Tem sempre presente que a pele se enruga, o cabelo
embranquece, os dias convertem-se em anos...
Mas o que é mais importante não muda;
A tua força e convicção não têm idade.
O teu espírito é como qualquer teia de aranha.
Atrás de cada linha de chegada, há uma de partida.
Atrás de cada conquista, vem um novo desafio.
Enquanto estiveres viva, sente-te viva.
Se sentes saudades do que fazias, volta a fazê-lo.
Não vivas de fotografias amarelecidas...
Continua, quando todos esperam que desistam.
Não deixes que enferruje o ferro que existe em ti.
Faz com que em vez de pena, te tenham respeito.
Quando não conseguires correr através dos anos,
Trota
Quando não consigas trotar, caminha.
Quando não consigas caminhar, usa uma bengala.
Mas nunca te detenhas!
Madre Teresa de Calcutá
INTRODUÇÃO
Neste livro proponho contar-vos a minha história. Deitar cá para fora, tão completa e livremente quanto conseguir, o que se passou no meu íntimo. Após a mais madura reflexão, decidi que chegou a hora de desenrolar alguns acontecimentos que me marcaram, as minhas alegrias, problemas, tristezas, desejos, projetos, impressões vitais. Sobretudo, a paisagem dos meus últimos anos.
Alguns dirão que a minha vida foi trivial e que, portanto, não é digna de ser escrita. A esses respondo com uma citação de George Sand: «Cada indivíduo transporta consigo toda história da humanidade.» Quando fez esta afirmação, a autora (que, não por acaso, utilizava um pseudónimo masculino) estava a atacar aqueles senhores muito graves e muito eruditos que consideravam que só as vidas dos homens ilustres, que pertenciam aos estratos mais elevados da sociedade, é que eram dignas de ser escritas, esquecendo as pessoas comuns e, em particular, as mulheres.
Outros, ainda, dirão que o único interesse deste livro reside no processo Casa Pia e na minha ligação ao Carlos Cruz. Talvez esses tenham razão, porque é certamente verdade que a minha alegria de mulher apaixonada se desmoronou, que a minha vida, até há pouco tempo, estava quase esvaziada de sentido; não fosse a minha filha Mariana ter-me sempre transmitido forças para conservar os meus sonhos intactos e a minha desgraça seria ainda mais incalculável. Sim, os cínicos têm razão: a felicidade não vende livros e só a desgraça torna as nossas vidas interessantes. Os códigos da vida escrita são indissociáveis das crises intensas no plano da existência, são os pontos de rutura que tornam as vidas mais significativas.
E, no entanto, quem me dera que as coisas se tivessem passado de forma um pouco diferente, que nada daquilo tivesse acontecido e que, por exemplo, a minha filha pudesse viver sem o estigma terrível que é ter um pai acusado de pedofilia. Quem me dera que as pessoas só me julgassem depois de me conhecerem melhor, que vissem as coisas como são e não como parecem. Quem me dera não ter sofrido na cara, da pior maneira possível, a aleivosia, a deslealdade e a desilusão.
Reparem, não peço que tenham simpatia por mim, quero apenas que não me encerrem numa identidade que não é a minha. Nunca fui capaz de pedir o que sei que não mereço e o direito a ter uma imagem de mim própria, onde me reveja minimamente, é algo a que todos os seres humanos têm direito. Reconhecer-me e reconstruir-me, recompor a minha vida conferindo-lhe um sentido que antes me escapava, traçar um retrato para o qual nem sempre seja difícil olhar… Há quem confunda isto com necessidade de sobressair e de aparecer; para mim, é apenas necessidade de ser eu própria.
Sei que a escrita possui muitas sinuosidades e que a memória deforma e tem muitas incertezas e lacunas. E que escrever serve para introduzir uma ordem artificial na vida, porque todos, sem exceção, somos vítimas das miragens da infância e das utopias da adolescência. Não tenhamos medo das palavras: todos desejamos dar um sentido às nossas vidas e à nossa existência, principalmente quando somos confrontados com a sua ausência. Por essa razão, o Algarve (onde nasci e vivi durante perto de vinte anos) é muito mais do que clima de praia e peixe bem grelhado: é o sítio onde volto sempre para sentir o conforto de quem regressa à terra depois de uma longa ausência. Como alguém disse, as pessoas são como os neurónios, precisam de estar integradas numa rede – de familiares, amigos e colegas de trabalho – para não perderem o sentido da vida. Não podia estar mais de acordo: sem as pessoas que não me desampararam naqueles instantes cheios de dores e de dissabores, a minha existência (e a da Mariana) teria sido insuportável.
O meu pacto com o leitor é apenas este: sinceridade, exigência de sinceridade. O que não é a mesma coisa que dizer que encontrarão aqui toda a verdade acerca de mim. No tempo que já passou por mim aprendi a não cair na ilusão de que é possível ressuscitar o passado tal como o vivemos. Além disso, a minha vida, como a de todos os seres humanos, tem sido contraditória, ambivalente e por vezes, até, incompreensível. Haverá ainda alguém convencido de que a coerência é como uma árvore cujas raízes fazem apenas aquilo para que a natureza as programou: avançar para o interior da terra e proteger a imutabilidade do seu tronco? A coerência é algo que está sempre a fazer-se e a desfazer-se, pela simples razão de que nós estamos em permanente metamorfose. Passado, presente e futuro estão constantemente a unir-se e a dissolver-se, num combate mútuo que faz de nós seres inseguros e vacilantes. Mas também, digamos, imprevisíveis.
Apesar de ignorar, agora mesmo, até onde me levará esta viagem aos meandros da minha memória, uma coisa é certa: há uma parte de mim que permanecerá secreta e bem guardada no meu interior. Tenho os olhos e o coração suficientemente desenganados para acreditar que é possível (ou desejável) desvendar o mais fundo dos meus pensamentos e dos meus sentimentos. Isso não me impediu, porém, de tomar aqui a liberdade de desafiar certas convenções, nem me fez recuar quando sentia que alguns episódios da minha vida eram especialmente dolorosos ou delicados de descrever.
Nos últimos anos, a minha relação com o Carlos foi arrefecendo e acabámos por nos distanciarmos emocional e fisicamente. A partir de certa altura, senti que precisava de seguir em frente e de superar outros obstáculos, uns obstáculos que fossem meus, que fossem o reflexo do meu trabalho e dos meus disparates, das minhas hesitações e inseguranças: fazer ou não fazer tal coisa, tomar este ou aquele caminho. Ainda assim, gostava de dizer aqui que a vida na companhia do Carlos era quase sempre interessante. E que apesar de ter consagrado ao Carlos parte importante da minha juventude, não estou arrependida. A minha convicção íntima, profunda, é que o Carlos, pai da minha filha, é inocente. Sempre defendi o Carlos e sempre o continuarei a defender calorosamente. Não me peçam, por isso, para sacrificar as minhas ideias ou para dobrar a minha vontade, nem me peçam para desistir das minhas recordações.
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Infância e adolescência
Nasci em Loulé, no dia 31 de outubro de 1973, e vivi em Almancil até aos 16 anos, a terra onde moravam os meus pais e a minha irmã mais velha, a Onélia, que nessa altura já tinha cinco anos. A minha infância foi alegre e despreocupada, sem grandes privações materiais, como aliás deviam ser todas as infâncias. No início da década de 1970, a então aldeia de Almancil era bastante segura. Com apenas seis anos podia ir sozinha para a escola primária – ficava apenas a um quilómetro da nossa casa –, a pé ou de bicicleta. Nunca houve nenhum problema, nem os meus pais tiveram quaisquer motivos de preocupação. Ali todos se conheciam, grande parte dos moradores eram emigrantes, regressados da Suíça, de França, da Alemanha e, sobretudo, da Venezuela. Pessoas de classe média, com uma experiência cosmopolita, reunidas num local provinciano. Tinham vivido em regiões mais desenvolvidas e conhecido melhores condições de trabalho, até que prosperaram e decidiram voltar à pátria com o desejo de começar o seu próprio negócio. O facto de se tratar de uma terriola mínima, com vizinhos que se conheciam bem e que tinham um passado comum de emigração, favoreceu a criação de uma estreita rede de solidariedade, assente num fortíssimo sentido de comunidade, que ainda hoje permanece.
Os meus pais faziam parte desse grupo. Emigrantes da Venezuela, tinham montado uma padaria em Maracaibo, uma povoação pequena onde não havia uma única loja especializada na venda de pão. Em Almancil havia muita gente que tinha estado na Venezuela e que dizia que ali o pão era quase todo de muito má qualidade. O país ideal, portanto, para abrir uma padaria. E foi isso que os meus avós maternos e os meus pais fizeram: aprenderam o ofício e montaram uma padaria. Trabalharam os quatro arduamente na Venezuela até 1968, altura em que o meu avô começou a ter problemas de saúde e a família, tomada a decisão de regressar a Portugal, resolveu vender a padaria. Com eles vinha a minha irmã, que já nascera na Venezuela e contava, então, apenas um ano de vida.
O facto de ser filha de pessoas humildes, mas muito trabalhadoras, ensinou-me que nada se consegue se não lutarmos tenazmente, honestamente, pelos nossos objetivos, que uma vida boa deve ser produto do esforço, da coragem de assumir as nossas responsabilidades e do nosso investimento íntimo na formação intelectual e profissional. Claro que um empurrão inicial ajuda bastante e isso, felizmente, não me faltou, já que os meus pais sempre procuraram dar às filhas a melhor educação e não pouparam energias para nos proporcionar estudos superiores. E isso foi possível porque os meus pais souberam escolher as suas prioridades: investiram o dinheiro obtido na Venezuela na construção (até há cinco anos foi o negócio da família) para depois reinvestirem parte dos lucros na nossa educação. Graças a essa inteligência dos meus pais, e à sua ética do trabalho e da poupança, que sempre tentaram incutir-nos, nunca tivemos problemas financeiros em casa.
Em meados da década de 1970, Almancil era uma aldeia muito pequena, à volta da nossa casa não haveria mais do que meia dúzia de casas, o resto era tudo natureza. E embora não fôssemos muitas crianças, o importante era que vivíamos em grande liberdade e num ambiente que nos proporcionava segurança, alegria e otimismo. Podíamos deambular tranquilamente sem a companhia dos adultos, sem sentir qualquer receio quando nos afastávamos de casa com as nossas bicicletas BMX para percorrer os cinco quilómetros que nos separavam da praia de Vale do Lobo ou quando apanhávamos o autocarro em direção à praia de Quarteira, então um sítio fantástico, ainda pouco urbanizado. Quantas vezes, perante o mistério glorioso daquelas praias lindíssimas, eu permaneci extática a contemplar o reflexo brilhante do sol no mar ou a concavidade das ondas que se desfaziam docemente na areia…
No mundo da minha infância a natureza estava sempre perto de nós. Eu, a minha irmã e os nossos amigos éramos todos uns pequenos selvagens que corríamos livres pelos campos, explorando todos os seus recantos. Naqueles caminhos de terra, descuidados e cheios de pedras, havia mil coisas para investigar e desfrutar. Ao som da orquestra das cigarras, rodeados de árvores monumentais e criaturas e animais perigosíssimos, como camaleões, osgas, caracóis, sapos, gafanhotos, gatos selvagens, percorríamos os terrenos por cultivar, desembocando, às vezes, numa cabana abandonada, outras numa gruta misteriosa. Naquela idade, a vida no campo ainda não é mortalmente aborrecida, é antes uma vida mágica e diversa. Não sabíamos nada do 25 de Abril, da democracia, do FMI ou do choque petrolífero, mas jogávamos ao «mundo» debaixo dos pinheiros mansos e, sentados nos baloiços que pendurávamos nas alfarrobeiras, abarcávamos a realidade à nossa volta com todos os sentidos, de maneira total.
Depois, havia os piqueniques organizados pelas famílias amigas, debaixo dos pinheiros junto à praia do Garrão, na altura uma espécie de paraíso, sem restaurantes nem construções, apenas natureza. Enquanto os adultos abriam as mesas desmontáveis e preparavam a comida ao ar livre, de repente aparecia uma bola para nós jogarmos voley ou umas raquetes de badmington. Respirar aquelas fragrâncias do campo, aquele cheiro a pinheiro e a terra fresca transmitia-nos uma harmonia, uma quietude, uma sensação de paz de que todos desfrutávamos. Podíamos brincar às escondidas ou ouvir música, podíamos descer até ao mar e topar com o casco podre de um barco sepultado na areia. Foi a esse pequeno mundo da minha infância feliz, ao íntimo contacto com a natureza, à união que reinava entre nós, família e amigos, que mais tarde fui buscar as forças para enfrentar o pesadelo em que se tornaria a minha vida, as incalculáveis desgraças que me aguardavam no futuro. E ainda agora, ao escrever estas palavras que me transportam e me devolvem à minha meninice, sinto no meu peito uma emoção que me sossega de todas as lutas travadas e me transmite a serenidade que me faltou nestes últimos anos.
E havia também a colheita da alfarroba, da amêndoa e do figo, árvores que cresciam prodigiosamente nos terrenos da nossa família e que vinham de geração em geração. Em pleno verão, castigadas pelo sol de agosto, tanto eu como a minha irmã tínhamos à nossa espera, invariavelmente, essa duríssima tarefa. Para o tempo passar mais depressa, imaginava que cada fruto que arrancava da árvore correspondia a um país aonde eu gostaria de ir. Porque muitos dos meus amigos tinham nascido noutros países, alguns tinham chegado mesmo a estudar nessas terras e falavam fluentemente dois idiomas, tanto podia ser o francês, o inglês, o alemão ou o espanhol; porque passei a minha infância a ouvir histórias passadas em diferentes partes do planeta, desde pequena que me sinto cheia de desejos de ver o mundo desconhecido. Talvez por isso, por essa sensação intensa de coisas futuras, sempre gostei de contactar com pessoas de outras nacionalidades e sempre tentei desenvolver ao máximo o meu conhecimento de línguas, em particular o inglês e o espanhol, que treinei bastante quando trocava regularmente correspondência com pen friends de outras partes do mundo, ingleses, espanhóis, mexicanos. Chegava a escrever dez cartas por mês, onde partilhávamos gostos musicais, descrevíamos as nossas roupas preferidas, discutíamos os programas de televisão nos nossos respetivos países, falávamos das escolas de cada um, etc. Esse gosto pelo convívio e pela interação com os outros, o meu lado comunicativo, foi uma herança dos meus pais e dos amigos deles, que, ao contrário da generalidade dos algarvios eram pessoas muito sociáveis e nada fechados, não desconfiavam dos desconhecidos nem tinham problemas em misturar-se com os estrangeiros que começavam a invadir a região. Algo me dizia então que iria sair daquele meio pequeno que era o Algarve do final da década de 1970 e inícios da de 1980, um meio com que, na verdade, não me identificava muito. Cedo percebi que precisava de conhecer outras pessoas, outras cidades, ter outras experiências humanas, ganhar mundo.
Na escola primária, onde às vezes levávamos reguadas por conversar com os colegas do lado, quando não nos colocavam num canto da sala, contra a parede, o meu terror era a matemática, de que sempre fui péssima aluna. Fazia tudo para evitar que me chamassem ao quadro e me pedissem para resolver os exercícios (ainda hoje tenho aversão à matemática). Em compensação, gostava imenso de ler, era frequentadora assídua das bibliotecas itinerantes, que iam de 15 em 15 dias à nossa escola e onde requisitava os livros dos Cinco e dos Sete ou das gémeas de Santa Clara, escritos pela minha querida Enid Blyton, que agora a minha filha e as amigas devoram sofregamente.
A minha grande referência, nessa altura, era a minha irmã mais velha, que me ensinou a gostar de certos grupos musicais e a apreciar outras maneiras de vestir, avançadas para a minha idade. Como dormíamos as duas no mesmo quarto, essa influência fazia-se sentir diretamente, desde logo nas paredes, que estavam quase completamente tapadas com cartazes dos Duran Duran, dos Bon Jovi, do Prince e da Madonna. Foi a minha fase «Like a Virgin», das paixões platónicas e das contundentes músicas dos Pink Floyd, uma misturada própria de uma adolescente à procura do seu lugar no mundo. Estive perdidamente apaixonada pelo Limahl e pela música do filme The Never Ending Story. Os meus cadernos da escola estavam cheios de autocolantes da revista Bravo, minha leitura obsessiva, influência de uma vizinha que estivera com os pais na Alemanha. Por intermédio da Bravo tomei contacto com outra visão da juventude, em particular com o movimento Punk, que me interessava principalmente pelo estilo – achava muita graça às cristas, às correntes e aos cabelos pintados –, que vinha revolucionar o nosso então convencional mundo da moda. (Ao contrário do que muitos pensam, a moda esconde todo o género de preconceitos.) Para uma rapariga tímida como eu, os rapazes punk eram o máximo. Um dia, meio a sério meio a brincar, disse à minha mãe que estava a pensar fazer uma tatuagem, ao que ela respondeu – os meus pais tinham uma mentalidade aberta, mas daí a ter uma filha punk ia uma distância maior que daqui à China –, que se fizesse isso deixava de ser filha dela. Fosse a sério ou a brincar, o certo é que as minhas veleidades naquele universo dos Sex Pistols acabaram ali. E havia também o Blitz, que me ensinou a gostar do David Bowie, do Michael Jackson e dos Rolling Stones, o oposto da «Formiga Formiguinha», que uma amiga me ofereceu num aniversário, sem saber que eu, nessa altura, com 12 ou 13 anos, já era «muito à frente».
Graças à situação económica estável dos meus pais, sempre houve televisão em nossa casa. Desde o Verão Azul, com o Piranha, o Pancho, a Bea ou o Chanquete, o velho marinheiro que vivia no La Dorada, um barco de pesca transformado em casa, até aos Jogos sem Fronteiras, passando pelo programa de desenhos animados do Vasco Granja, ou pelos programas de músicas, para onde escrevi várias cartas pedindo para passarem videoclipes, como o «Sign O’ The Times», do Prince, um dos meus álbuns preferidos, víamos tudo isso. Porém, o programa que tinha então mais sucesso e juntava toda a família à volta do aparelho de televisão era o concurso 1,2,3 (as audiências do concurso eram tais que os cinemas começaram a ser mais baratos à segunda-feira por causa do 1,2,3, porque este não deixava ninguém sair de casa). Nós, ainda por cima, como no Algarve apanhávamos facilmente a TVE, também víamos a versão espanhola, que tinha prémios extraordinários (uma vez, por exemplo, ofereceram um helicóptero). Tinha eu 12 anos, portanto, quando comecei a ver o Carlos Cruz na televisão, de quem rapidamente nos tornámos fãs, eu, a minha irmã e os meus pais.
Lembro-me, depois, da emoção que senti, aos 13 anos, quando a minha irmã foi estudar engenharia em Coimbra. Se por um lado deixou de ser uma presença constante no meu quotidiano, o que foi uma enorme perda e representou uma grande mudança nos meus hábitos, por outro lado, foi um pretexto para conhecer outra cidade e outras pessoas (principalmente durante a Queima das Fitas), reforçando em mim o desejo de viajar e sair do Algarve. De resto, ou porque gostava de contactar com pessoas e conhecer um pouco das suas vidas, ou apenas porque precisava de dinheiro para uma moto (que os meus pais se recusaram a comprar), aproveitava parte das férias grandes para trabalhar, como aconteceu no hotel da Quinta do Lago, onde fui animadora de crianças, quase todas filhas de estrangeiros do norte da Europa. No verão, no Algarve, o contacto com turistas estrangeiros é tão frequente que o nosso imaginário se enche de referências que pertencem a outras culturas e sociedades e que alimentam o nosso espírito de aventura, fazendo-nos sonhar com viagens (ser hospedeira de bordo foi um desses sonhos). Na verdade, a Quinta do Lago era uma primeira forma de contactar com outras culturas e sair um pouco, nem que fosse psicologicamente, do meio onde tinha nascido.
Terminada a escola primária em Almancil, fui estudar para Faro. Durante anos, todos os dias, lá ia eu de autocarro, primeiro para a Escola Preparatória Afonso III, depois para a Escola Secundária Tomás Cabreira. Ali fui encontrar um grupo de amigos estupendo, pessoas saudáveis que queriam divertir-se, conviver, namorar, mas que, simultaneamente, também queriam estudar e ser alguém no futuro. Nunca fui uma aluna brilhante, a minha média andava entre os três e os quatro valores, exceto a ginástica e a música, a que costumava ter cinco. Apesar disso, ou talvez por causa disso, esses anos em Faro vivi-os com grande intensidade. Foi a época em que escrevi vários diários – desde que me lembro de saber escrever que escrevo diários – e onde registei os meus sonhos e anseios, onde podia deixar livre a imaginação (ainda hoje guardo esses diários dentro de um caixote, como se fossem uma espécie de disco externo da minha memória e dos meus segredos).