainda me dá alguma coisa.» Ele insiste: «Vá lá, Português. Falta-nos um para o jogo e se peço agora para vir um jogador da equipa B, ou dos juniores, pode demorar mais de uma hora. Entras aí só para fazer número.» (A minha alcunha em Espanha sempre foi «El Portugués». Ainda hoje, todas as pessoas do futebol espanhol me tratam assim.)
Volto a dizer que não consigo. Ele insiste mais um bocadinho e acabo por ceder.
Desço ao balneário e dispo o fato e a gravata para voltar a ter calções e chuteiras. Uma sensação muito especial.
O treino realiza-se à porta aberta no Vicente Calderón. Está lá toda a imprensa, acompanhada por muitos sócios na bancada. Começa o jogo entre a equipa titular e os suplentes. Eu estou no lado dos suplentes.
11 contra 11.
Que saudades.
A bola a rolar.
O jogo aquece. Fica mais sério. Continua a aquecer. O ritmo está bem alto para um treino (e ainda mais para mim). Com muito espírito de competição. Mas há coisas que nunca se esquecem.
O tempo pode passar, os cigarros podem acumular, o físico pode ir perdendo pujança, mas o talento está lá. Parto aquilo tudo. Faço um jogão, marco dois golos nos primeiros vinte minutos e os titulares perdem contra os suplentes.
Quando acaba, toda a gente está a aplaudir-me. Adeptos, jornalistas e jogadores. Penso: «Meu Deus, o que é isto? O que se está a passar aqui?»
Julgava que estava bem pior e fiquei surpreendido com o que ainda consegui dar, mas mal podia respirar. O joelhinho também começou a doer assim que desci ao balneário.
Estava completamente de rastos quando o Antic veio ter comigo para me fazer um convite totalmente inesperado: «Português, tens de voltar a jogar.» Fiquei incrédulo: «Voltar a jogar? Mister, com todo o respeito, está maluco? Passou-se de vez? Amanhã nem sequer vou poder andar, o joelho já me está a doer, e você quer que eu volte a jogar?» Mas para ele era igual: «Tu viste o que fizeste? Estes gajos estão a treinar todos os dias, têm ritmo de competição, são mais novos do que tu e deste cabo deles. Estás coxo e rebentaste com aquilo tudo. Imagina se estivesses a treinar. Tens 31 anos. Ainda podes dar muito ao futebol.» E ele não era o único a pensar desta forma.
Assim que saí dali, recebo uma chamada de Gil y Gil. «Paulo, estás na imprensa toda. Montaste aí um grande circo. Está todo o mundo louco por causa de ti. A imprensa não para de ligar-me Que espetáculo. O mister está doido. Não tens outra hipótese a não ser voltar a jogar. Tens de voltar. Tem de ser.»
No dia seguinte, as primeiras páginas dos jornais desportivos espanhóis faziam uma manchete bastante elucidativa do que se tinha passado: «Ontem, o espetáculo voltou ao Vincente Calderón.» E uma enorme fotografia minha a acompanhar.
Toda a gente estava com a mesma conversa e comecei realmente a acreditar que era possível. Fiz alguns testes, fui aos melhores médicos e especialistas do tendão rotuliano, e passei a levar infiltrações de produtos naturais no joelho. Todos os dias. Em simultâneo, comecei a treinar sozinho e a aumentar o ritmo de trabalho gradualmente. Aos poucos, voltei a sentir-me como um jogador de futebol. Poderia regressar, entrar num relvado e fazer aquilo que mais prazer me dava.
Em junho, uma semana antes de começar a pré-temporada, anunciei (juntamente com Gil y Gil), que ia voltar a jogar com a camisola do Atlético de Madrid. Uma notícia explosiva. Os adeptos ficaram em delírio.
Mas o mais engraçado disto tudo foi entrar no balneário como jogador. Sem o fato, sem a gravata. Com as calças de ganga. Para me equipar ao lado do resto da equipa. Os outros olharam e nem queriam acreditar. Especialmente o Vieri e o Juninho (os dois que eu tinha contratado). Conhecia o salário deles, os valores das contratações, as cláusulas de rescisão, tudo o que havia para saber. Eles observavam-me e olhavam uns para os outros. Com aquela expressão na cara de todos: «Não é possível. Então, agora este gajo é nosso colega?» Deu-me vontade de rir. Mas era verdade. Agora eu era colega deles. Mais um para ajudar a equipa. Costuma ser ao contrário – o jogador que termina a carreira e aparece um tempo depois, ou na temporada seguinte, como dirigente ou treinador. Mas não me lembro de ver mais alguém sair diretamente da gravata para as chuteiras.
Segui para a pré-temporada e sentia-me bem, embora o físico já não fosse o mesmo. De vez em quando, o joelho também se queixava. Mas quem corre por gosto…
Estamos nas montanhas de Segovia, em Los Angeles de San Rafael. (Gil y Gil era proprietário de um centro de estágio nesta zona. O mesmo local onde ainda hoje o Atleti faz as suas pré-temporadas.) Os primeiros quinze dias são ocupados com treinos duríssimos, em sessões bidiárias. À medida que o tempo passa, noto que o joelho corresponde a todo este esforço e começo a sentir-me próximo da perfeição.
Arrancámos dali para realizar um encontro particular em Marbella. Contra o Valladolid. Sou titular. Que espetáculo. Nem quero acreditar quando oiço o meu nome no «onze» titular.
No final do jogo, o Antic diz que ninguém pode abandonar o hotel onde estamos instalados. Mais: recolher obrigatório às 23 horas. Porque, no dia seguinte, voltamos à montanha para continuar o trabalho físico de pré-temporada.
Agora vejam: antes do jogo, estivemos fechados quinze dias na montanha. A correr que nem animais. O pessoal queria sair. Descontrair um bocadinho e beber um copo. Até às duas, três da manhã. É o que se costuma fazer depois dos jogos. E aquela regra era demasiado dura para ser seguida à letra. Resultado: toda a gente se pirou e eu também me pirei. Uns para bares, outros para discotecas. Diferentes destinos, mas a mesma vontade de passar a noite de forma descontraída.
No dia seguinte, abandonámos o hotel bem cedo. Por volta das seis da manhã. Já estávamos dentro do autocarro quando o treinador entrou. Olhou para toda a gente e apontou para quatro jogadores: Lardín (que tinha custado quase 12 milhões de euros um mês antes e era a contratação-estrela, juntamente com Vieiri e Juninho), Roberto Frenedoso, Ricardo e Ezquerro. «Vocês vão para equipa B. Comigo aqui, não jogam mais.» Ficámos todos boquiabertos. E porquê aqueles, se todos saíram? Porque o Antic tinha recebido um telefonema de um amigo que era dono de uma discoteca e que lhe dissera ter visto estes jogadores em grande festa, pela noite fora. Ficou possesso.
Deixei as águas acalmarem e fui falar com ele para o tentar demover. Resposta: «Não admito esta merda, não pode ser. Eles estão fora.» Insisti: «Não foram só eles. Eu também saí. Estive até às três da manhã a beber copos. Estivemos todos. Vai mandar-nos todos para a equipa B? Não vale a pena. Ponha-nos a correr, umas tareias físicas. Umas multas, que seja. Mas não faça isto. Mandar jogadores para a equipa B vai ser um escândalo completamente desnecessário. Está tudo calmo, a pré-época está a correr bem e isto vai ser uma bomba mundial.»
Em condições normais não são muitos os jogadores que podem dirigir-se ao treinador desta forma, nem tão-pouco os treinadores que ficam ali a ouvir. Mas eu era dos mais experientes e, meses antes, estava no clube como dirigente. Não gosto de dizer que tinha outro estatuto, mas tinha mais à-vontade para poder falar com ele de uma forma tão aberta.
No entanto, não serviu de nada. A decisão era inalterável. Ele repetiu: «Comigo, não jogam mais.» Vira o disco e toca o mesmo. Não saía dali. E quando não dá por um lado, temos de ir pelo outro. Senti que precisava de tentar tudo para inverter aquele desastre.
Chegamos ao aeroporto, vamos para o avião e eu sento-me nos últimos lugares. Assim que aterramos em Madrid, ligo para Miguel Ángel (o filho de Gil y Gil e diretor geral do clube). Explico-lhe a situação e as eventuais repercussões: «Toda a gente saiu à noite, não deixes que isto aconteça. Vai destruir a equipa toda.»
Fui a falar com ele desde o avião até ao autocarro que nos esperava. Um autocarro para nos levar de regresso à montanha e onde os quatro jogadores já nem poderiam viajar. Estavam completamente excluídos do plantel.
Ainda antes de entrarmos, chamei o Antic: «Mister, tenho aqui ao telefone o Miguel Ángel. Quer falar consigo.» Ele acalmou-se. Falaram os dois e ficou decidido que os outros jogadores continuavam no plantel. Por causa de mim. Depois de eu ter passado por cima da autoridade do treinador. A partir daí, o Antic nunca mais me perdoou. Estive lá mais sete meses. A lidar com ele todos os dias. Mas a relação tornou-se fria, distante. Não voltou a ser igual depois da minha intervenção. E ele acabou por cortar a vontade que eu tinha de jogar. Dava-me dez ou quinze minutos e deixava-me de fora mais quatro ou cinco jogos. Mas não me arrependo. Voltava a fazer exatamente a mesma coisa. Tentei acalmar a situação e evitar um escândalo mundial. Fiz o melhor pelo grupo. Ele tomou aquela decisão a quente. Se a sua ideia fosse para a frente, iria minar o resto da época. E paguei a fatura por salvar os jogadores visados e todo o grupo. O mesmo homem que, meses antes, me deu oportunidade de regressar, começou a tirar-me motivação. Uma vez cheguei mesmo a falar com ele para esclarecer uma dúvida que eu tinha: «Quando disse para eu voltar, estava a ser sincero ou queria que eu fosse o seu bufo dentro do balneário?» Respondeu em jeito de quem chuta para canto: «Não é nada disso. Acho apenas que ainda te falta um bocadinho de ritmo.» Perguntei-lhe como é que ele queria que eu tivesse ritmo se jogava uma vez por acaso e sempre pouco mais de dez minutos. A conversa ficou por ali. Mas não há dúvida que a diferença de tratamento dele em relação a mim foi toda gerada por aquele episódio passado em Marbella. A partir desse momento, começou a roubar-me moral.
Uma moral que estava em alta duas semanas antes deste acontecimento, quando a equipa foi apresentada aos sócios no nosso estádio. Um estádio completamente lotado que começou a gritar o meu nome quando Gil y Gil discursava.
«Paulo, Paulo, Futre, Futre.» O grito de guerra que os adeptos colchoneros sempre me dedicaram, baseado numa adaptação de «We Will Rock You», tema dos Queen. A minha banda preferida.
É nesse momento que agarro o microfone e falo como jogador do Atlético de Madrid. Uma vez mais. Estou no meio do estádio, num palco erguido para a apresentação aos sócios do plantel da nova época. Todas as equipas pisam o relvado. Das escolas aos seniores. Os jogadores do plantel principal entram um a um, enquanto são anunciados pelo speaker, numa cerimónia onde apenas o presidente, o treinador e o capitão de equipa devem fazer uso da palavra.
Fui capitão muitos anos durante a minha primeira passagem pelo clube. Nesta altura, porém, a braçadeira já não estava comigo. O número 10 também não. Agora era o 12. O número da afición colchonera. Mas os adeptos sentiam que eu continuava a ser o grande símbolo daquele clube. E não me deram alternativa.
Falei.
Com a voz emocionada e as lágrimas nos olhos. Perante 50 mil adeptos.
Falei.
Numa noite que simboliza o meu regresso inesperado, durante uma vida recheada de episódios inesperados.
Desde o primeiro dia em que decidi começar a jogar futebol.
Desde criança.