CAPÍTULO 2
OS ACORDES DE UM CORAL ALEMÃO ressoam dentro do carro que Zacharias «Zeke» Martinsson guia com segurança ao passar por um dos extremos da área de vivendas denominada Hjulsbro. Pela janela lateral, consegue ver os beirais vermelhos e verdes das enormes casas. Os beirais pintados estão carregados de gelo e as árvores, que conseguiram crescer majestosas durante os quase trinta anos que se passaram desde que as casas foram construídas, transmitem uma imagem de fragilidade e de desgaste pela exposição ao frio cortante, mas ainda assim todas as construções aparentam estar notavelmente bem conservadas e aquecidas, de quem vive muito bem.
Gueto de médicos, pensa Zeke. É essa a designação que se lhes dá na cidade. É, sem dúvida, uma área popular entre os médicos que trabalham no hospital. Exactamente em frente, do outro lado da grande via, a Stureforsleden, atrás de um parque de estacionamento, estão os prédios brancos, relativamente baixos, de uma outra área, a Ekholmen, com as casas de alguns milhares de imigrantes e de descendentes já nascidos na Suécia, bem menos afortunados.
Malin pareceu-me cansada, quase sonolenta. Talvez tivesse dormido mal. Talvez eu lhe pergunte se lhe aconteceu alguma coisa. Mas não. É melhor calar-me. Ela costuma ficar zangada quando lhe perguntamos como se sente.
Zeke tenta manter o pensamento longe do problema que em breve vão ter de enfrentar. Nem sequer tenta imaginar como se vai apresentar a situação. Vão saber em breve. Porém, os homens da patrulha pareciam impressionados e isso não era de espantar, atendendo ao cenário que descreveram. Com os anos de serviço, já estava habituado a retardar, a adiar tomar conhecimento de factos horrorosos, mesmo quando estes o atingiam directamente.
Johannelund era o nome da localidade por onde passava agora.
Os campos de futebol onde costumavam jogar as equipas de miúdos estavam cobertos de neve. Era lá que jogava Martin, na equipa da Saab, antes de decidir dedicar-se totalmente ao hóquei no gelo. Nunca o encorajei quando ele jogava futebol, pensa Zeke. E agora, quando as coisas no hóquei começam a correr muito bem ao meu filho, não aguento ter de ir ver os jogos. Ontem à noite foi uma tortura. Apesar de terem ganho à equipa do Färjestad por quatro a três. Nunca gostei deste jogo, por muito que queira. Um jogo para idiotas valentes.
Ou gostamos de uma coisa, pensa Zeke, ou não. Eu gosto do meu coral.
Ensaiam duas noites por semana no Da Capo, o grupo coral a que ele se juntou há uns dez anos, depois de arranjar coragem para lhes fazer uma visita e apresentar-se. Concertos, talvez uma vez por mês, uma viagem por ano para algum festival.
Zeke gosta da liberalidade no convívio com os outros elementos do coro, ninguém se importa com o que cada um faz. Encontram-se, conversam e cantam. Por vezes, quando está com os colegas, absorto nos cânticos numa qualquer igreja iluminada, sente a possibilidade de realmente pertencer a uma organização, de fazer parte de algo que é maior do que a sua própria e insignificante pessoa. É como se nos cânticos houvesse uma unidade e uma alegria espontâneas, um domínio em que não pode haver lugar para o mal.
Isso, porque é preciso manter o mal sob controlo, o mais possível.
Neste momento, estão a caminho do mal. Com certeza absoluta.
Neste momento, a localidade é Folkungavallen.
O próximo passo na hierarquia do futebol. O campo de futebol foi negligenciado e merece ser renovado. A equipa feminina do Clube Linköping FF é uma das melhores do país. Um grupo de mulheres, muitas a jogar na selecção nacional, que nunca conseguiu entusiasmar os habitantes da cidade. A seguir, a piscina. As novas casas, perto do silo de estacionamento. Vira para outra rua, a Hamngatan, e passa por dois centros comerciais, o Hemköp e o Åhléns, e depois vê Malin à porta de casa, a tremer de frio. Porque não esperou do lado de dentro?
Ela curva-se para a frente, mas parece, de certa maneira, imperturbável, cruzando os braços contra o corpo, toda ela como que ancorada no solo pelo gelo, na certeza de que esse é o começo de mais um dia em que irá desempenhar o papel para o qual realmente está preparada.
E Malin está preparada, sim, para a investigação policial. Caso cometesse algum delito, eu não iria querê-la no meu encalço, pensa Zeke, ao mesmo tempo que diz em voz baixa:
– Com os diabos, Malin, onde é que este dia nos vai levar?
A música coral com o volume reduzido ao mínimo. Dentro do carro, cem vozes num murmúrio.
O que conta a voz de um ser humano? pensa Malin.
A sua maneira de repercutir, de acentuar os tons graves, de como que a sufocar as palavras a meio da frase.
A voz de Zeke tem uma rouquidão que Malin nunca ouviu noutra pessoa, um tom de humildade construída que desaparece quando ele canta, mas que se torna extraordinariamente acentuada quando fala agora sobre o que aconteceu:
– Vai ser, certamente, um cenário horrível – disse ele, com a voz rouca em que se destacava a sua dicção perfeita. – Foi o que disseram os homens do carro-patrulha ao telefone. Mas também, quando é que não é assim?
– O quê?
– Quando é que não se trata de uma visão horrorosa?
Zeke está sentado ao lado de Malin, ao volante do Volvo, com o olhar bem fixo na estrada gelada, escorregadia.
Os olhos.
Nós confiamos neles. Noventa por cento das impressões que recolhemos do mundo que nos rodeia são-nos dadas pelos olhos. São eles que prestam esse serviço. Aquilo que não vemos, não existe. Quase. Tudo o que possa esconder-se num armário fica de fora. Problema resolvido. Simplesmente.
– Nunca – diz Malin.
Zeke concorda com um aceno da sua cabeça rapada. Assente num pescoço anormalmente longo, o crânio parece não combinar com o seu corpo curto e musculoso. A pele é lisa nas maçãs do rosto.
Do lugar em que está sentada, Malin não consegue ver os olhos dele. Mas confia na sua memória.
Conhece aqueles olhos. Sabe que descansam bem fundo no rosto e que, na maior parte das vezes, ficam quietos. Na sua cor mate, esverdeada, um pouco acinzentada, existe uma luz quase permanente que é a um tempo dura e suave.
Com cinquenta e cinco anos de idade, tem a calma de uma experiência enorme, ao mesmo tempo que, de certa maneira, essa experiência o tornou mais irrequieto, implacável. Ou como ele próprio lhe disse uma vez, depois de muita cerveja e de muita aguardente, numa festa de Natal: «Somos nós contra eles, Malin. Por vezes, por muito lamentável que isso possa soar, temos de usar os métodos deles. É a única linguagem que essa espécie de gente realmente entende.» E disse-o sem satisfação nem amargura. Foi apenas uma constatação.
Zeke não deixa transparecer a inquietação, mas ela conhece-o muito bem. Como deve sofrer durante os jogos do filho Martin.
«…um cenário horrível.»
Passaram onze minutos entre o telefonema de Zeke e o momento em que chegou para apanhar Malin. A curta constatação dele quando ela se sentou no carro fez com que o seu corpo se encolhesse ainda mais, ainda que, contra a sua vontade, a deixasse extraordinariamente animada.
Ver Linköping pela janela do carro.
A cidade esconde a sua pequenez de todas as formas, o verniz da sua história cada vez mais fino.
Aquela que antes era uma cidade de fábricas e de intenso comércio entre camponeses tornou-se rapidamente uma cidade universitária. As fábricas foram em grande parte desactivadas. Os habitantes mais instruídos fizeram pressão. Optaram pela educação, nas escolas, na universidade, e logo nasceu a cidade mais fútil do país, com os habitantes mais extraordinários do país.
Linköping.
A cidade dos anos quarenta, com académicos inseguros e um passado para varrer para debaixo do tapete a qualquer preço. Um povo que queria ser elegante e vestir-se bem, com as melhores roupas, para ir almoçar ao centro, aos sábados.
Linköping.
Uma cidade maravilhosa para os doentes.
E melhor ainda para as vítimas de queimaduras.
No hospital da universidade existe a melhor unidade de queimados do país. Malin esteve lá uma vez, para resolver um caso, vestida de branco da cabeça aos pés. Os doentes conscientes gritavam de dor ou gemiam, os inconscientes sonhavam em ser dispensados de acordar.
Linköping.
O domínio dos aviadores. A morada da indústria de aviação. Os caças, tal qual besouros, passam a zumbir pelo céu. Barris, Dragões, Raios e Sins voam num infindável crescendo e, de repente, há novos-ricos a passear pelas ruas, depois de venderem a sua empresa de tecnologia de ponta aos Estados Unidos.
E as planícies e os bosques em volta. O lar de todos aqueles cujos genes não aguentam mudanças assim tão rápidas, cujos códigos protestam, que se recusam a mudar. Sem a possibilidade de crescer noutro lugar qualquer.
Janne. És um desses?
São os nossos códigos que não se ajustam no mesmo ritmo?
Os «índios» selvagens. As pessoas em comunidades como Ukna, Nykil e Ledberg. Podemos ver os «índios» em fatos de treino e de tamancos, lado a lado com os médicos, os engenheiros e os pilotos de testes, no IKEA, aos sábados. Lado a lado, é assim que as pessoas devem viver. Mas, e se os códigos não combinam? Se o quase amor for impossível? No ponto de ruptura entre o passado e o presente, entre o aqui e o ali, entre o interior e o exterior, nasce por vezes a violência como possibilidade única.
Passam agora por Skäggetorp.
Um milhão de casas de telhados brancos a rodear um centro deserto. Nessas moradias em banda moram aqueles que vieram realmente de longe. Aqueles que sabem quando os torturadores de uniforme batem à porta durante a noite, aqueles que já ouviram os machetes a silvar no ar no momento exacto em que o amanhecer acorda a selva, aqueles que ainda são vítimas do desvelo das autoridades da imigração.
– Passamos pelo Mosteiro de Vreta ou tomamos a Ledbergsvägen?
– Estes não são exactamente os meus domínios – responde Malin.
– Decide tu. Mas depressa.
– É melhor seguir em frente. Então, como é que foi o jogo ontem?
– Nem me fales nisso. Os assentos vermelhos do estádio são uma verdadeira tortura para os nossos traseiros.
Zeke passa pela saída que dá acesso à Ledbergsvägen e segue em frente na direcção do Mosteiro de Vreta.
A leste, vê-se o lago Roxen coberto de gelo. Mais parece um glaciar fora do sítio. E, ao longe, do outro lado do lago, amontoam-se as mansões nas encostas que levam ao Mosteiro de Vreta a partir de uma elevação abrupta. As comportas do canal Gota, ao lado, aguardam os velejadores estivais e os barcos cheios de turistas americanos endinheirados.
O relógio no painel de instrumentos.
7h22.
Um cenário horroroso.
Ela gostaria de pedir a Zeke para pisar no acelerador, mas permanece em silêncio. Prefere fechar os olhos.
A esta hora começa a chegar gente ao edifício da polícia e, normalmente, ela estaria a dar os bons-dias aos outros colegas da área de investigação no Departamento de Investigação Criminal de Linköping, já sentada atrás da sua secretária, na ampla paisagem da sala de trabalho. Estaria a observar o estado de espírito deles e a determinar qual o tom que iria vigorar nesse dia. E diria ou pensaria:
«Bom dia, Börje Svärd. Levantaste-te e foste dar de comer aos teus cães. Nunca está demasiado frio para cuidares dos teus animais, não é verdade? Os pêlos deles estão colados às tuas camisolas, ao teu casaco, até aos teus cabelos cada vez mais raros. Os latidos dos teus cães são para ti como vozes. Como é que realmente aguentas? Como é que se pode ver alguém que se ama sofrer tanto como a tua mulher sofre, todos os dias?»
«Bom dia, Johan Jakobsson. Foi difícil pôr as crianças na cama ontem? Ou estão doentes? Há uma epidemia de gastroentrite. Passaste a noite em branco a limpar o vomitado, tu e a tua mulher? Ou sentiram a alegria silenciosa de quem vê os filhos adormecer cedo e bem-dispostos? Hoje, é a tua mulher que os deixa na escola e és tu que os vais buscar? Vocês chegam a horas. Tu chegas sempre a horas, Johan, embora isso não seja suficiente. E a preocupação, Johan, eu vejo-a nos teus olhos, ouço-a na tua voz. Nunca desaparece. Eu sei o que isso significa, porque essa preocupação também existe dentro de mim.»
«Bom dia, comissário Sven Sjöman. Como está o chefe de secção hoje? Tenha cuidado. Essa barriga está realmente demasiado grande, realmente perigosa. De enfarte, como dizem os médicos no hospital da universidade. Barriga de viúva, como se diz à boca pequena no bar do hospital antes de colocarem a banda gástrica. Não me olhe assim com esse ar de pedinte, Sven, sabe que eu tento sempre fazer o melhor possível. Tenha cuidado. Eu preciso de todos os que acreditam em mim, já que é fácil duvidar, mesmo quando a motivação é muito maior do que aquela que julgamos ter. E então as suas palavras, o seu conselho, “Tens muito talento para isto, Malin. Grande talento, cultiva-o. Existem muitos talentos no mundo, mas são poucos os que sabem usá-los. Olha bem para aquilo que está à tua frente, mas não confies apenas naquilo que os teus olhos vêem, confia na tua intuição, Malin. Confia na intuição. Uma investigação é composta por uma série de vozes, vozes que tu podes ouvir ou deixar de ouvir. As nossas próprias vozes e as dos outros. É preciso escutar as vozes inaudíveis, Malin. São elas que escondem a verdade”.»
«Bom dia, Karim Akbar. Sabes que até o mais jovem, o mais mediático chefe da polícia do país precisa de se dar bem connosco, pequenos funcionários? Tu deslizas pela sala com os teus fatos italianos, brilhantes, bem engomados, e é absolutamente impossível saber qual o caminho que vais tomar. Nunca falas do teu Skäggetorp, da casa de fachada cor de laranja em Nacksta, no Sundsvall, onde cresceste sozinho com a tua mãe e seis irmãos e irmãs, depois de terem fugido do Curdistão turco e do teu pai se ter suicidado no desespero de não encontrar um bom emprego no novo país.»
– Em que estás a pensar, Malin? Pareces estar completamente na lua.
As palavras de Zeke soam como uma chicotada. Com um movimento brusco, Malin pára a sua brincadeira de saudações hipotéticas e volta a aterrar no carro, volta para o caminho que leva ao acontecimento, à violência que surge nos pontos de ruptura, à paisagem consumida pelo Inverno.
– Em nada – responde ela. – Estava apenas a pensar em como se deve estar bem lá no quentinho da esquadra.
– Deixaste entrar o frio na cabeça, Malin.
– E como é que poderia impedir o frio de entrar na cabeça?
– Endurece a tua posição, Malin, e o frio desaparece.
– O frio?
– Não, a ideia de que está frio.
Passam pelo viveiro de Sjövik. Malin aponta pela janela para as estufas esbranquiçadas pela geada.
– É ali – diz ela – que se podem comprar tulipas na Primavera. Tulipas de todas as cores, até as impensáveis.
– Caramba – responde Zeke. – Mal posso esperar.
Avistam-se os faróis acesos do carro-patrulha, como se fossem estrelas coloridas em contraste com o branco da paisagem e do céu.
Eles aproximam-se devagar, o carro parece arrastar-se metro a metro, lentamente, pelo campo coberto de neve, numa solidão que parece ter sido inventada para aquele lugar. Metro a metro sobre os cristais de neve, aproxima-se da meta, uma clareira redonda e curvilínea. No local, uma ocorrência decorrente de outra ocorrência que decorreu ainda de outra ocorrência, concentra as atenções. O vento sopra contra o pára-brisas.
Por vezes, as rodas do Volvo derrapam na estrada recentemente limpa de neve e reaberta. E, talvez uns cinquenta metros à frente dos faróis dos carros da polícia, desenha-se no horizonte a figura meio indistinta de uma árvore, um carvalho isolado, com os seus tentáculos acinzentados a formar uma espécie de teia de aranha venenosa a contrastar com o céu nublado, branco, os ramos finos instigando uma teia de memórias e pressentimentos. Os ramos mais grossos do carvalho debruçam-se para o solo e, lentamente, pelo peso, deixam cair pedaços do manto de cristais brancos, diante dos olhos de Zeke e Malin.
Uma figura humana do lado de fora do carro-patrulha. Vêem-se duas cabeças pelo vidro traseiro de um Saab estacionado alguns metros à frente.
Um cordão de isolamento à volta da árvore, quase até à estrada.
E na árvore. Uma visão nada fascinante.
Algo que deixa os olhos em dúvida.
Para as vozes contarem.