Dedicado a quatro amigas escritoras maravilhosas:
Rosemary Edghill, India Edghill, Donna Sterling e Deborah Smith.
Espero que compreendam o quanto são especiais.
Ficha Técnica
Título: A Paixão
Título original: The Passion
Autora: Nicole Jordan
Tradução: Ana Reis
Revisão: Cristina Pereira
Capa: Maria Manuel Lacerda
Imagem da capa: Photographer / © Susan Fox / Trevillion Images
ISBN: 9789722048576
Tiara
LIVROS D’HOJE
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Dedicado a quatro amigas escritoras maravilhosas:
Rosemary Edghill, India Edghill, Donna Sterling e Deborah Smith.
Espero que compreendam o quanto são especiais.
PRÓLOGO
Anotação do diário, 16 de julho
Pego uma vez mais na minha pluma, sofrendo com a luta que me vai no coração. Devo escapar a esta paixão que me consome, mas não sei como fazê-lo.
Esta noite vieste até mim. Senti a tua presença, o teu calor, antes de escutar as tuas passadas, a tal ponto os meus sentidos estão harmonizados com a tua proximidade. O feitiço que me lançaste fez de mim tua escrava com mais eficácia do que quaisquer grilhões.
Murmuras o meu nome e eu volto-me para ti. Os teus olhos negros são intensos, inquisitivos. Devolvo-te o olhar, fascinada. Basta esse teu olhar, e sou inundada por uma torrente de prazer.
Refugio-me nos teus braços sofrendo de amor e desespero. O teu contacto é como um bálsamo, a tua mão no meu peito alivia-me e excita-me ao mesmo tempo.
Fecho os olhos ao sentir a tua virilidade, a tua força, contra a minha fragilidade. Sabes muito bem o quanto sou vulnerável em relação a ti e à tua paixão feroz. Sinto o meu corpo inflamar-se com ela. Estremeço com as carícias dos teus lábios, do teu hálito quente, dos teus dedos hábeis à medida que me desnudas.
As tuas roupas caem no solo. À luz das velas perfumadas com almíscar, o teu corpo nu cintila de graça e poder, dono e senhor de todas as fantasias femininas.
As tuas mãos roçam o meu ventre e estremeço. Por minha vez, acaricio a intumescência compacta da tua dureza e não sinto vergonha. Ensinaste-me os desejos da carne, sensibilizaste o meu corpo para o prazer e aniquilaste toda a inibição.
Já estou a flutuar, o meu centro incendiado e pulsante convertido em líquido com o teu contacto, enquanto te deitas comigo. Com um olhar desafiante e repleto de desejo moves-te sobre o meu corpo e deslizas para o meu interior, penetrando-me profundamente. O meu grito é rouco de prazer enquanto me arqueio em jeito de rendição.
Tu dominas os meus sentidos. Estou desesperada, ansiosa por te provar, drogada com o teu opiáceo, com a necessidade de preencher e ser preenchida.
Inundas-me com a tua paixão. Estou a afogar-me e arrasto-te comigo.
Depois deitamo-nos juntos lado a lado, os nossos hálitos ofegantes misturam-se, as nossas peles húmidas aderem-se. Sinto que te manténs imóvel ao provar o sal das minhas lágrimas. Erguendo-te sobre mim, olhas-me nos olhos e vês a dor do meu coração, que não consigo ocultar.
O teu beijo intenso tinha a intenção de me acalmar, mas só aprofunda ainda mais o conflito que me despedaça o coração.
Dizes que a escolha é minha. Ofereces-me a liberdade, uma dádiva valiosa. Porque a minha felicidade significa mais para ti do que tu mesmo, deixar-me-ás partir.
Mas conseguirei suportar viver sem ti?
E caber-me-á realmente a mim fazer essa escolha?
PRIMEIRA PARTE
LAÇOS DE DESEJO
CAPÍTULO 1
À primeira vista, parecia infinitamente perigoso, bárbaro até.
E, contudo, havia algo no seu olhar que me atraía…
Índias Ocidentais Britânicas, fevereiro de 1813
A cena era pagã: o homem seminu amarrado com correntes, o seu musculoso torso bronzeado pelo sol do Caribe. A sua silhueta, recortada contra os altos mastros do navio, mantinha-se desafiante, inquebrável.
Por um breve instante, Lady Aurora Demming sentiu o seu coração vacilar enquanto erguia o olhar para a amurada da fragata.
Bem poderia ter sido uma estátua esculpida por um mestre escultor, os músculos bem torneados de grande agilidade… só que ele era um homem de carne e osso e estava muito vivo. A luz do sol realçava os contornos bem delineados do seu corpo e dourava os seus cabelos louro-escuros.
Aquele tom de ouro fulvo era-lhe estranhamente familiar. No primeiro olhar, Aurora tinha estremecido com a recordação de um outro rosto perdido para sempre. Mas aquele homem impudente e quase nu era um desconhecido, e possuía uma masculinidade intensa que o tornava totalmente diferente do seu defunto noivo.
Usava apenas uns calções e, embora transportasse os grilhões de um prisioneiro, mantinha uma postura indomável e um olhar bravio e distante na direção do cais. Mesmo àquela distância, os seus olhos pareciam brilhar de modo perigoso, dando a impressão de estar a conter uma raiva latente.
Como se sentisse o seu intenso olhar, o homem voltou-se lentamente e fixou-se nela, deixando-a totalmente fascinada. O bulício e a agitação do cais desvaneceram-se. Por um momento fugaz, o tempo deteve-se e só existiam eles os dois.
A intensidade do olhar dele paralisou-a, contudo Aurora sentiu-se estremecer e, de repente, o coração começou a bater-lhe no peito a um ritmo doloroso, quase selvagem.
− Aurora?
A voz do seu primo Percy sobressaltou-a e fê-la recordar-se do lugar onde se encontrava. Estava no cais do porto de Basseterre, em St. Kitts, diante dos escritórios do agente marítimo, com o sol cálido do Caribe a incidir sobre ela. Os odores penetrantes a peixe e a alcatrão impregnavam o ar salgado junto com os gritos estridentes das gaivotas. Para lá do cais buliçoso estendiam-se as águas azul-esverdeadas e brilhantes do oceano, enquanto à distância se vislumbrava a exuberante ilha montanhosa de Nevis.
O primo seguiu a direção do seu olhar até ao prisioneiro da fragata naval.
− O que te mantém tão fascinada?
− Aquele homem… − murmurou. − Por um momento fez-me lembrar Geoffrey.
Percy semicerrou os olhos num esforço para ver para lá do cais.
− Como é que consegues discerni-lo a esta distância? − Franziu o sobrolho. − A cor do cabelo talvez seja similar, mas qualquer outra semelhança deve ser superficial. Não consigo imaginar o defunto conde de March como um condenado, e tu?
− Suponho que não.
Todavia, não conseguia afastar os olhos do prisioneiro de cabelos louros. E, ao que parecia, ele também não conseguia afastar os olhos dela. Ainda continuava a observá-la enquanto se encontrava de pé no topo da prancha de desembarque, pronto para sair. Tinha as mãos agrilhoadas e estava guardado por dois marinheiros armados e de constituição robusta da Marinha Britânica, todavia, não deu pela presença dos seus captores até um deles puxar violentamente pela corrente que lhe unia os pulsos.
A dor ou a fúria fizeram-no cerrar os punhos, mas não ofereceu nenhum outro sinal de resistência enquanto era conduzido à zona dos mosquetes, no final da prancha de desembarque.
Uma vez mais, Aurora ouviu alguém chamar pelo seu nome, desta vez com mais firmeza.
O primo tocou-lhe no braço com um olhar repleto de simpatia.
− Geoffrey partiu, Aurora. Não te fará nenhum bem continuar a cismar na sua perda. E a tua dor só pode ser prejudicial para o teu próximo matrimónio. Estou certo de que o teu futuro esposo não apreciará que estejas de luto por outro homem. Pelo teu próprio bem, deves aprender a reprimir os teus sentimentos.
Sentia vergonha de admitir que não era exatamente na sua perda nem no matrimónio não desejado a que o seu pai estava a obrigá-la que estava a pensar, mas assentiu para tranquilizar o primo. Não fazia sentido demonstrar interesse por um desconhecido seminu. Ainda para mais um criminoso. Alguém que evidentemente tinha cometido algum crime execrável para merecer um castigo tão brutal.
Com um ligeiro estremecimento, Aurora obrigou-se a desviar a atenção. A primitiva exibição não era espetáculo para uma senhora, muito menos para a filha de um duque. Raramente tinha visto tanta carne masculina nua. Não havia dúvida de que nunca se havia sentido tão perturbada por um homem como há momentos, quando o olhar dele se cruzara com o dela.
Repreendendo-se a si mesma, voltou-se para permitir que o primo a conduzisse à carruagem aberta. Tinha vindo com Percy ao cais para confirmar a sua passagem para Inglaterra. Devido ao conflito com a América e à ameaça de pirataria havia poucos navios a saírem das Índias Ocidentais. De acordo com a programação, o próximo navio de passageiros devia partir da ilha de St. Kitts daí a três dias e estava apenas a aguardar uma escolta militar.
Temia regressar a casa, e retardara-o durante tanto tempo quanto se havia atrevido, muitos meses mais do que o originalmente previsto, utilizando a desculpa de que era perigoso viajar em plena guerra. Mas o pai tinha-se mostrado inflexível e havia-lhe exigido que se apresentasse de imediato a fim de preparar a boda com o nobre que tinha escolhido para ela. Na sua última carta ameaçara-a dizendo-lhe que a iria buscar pessoalmente caso deixasse de honrar o acordo que tinha feito em seu nome.
Aurora tinha já um pé no degrau da carruagem quando um tumulto no cais a fez deter-se. O prisioneiro tinha atingido o fim da prancha de desembarque, e estava a ser obrigado a subir para um vagão, uma tarefa que era, obviamente, difícil devido às correntes.
Ao verem que se movia com demasiada lentidão, os guardas aplicaram-lhe um empurrão brutal que o fez tropeçar e quase cair de joelhos. Para o impedir, o homem segurou-se à porta traseira do vagão, endireitando-se e fitando o guarda com um olhar desdenhoso.
A sua fria insolência pareceu enfurecer os seus carrascos porque recebeu um golpe nas costelas com a culatra de um mosquete que o fez dobrar-se de dor.
O grito de protesto que Aurora estava prestes a soltar perante o cruel ataque morreu-lhe na garganta quando o prisioneiro agitou as suas correntes na direção do guarda. Era um gesto inútil de desafio, pois ele estava amarrado de uma forma demasiado firme para conseguir causar algum dano real, mas, aparentemente, a sua rebelião era a desculpa que os guardas pretendiam.
Ambos os marinheiros o atacaram com a culatra dos seus mosquetes fazendo-o cair sobre as pedras da calçada com gritos de «cão desprezível» e «escória bastarda!».
Aurora retrocedeu horrorizada ao ver alguém a ser tratado com tanta crueldade e sem misericórdia.
− Por amor de Deus…! − murmurou com uma voz rouca. − Percy, fá-los parar!
− É assunto da Marinha − respondeu o primo num tom sombrio, falando como tenente-governador de St. Kitts. − Não tenho justificação para intervir.
− Meu Deus, vão matá-lo à pancada!
E, sem aguardar resposta, recolheu a saia e correu em direção ao tumulto.
− Aurora!
Escutou Percy a praguejar entre dentes, mas não abrandou nem se deteve para refletir no perigo ou na loucura de intervir na violenta disputa.
No dispunha de nenhuma arma e não tinha um plano definido para além de tentar um resgate, mas quando chegou junto dos guardas lançou a sua bolsa contra o atacante mais próximo e conseguiu acertar-lhe num lado da cara.
− Que diabo…?
Quando o surpreendido marinheiro se deteve perante o ataque inesperado, Aurora largou a bolsa e abriu caminho entre o prisioneiro caído e os seus assaltantes. Dissimulando o seu próprio temor, ajoelhou-se cobrindo parcialmente o homem quase inconsciente com o seu próprio corpo para o proteger de ser novamente atingido.
O guarda praguejou de um modo vulgar.
Com uma fúria gélida, Aurora ergueu o queixo e olhou-o fixamente, desafiando-o silenciosamente a atingi-la.
− Minha senhora, este não é assunto para si − declarou irritado. − Este homem é um pirata violento.
− E o senhor deve dirigir-se a mim como milady − respondeu ela num tom de voz que, normalmente era sereno, mas que agora era quase feroz, enquanto sublinhava a importância da sua posição social. − O meu pai é o duque de Eversley e conta entre os seus amigos mais chegados com o príncipe regente e o lorde primeiro-almirante.
Aurora reparou que o marinheiro avaliava o seu aspeto e as suas roupas; a sua elegante touca de seda e o traje de passeio eram no tom de cinzento de meio luto, apenas com o toque de lilás na guarnição das lapelas da casaca para aliviar a severidade.
− E este cavalheiro − acrescentou enquanto Percy chegava apressadamente ao seu lado −, é o meu primo, sir Percy Osborne, que por acaso é o tenente-governador de Nevis e St. Kitts. Eu pensaria duas vezes antes de o desafiar.
Percy cerrou o maxilar com força perante esta declaração e murmurou em desaprovação:
− Aurora, isto é muito impróprio. Estás a provocar um espetáculo.
− Seria mais impróprio ficar sem fazer nada enquanto estes cobardes assassinam um homem desarmado.
Ignorando o olhar furioso do guarda, observou o prisioneiro ferido. Tinha os olhos fechados, mas parecia estar consciente, porque apertava o maxilar devido à dor. Ainda parecia meio selvagem. A pele reluzia com o brilho do suor e do sangue e tinha o queixo coberto por uma barba incipiente e escura.
A cabeça parecia ter sofrido os danos maiores. Não só sangrava profusamente da têmpora, como os seus cabelos dourados pelo sol, de um dourado muito mais escuro que o dela, estavam emaranhados e negros de sangue seco, evidentemente de uma ferida anterior.
Aurora sentiu-se tensa quando o seu olhar desceu pelo corpo dele, contudo, ainda assim, sentiu acelerarem-se as batidas do seu coração. A manifesta masculinidade que a havia desconcertado à distância era ainda mais evidente de perto, a dureza do corpo do homem, inconfundível. O peito e os ombros bronzeados estavam cobertos de músculos, enquanto os calções de lona cingiam as suas coxas musculadas.
Foi então que ele abriu os olhos e os fixou nela. O seu olhar era escuro da cor do café, salpicado de âmbar. Aquele olhar fixo produziu a mesma sensação surpreendente que Aurora havia experimentado antes: a de estar totalmente sozinha com ele, juntamente com uma intensa consciência da sua feminilidade.
Quase tão estranhos eram os delicados sentimentos de proteção que as suas feridas lhe despertavam. Aurora enxugou-lhe suavemente o sangue que tinha na fronte.
Com as correntes a tilintar, ele segurou-a pelo pulso.
− Não o faça − murmurou com voz rouca. − Fique fora disto… sairá prejudicada.
A pele ardia-lhe onde os dedos dele lhe haviam tocado, mas procurou ignorar aquela sensação, da mesma forma que tencionava não fazer caso do pedido dele. Naquele momento, estava menos preocupada em proteger-se a si mesma do que em salvar-lhe a vida.
− Não espera que eu fique a assistir enquanto o assassinam, pois não?
O sorriso de sofrimento que ele esboçou foi fugaz, enquanto lhe soltava o pulso e se esforçava por se apoiar nos cotovelos. Uma tontura momentânea fê-lo fechar os olhos.
− Necessita de um médico − proferiu Aurora alarmada.
− Não… Tenho a cabeça dura.
− Pelos vistos, não o suficiente.
Tinha-se esquecido de que não estavam sozinhos até que o primo se inclinou sobre o seu ombro e proferiu uma exclamação consternada.
− Santo Deus…! Sabine!
− Conhece-lo? − perguntou Aurora.
− De facto, conheço. Possui metade dos barcos mercantes do Caribe. É americano… Que diabo estás aqui a fazer, Nick?
O homem fez uma careta de dor.
− Receio ter tido um encontro desafortunado com a Marinha Britânica.
Quando o primo se voltou para os guardas e lhes pediu uma explicação, Aurora apercebeu-se de que a sua maneira de falar era muito mais suave e delicada, quase de adulação, em contraste com os seus próprios sons entrecortados.
− Que significa isto? Porque está este homem acorrentado?
Os homens livraram-se de responder quando o seu comandante se reuniu a eles. Aurora recordou-se de ter conhecido o capitão Richard Gerrod nalgum ato social do governo, há cerca de uma ou duas semanas.
− Eu posso responder a isso, excelência − disse Gerrod friamente. − Está acorrentado porque é um prisioneiro de guerra, condenado a ser enforcado por pirataria e assassinato.
− Assassinato, capitão? Isso é francamente absurdo. Deve ter ouvido falar de Nicholas Sabine − insistiu Percy, pronunciando o nome à maneira americana.− Nestes lugares é um herói, não um assassino. É evidente que deve ter confundido a sua identidade.
− Garanto-lhe que não me enganei em nada. Foi reconhecido por um dos meus oficiais em Montserrat, onde foi temerário e arrogante o suficiente para visitar uma mulher a meio de uma guerra. Não há dúvida de que se trata do famoso pirata capitão Sabre. Não só capturou pelo menos dois navios mercantes britânicos desde que a guerra começou, como afundou o navio de guerra britânico Barton precisamente no mês passado.
− É do meu conhecimento que a tripulação do Barton foi salva de se afogar pelo mesmo pirata, e depositada na ilha mais próxima − disse Percy.
− Sim, mas faleceu um marinheiro nessa batalha, e muitos outros ficaram feridos. E Sabine quase matou ontem um membro da minha tripulação quando resistia à prisão. Cometeu realmente atos de guerra contra a coroa, sir Percy. Atos punidos com a morte.
Percy voltou-se para o homem caído.
− Isto é verdade, Sabine? És um pirata?
O meio sorriso de Sabine continha uma ira fria.
− Na América usamos o termo corsário, e nunca renunciámos ao direito de protegermos os nossos próprios navios. O Barton estava a atacar um dos meus navios mercantes e por isso intervim. Quanto ao facto de ter capturado os vossos navios, considerei-o como um intercâmbio justo pela perda de um dos meus.
Aurora não estava tão horrorizada como talvez devesse perante a acusação de pirataria. Com os dois países em guerra, a Inglaterra considerava culpado qualquer navio armado americano. E Sabine teria certamente direito a defender os seus próprios navios. Sabia que o seu primo estaria de acordo. Embora tais ideias políticas fossem desleais com a coroa, Percy considerava a guerra um erro, e a Inglaterra a principal culpada por instigá-la. Todavia, a acusação de assassinato inquietava-a bastante…
− Pirata ou não… − disse Percy ao capitão, obviamente preocupado − haverá consequências por tomar este homem como prisioneiro. Por acaso sabe que o senhor Sabine tem ligações com a coroa, incluindo vários governadores de ilhas e o comandante da frota caribenha?
O capitão franziu o sobrolho.
− As relações que ele tem são tudo o que me impede de o enforcar imediatamente. Embora duvide que o salvem. Quando o almirante Foley souber dos seus crimes, estou certo de que dará a ordem de execução.
Depois, o capitão Gerrod olhou para Aurora e acrescentou:
− Milady, será melhor que se mantenha afastada dele. É um homem perigoso.
Ela acreditava que o americano fosse de facto perigoso, mas aquilo não justificava a perversa brutalidade dos seus guardas.
− Oh, realmente! − respondeu com desdém, erguendo-se para enfrentar o capitão cara a cara. − Tão perigoso que a sua tripulação deve espancá-lo até ele ficar sem sentidos, ainda que esteja amarrado como um peru de Natal. Temo seriamente pela minha vida.
Gerrod apertou os lábios furioso, mas Percy interveio rapidamente.
− O que pretende fazer com ele, capitão?
− Será entregue ao comandante da guarnição e encarcerado na fortaleza até ser executado.
Aurora sentiu um aperto no coração ao pensar que aquele homem tão vigoroso ia perder a vida.
− Percy… − implorou, olhando-o fixamente.
− Agradecia-lhe que não interferisse no cumprimento do meu dever, excelência − disse sombriamente Gerrod. − Poe-te de pé, pirata!
Sabine apertou os lábios evidenciando o seu ódio latente pelo capitão no fogo abrasador dos seus olhos escuros. Mas a sua fúria permaneceu tensamente controlada enquanto se esforçava por se ajoelhar.
Aurora ajudou-o a levantar-se, oferecendo-lhe apoio quando cambaleava, e sentiu o pulso acelerar quando ele encostou momentaneamente o seu corpo forte contra o dela. Mesmo ferido e ensanguentado, a sua perturbadora masculinidade afetava-a.
O primo deve ter reparado no quão imprópria era a situação porque lhe pegou suavemente no braço e afastou-a para o lado.
− Vem, querida − disse-lhe.
Obviamente tenso de dor, Sabine moveu-se em direção ao vagão. Aurora estremeceu ao ver as lacerações sanguentas que lhe sulcavam os ombros largos e as costas musculosas, e de novo quando um dos guardas corpulentos lhe pegou rudemente pelo braço e o apressou a entrar no vagão.
Aurora, impotente, mordeu o lábio para evitar proferir um grito de protesto.
O capitão Gerrod dirigiu-lhe um olhar severo enquanto ambos os guardas subiam para o veículo atrás do prisioneiro, mas dirigiu-se ao primo:
− Não tinha planeado escoltar o prisioneiro até à fortaleza… Devia estar a preparar a minha fragata para partir em direção à costa americana para me juntar ao bloqueio naval, mas vejo que terei de assegurar-me de que as minhas ordens são executadas à letra.
− Tenciono visitar em pessoa a fortaleza − ameaçou Aurora impetuosamente, temendo o que pudessem fazer com o prisioneiro assim que estivessem sozinhos. − Se se atreverem a continuar a bater-lhe, prometo-lhe que o lamentarão.
Sentiu que o primo lhe apertava o braço em sinal de advertência, e conteve-se para não se soltar bruscamente da sua pressão.
O capitão fez uma vénia tensa e irada, e depois subiu para o lugar do passageiro e ordenou ao condutor negro ancião que se pusesse em marcha. Aurora e Percy ficaram a observar os dois cavalos de tiro a puxarem a carruagem.
− Não te envolverás mais, Aurora − murmurou Percy entre dentes.
Ela libertou-se obstinadamente da firme pressão da sua mão.
− Estou certa de que não concordas com aquele comportamento violento. Se o senhor Sabine fosse um prisioneiro inglês em mãos americanas esperarias que o tratassem humanamente.
− Claro que sim.
− O que lhe sucederá? − perguntou com uma voz subitamente rouca.
Percy não respondeu imediatamente, o que confirmou os seus piores temores.
− Decerto haverá um julgamento − protestou Aurora. − Não enforcarão uma pessoa da sua importância sem o julgarem, não é verdade?
− Pode não chegar a haver enforcamento − respondeu severamente o primo. − O almirante pode muito bem mostrar indulgência.
− E se não o fizer? Podes intervir?
− Tenho autoridade para desautorizar a ordem de um almirante, mas fazê-lo podia significar o fim da minha carreira política. É conhecido que desaprovo a guerra, e pôr em liberdade um prisioneiro condenado podia ser visto como traição. A pirataria e o assassinato são acusações graves, querida.
Aurora devolveu a Percy um olhar sombrio.
− Pelo menos deves enviar-lhe um médico para lhe examinar os ferimentos.
− Claro que sim. Falarei agora mesmo com o comandante da guarnição e certificar-me-ei de que Sabine recebe cuidados médicos apropriados.
Ela olhou fixamente os olhos azuis do primo, tão parecidos com os seus, e pôde ler neles a preocupação… assim como o comentário que não exprimiu em voz alta. Que importava cuidar dos ferimentos de Nicholas Sabine se em breve ia ser enforcado?
A esposa de Percy ficou alarmada ao ver o vestido de Aurora manchado de sangue, mas menos horrorizada pela razão do que seria esperado.
− Não sei se teria tido coragem para intervir − disse Jane pensativa quando se inteirou do sucedido.
As duas mulheres estavam sozinhas no quarto de Aurora. Depois de Percy a ter deixado em sua casa, na plantação, e partido para cumprir a sua promessa relativa ao tratamento médico do prisioneiro, a aia de Aurora tinha-a ajudado a mudar de vestido e levara-o logo para que fosse lavado. Lady Osborne permaneceu para escutar uma versão mais detalhada e privada dos acontecimentos dessa manhã.
− Não me parece que seja uma ação particularmente corajosa evitar que um homem seja sovado até à morte − respondeu Aurora ainda indignada pelo incidente matinal. − E a minha intervenção parece ter influído pouco no seu destino.
− O senhor Sabine tem família importante em Inglaterra − disse Jane para a tranquilizar. − O conde de Wycliff é seu primo em segundo grau. Além de possuir uma grande riqueza, Wycliff sempre deteve muito poder nos círculos do governo. Pode muito bem interceder a favor do primo.
− Talvez o enforquem muito antes de chegarem a Inglaterra notícias do seu encarceramento − respondeu Aurora sombriamente.
− Aurora, não começaste a desenvolver nenhum tipo de sentimento em relação a Sabine, pois não?
Sentiu-se enrubescer.
− Como podia fazê-lo? Só o conheci esta manhã e, ainda assim, por um breve momento. Nem sequer fomos formalmente apresentados.
− Ótimo. Porque, francamente, apesar das suas relações, não é em absoluto a classe adequada de cavalheiro. Para dizer a verdade, suspeito que seja um tanto perigoso.
− Perigoso?
− Para nós as mulheres, é o que quero dizer. É um aventureiro e uma espécie de libertino… e, além disso, é americano.
− Percy disse que ele era um herói.
− Suponho que sim. Há alguns anos, salvou a vida a uns duzentos colonos durante uma revolta de escravos em Santa Luzia. Mas isso apenas o torna mais aceitável. As más-línguas dizem que é a ovelha negra da família, que passou anos a viajar por países estrangeiros, embrenhando-se em todo o tipo de aventuras desregradas. Só depois da morte do pai é que se tornou um pouco mais respeitável… E isso unicamente porque herdou uma fortuna e se encarregou dos negócios da família.
− Não o acusaste de ser muito pior do que a metade dos jovens libertinos de Inglaterra.
− É indiscutivelmente pior, garanto-te. Caso contrário, nunca lhe teria sido concedido ser membro da célebre Liga Fogo do Inferno, apesar de ter sido recomendado pelo seu primo Lorde Wycliff.
Aurora sabia que a Liga Fogo do Inferno era um clube exclusivo dos principais libertinos de Inglaterra, dedicado ao prazer e à depravação. Se Sabine era membro daquela associação licenciosa, devia realmente ser perverso.
− E não podes menosprezar o facto de ser um pirata condenado com sangue nas mãos − acrescentou Jane intencionadamente.
Aurora olhou para as suas próprias mãos. Jane era uma das suas amigas mais queridas, e era ao mesmo tempo atenta e astuta o suficiente para avaliar uma situação com objetividade, atributos que a convertiam na esposa ideal de um político. Percy tinha motivos de sobra para a adorar, e esse sentimento era totalmente recíproco.
− Aurora − disse Jane −, será possível que te tenhas absorvido com os problemas desse homem para escapares às tuas próprias preocupações? Talvez procures esquecer a tua própria situação melindrosa envolvendo-te no destino de um desconhecido.
Aurora entrelaçou tensamente os dedos. Sim, era muito possível que a sua simpatia por Sabine fosse maior devido às suas próprias circunstâncias difíceis. Podia identificar-se com ele; sabia o que era ver-se impotente para controlar o próprio futuro, ver que a sua vida deixava de ser sua. Ele estava à mercê dos seus captores, e ela estava sujeita às ordens paternas… e em breve ver-se-ia encurralada num matrimónio extremamente desagradável.
Jane deve ter lido a verdade na sua expressão, porque lhe disse suavemente:
− Tens preocupações mais importantes do que as vicissitudes de um pirata. Farias muito melhor se esquecesses por completo esse incidente. − Ergueu-se com um suave ruge-ruge das suas saias de seda. − Desce para o almoço quando estiveres pronta. Suponho que te sentirás melhor quando tiveres comido.
Todavia, Aurora não se sentiu melhor nem tinha apetite. Limitou-se a brincar com a comida enquanto aguardava ansiosa por notícias do primo.
Quando por fim chegou uma mensagem dos seus escritórios em Basseterre, o bilhete de Percy dizia mais ou menos que ficasse tranquila, que já tinha falado com o comandante da guarnição, e que este lhe tinha prometido que o médico da fortaleza examinaria os ferimentos do prisioneiro.
Aurora mostrou o bilhete a Jane e fingiu descartar qualquer outro pensamento sobre o assunto. Pouco tempo depois, desculpou-se com o pretexto de que necessitava de pensar na bagagem para o regresso a Inglaterra, mas não fez absolutamente nenhum progresso em relação ao assunto. Em vez disso, deu por si de olhos fixos no solo, a recordar uns olhos escuros que a fitavam intensamente e o estremecimento que lhe tinham feito sentir…
«Por amor de Deus, para de pensar nele!», repreendeu-se a si mesma.
Logicamente estava de acordo com Jane. Era muito mais prudente afastar o famoso pirata dos seus pensamentos. Estava de partida de St. Kitts daí a poucos dias, e tinha os seus próprios problemas graves para enfrentar, nomeadamente o seu matrimónio com um nobre dominante, uns vinte anos mais velho do que ela. Um homem a quem não só não amava, como lhe desagradava profundamente devido ao seu comportamento imperioso e despótico, e ao seu modo estrito e quase puritano de seguir as convenções. O noivado seria anunciado publicamente logo que regressasse a Inglaterra.
Por um momento, Aurora sentiu a mesma agitação de pânico que lhe provocava pensar no seu matrimónio. Logo que estivessem casados, ela seria uma prisioneira virtual do decoro, e poder-se-ia considerar afortunada se lhe fosse permitido sequer um pensamento original seu. Mas, como vinha a fazê-lo desde há alguns meses, obrigou-se a afastar a sua inquietude.
Abandonando a ideia de planear a sua viagem, pegou num livro de poesia mas, quando tentou ler, foi incapaz de se concentrar na página. Ao invés disso, viu as feições manchadas de sangue de Nicholas Sabine enquanto jazia aos seus pés, seminu e acorrentado. Quando tentou afastá-lo da sua mente, fracassou terrivelmente.
Não precisava de fechar os olhos para o ver deitado numa cela de prisão, ferido e com dores, talvez até perto da morte. Será que ao menos teria um cobertor para cobrir a sua nudez quase total? Apesar do calor do Caribe, estava a chegar o inverno. As frescas brisas do oceano que sopravam do lado atlântico da ilha podiam tornar as noites muito frias. E a fortaleza de Brimstone Hill, o lugar para onde ele tinha sido levado, estava construída sobre uma rocha, exposta aos elementos.
Ainda mais alarmante era o facto de um prisioneiro condenado poder desaparecer para sempre no labirinto vasto e caótico de câmaras escuras e passagens estreitas da fortaleza. A sua imensa cidadela estava defendida por muros de mais de dois metros de espessura, de pedra negra vulcânica, que tinham demorado décadas a ser construídos.
Ela tinha assistido uma vez a uma receção militar em Brimstone Hill com Percy e Jane, e até as zonas dos oficiais lhe tinham parecido pouco acolhedoras. Estremeceu ao pensar como seriam os lugares destinados aos prisioneiros.
A ideia de que tinha feito tudo o que podia por ele não lhe servia de consolo. Era inútil argumentar consigo mesma e exigir-se ser razoável. Nunca tinha sido capaz de se afastar de alguém que estivesse numa situação vulnerável.
Os últimos anos teriam sido mais fáceis se ela tivesse sido capaz de simplesmente ignorar a sua consciência, de controlar os seus impulsos protetores. Se tivesse podido manter o afastamento adequado quando o seu pai descarregava a sua ira nos seus indefensos subalternos. Mas ela não conseguia ser tão insensível.
E agora não conseguia parar de pensar em Nicholas Sabine, vulnerável e indefeso, à mercê dos seus brutais captores.
Talvez se lhe fizesse uma visita breve, só para se assegurar de que estava a ser tratado, pudesse tranquilizar a sua mente o suficiente para o esquecer…
Sentindo a ansiedade diminuir pela primeira vez desde o inquietante incidente do cais, Aurora poisou tranquilamente o livro. O coração voltou a acelerar-se perante a perspetiva de voltar a ver o americano. Não obstante, sufocou os sentimentos proibidos enquanto se dirigia ao cordão da campainha para chamar a aia.
Desafiaria as conveniências morais, talvez arriscando-se até ao escândalo, visitando um pirata condenado na prisão. Todavia, aquele podia ser um dos últimos atos de independência que efetuaria.