Título: Jardim, a Grande Fraude
Uma radiografia da «Madeira Nova»
Autor: Ribeiro Cardoso
Capa: Rui Garrido
Ilustração da capa: Gonçalo Viana
ISBN: 9789722125086
Editorial Caminho, SA
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Este é o trabalho de um cidadão, por acaso jornalista, empenhado em divulgar uma realidade que o preocupa.
Quero contudo declarar, à partida, que não persigo a isenção nem a objectividade absolutas, mito e quimera que por aí correm para acalmar consciências, enganando-as.
Procuro apenas dar uma visão de conjunto daquilo a que o poder instalado na Quinta Vigia chama «Madeira Nova» — com base em testemunhos de dezenas de protagonista dessa realidade, mas fundamentalmente em notícias, reportagens, entrevistas e opiniões publicadas, escolhendo-as segundo os meus critérios e de acordo com o meu modo de ver o mundo.
Isto é, seleccionei o que me pareceu mais relevante. Outro cidadão poderia naturalmente fazer outras escolhas.
Quero ainda deixar claro que este acto de cidadania tem dois objectivos:
— ajudar a caracterizar o homem e o político que há mais tempo está no Poder no nosso país e, simultaneamente, retratar o surpreendente regime por si criado no seio, mas à margem, do Portugal de Abril.
— prestar uma homenagem aos jornalistas, com relevo para os madeirenses, que, em muitos casos, correram e correm riscos de toda a ordem, que foram trazendo até nós pedaços dessa realidade.
Isto sem prejuízo de apontar muitas culpas ao jornalismo acrítico e sensacionalista que por aí abunda e que, junto de Jardim, funciona apenas como pé de microfone fortemente amplificador dos seus dislates.
Ribeiro Cardoso
Conheci Alberto João Jardim em Coimbra, nos anos 60 do século passado. Por um motivo fortuito: a minha namorada de então, hoje minha mulher, vivia em casa de D. Isaura, senhora que alugava quartos a estudantes do sexo feminino, e onde residiam várias madeirenses. Ângela, a mais velha de todas as residentes naquele lar acidental, tinha um namoro atribulado com um desconhecido Alberto João — e lá em casa todas sabiam do comportamento pueril desse jovem. Por essa via, eu ia ficando ao corrente da maneira de ser de Alberto João, que vivia ali a dois passos, no «Farol das Ilhas», uma casa de estudantes madeirenses do sexo masculino.
Nesses tempos longínquos, os nossos contactos eram apenas superficiais — nada nos ligava, ele não frequentava os meios associativos académicos, e já nessa altura representava o que nós, na república «Ninho dos Matulões», onde eu vivia, combatíamos frontalmente.
Em 1975, quando regressei de Moçambique, para onde tinha sido mobilizado dois anos antes, de Alberto João quase nada se sabia no Continente — a não ser que, no Funchal, ele era o director do Jornal da Madeira, o diário da Igreja Católica, onde cumpria as ordens do bispo.
Porém, o que eu não imaginava — nem sequer punha a hipótese... — é que fosse possível, em tempo de democracia em Portugal, uma pessoa com as suas características chegar a Presidente do Governo Regional da Madeira.
Aí por 1979/1980, reencontrei-me com Alberto João nos velhos estúdios da RTP no Lumiar: o recém-presidente do Governo Regional da Madeira ia ser entrevistado na RTP2, no programa Cartas na Mesa, onde eu era um dos jornalistas residentes. Tolentino de Nóbrega, já nessa altura nome incontornável do jornalismo madeirense, foi outro entrevistador.
Da entrevista não reza a história. A partir de então, contudo, passámos a ter contactos espaçados mas regulares — sob a forma de entrevistas por telefone ou em conversas pessoais quando ia à Madeira em serviço profissional. Tive sempre o cuidado de não fomentar o tratamento por tu para manter alguma distância, mas era com muita curiosidade e boa disposição que falava com o desbocado Alberto João, e com ele discutia a situação política ou... a profissão de jornalista, para si uma verdadeira obsessão.
Lembro-me, por exemplo, de uma noite em que, no Funchal, conversámos sobre tudo o que nos vinha à cabeça. Sempre amigavelmente provocador, Alberto João resolveu atacar-me pela via profissional.
«Você tem a mania que os jornalistas são uns seres impolutos, que respeitam escrupulosamente um código de ética, que têm a obrigação de denunciar os podres desses malvados dos políticos, não é?»
«Não diria tanto», respondi. «Não ponho as mãos no fogo por todos os meus camaradas...»
«Vou propor-lhe uma coisa: vamos visitar as instalações da ANOP no Funchal. Tenho as chaves comigo...», respondeu.
«Mas como é que o Presidente do Governo Regional tem as chaves da agência nacional de notícias?», perguntei, fazendo-me surpreendido apesar de bem conhecer o segredo de polichinelo que todos os jornalistas madeirenses comentavam nos bastidores ... mas sem se atreverem a escrever uma linha sobre o assunto.
Perante a minha resposta, o rosto de Alberto João iluminou-se com o sorriso de gaiato que estivesse a fazer uma partida. Enquanto balançava as chaves na mão levantada, limitou-se a dizer, satisfeito:
«Sei apenas que tenho aqui as chaves. Conhece a Maria Virgínia? É uma jóia de pessoa, uma excelente jornalista, dou-me muito bem com ela...» — e o sorriso continuava a abrir-se. De resto, como seguramente o faria, se estivesse ali connosco a própria Maria Virgínia, a responsável pela delegação da ANOP no Funchal, mulher experiente e divertida que eu bem conhecia.
(Maria Virgínia, passado pouco tempo, seria nomeada directora da RTP-Madeira. Uma promoção sem dúvida justa, tal a qualidade dos serviços informativos, presumo, que prestava à Madeira e que Jardim muito apreciava.)
Continuámos a conversar. Nessa noite longínqua — já nem me consigo lembrar exactamente do ano em que aconteceu — comecei a perceber melhor a figura de Alberto João e as relações, no arquipélago, do poder político com certa comunicação social. E a minha curiosidade em conhecer melhor aquele homem e os seus métodos, nasceu aí.
Há mais de vinte anos que não me encontro com Alberto João Jardim, mas continuei e continuo a seguir com atenção o seu percurso político, repetindo sem cessar a pergunta que me acompanha desde 1978: Qual a explicação para a subida ao poder de um homem com as características de Alberto João e, mais estranho ainda, como é que nele se consegue manter há mais de três décadas?
A resposta a essas duas situações é complexa, tão diversificados são os factores que, a meu ver, estão na sua origem: o facto de a Madeira ser uma ilha, a pobreza ali reinante há séculos, a natureza daquele povo esculpida pelo isolamento e uma sobrevivência dura, o papel da Igreja, a família a que pertencia Alberto João, as suas características pessoais, a sua formação e ligação políticas, a influência de uma forte e conservadora diáspora, o para si traumático 25 de Abril.
Mas há uma outra interrogação que me acompanha desde sempre: o porquê do fechar d”olhos dos sucessivos presidentes da República e primeiros-ministros portugueses, tantas vezes coniventes e cúmplices com as práticas do Senhor da Ilha — sem esquecer, é óbvio, o escandaloso comportamento dos líderes nacionais do PSD.
Falando claro: suspeito de que aquela realidade insular é uma imperdoável mancha negra no Portugal de Abril. Uma nódoa que só é possível pelo incompreensível e inaceitável posicionamento do Poder Central, cujos titulares maiores já há muito parece terem dado a Madeira como um caso perdido — suportam sem um ai a má educação e os insultos de Jardim; curvam-se perante a sua permanente chantagem; continuam, ou pelo menos continuaram até Sócrates, a abrir os cordões à bolsa e a alimentar uma autonomia não sustentada; assobiam para o lado quanto ao esbanjamento de dinheiros públicos e à dívida monstruosa do arquipélago; e pactuam com o simulacro de democracia existente na região.
Porém, o mais surpreendente e incompreensível é que a Madeira, com 35 anos de maiorias absolutas e que há muito vive irresponsavelmente acima das suas possibilidades — nunca nenhuma parcela do país recebeu, proporcionalmente, tanto dinheiro do exterior — continua a ser uma das regiões mais atrasadas de Portugal, com o maior número de pobres, a maior percentagem de analfabetos e de abandono escolar, o maior número de funcionários públicos por metro quadrado, sem indústria, sem agricultura, sem pescas — e de novo a braços com um desemprego e uma emigração maciços. E como adiante veremos, com múltiplas histórias de perseguição a cidadãos, por um lado, e uma tremenda e continuada pressão — e nalguns casos manipulação e controlo efectivos — sobre a comunicação social local, por outro.
Mas isso é o que os turistas e os «cubanos» que lá chegam não vêem, não sabem e nem querem saber — pelo contrário, ficam extasiados com os numerosos túneis, viadutos e auto-estradas, com o ar moderno, com os hotéis magníficos, restaurantes excelentes, paisagens soberbas.
Pior ainda: não imaginam, nem sequer suspeitam, de que o senhor da ilha, tiranete bajulado por aqueles a quem distribui benesses, é há muito um homem só, sem recuo, fechado e perdido no seu labirinto de quilómetros de vias-rápidas e túneis construídos a preços desmedidos com dinheiro fácil vindo de Bruxelas e Lisboa — e com a consciência de que, quando sair de cena, o que deliberadamente tem protelado, o castelo por si construído ruirá na areia que não existe na ilha.
Depois de largos meses a ler o que, nos últimos 36 anos, foi sendo publicado em jornais e livros sobre a Madeira e Jardim, e após ter entrevistado cerca de seis dezenas de personalidades do arquipélago e do continente — muitas das quais me pediram para não serem citadas — convido-vos a viajarem comigo nas páginas seguintes, onde tentarei dar um pequeno contributo para se saber quem é Alberto João Jardim e em que se traduz, três décadas e meia depois de Abril, a autonomia e a chamada «Madeira Nova».
Uma nota final: este trabalho desenvolveu-se entre o Verão de 2008 e meados de 2010.
Depois de largo tempo de amores contrariados de Marceliana, doméstica, e Alberto Gonçalves, funcionário das Finanças, Alberto João Jardim nasceu no Funchal a 4 de Fevereiro de 1942. De pequenino se torce o destino.
O avô materno, que durante anos proibiu impiedosamente o namoro do casal, era o conhecido tenente Cardoso, militar severo, conservador e salazarista convicto. Dirigia a «Sopa dos Pobres», que ficaria popularmente conhecida como «A Sopa do Cardoso», tendo sido também vereador da Câmara e vogal dos bombeiros.
Este avô teve a sua importância na formação de Alberto João — viviam na mesma casa, impunha respeito e ordem e foi com ele que aprendeu as primeiras letras. «Aos cinco anos já lê os jornais locais, sobe para cima das cadeiras e treina discursos», escreveu Felícia Cabrita num excelente e bem documentado texto («O Barão de Quebra Costas», Felícia Cabrita, Expresso, 28-08-1993).
Além disso, o avô gostava de jogar bridge em casa com amigos que, do ponto de vista político, quase o faziam parecer um perigoso revolucionário. As visitas caseiras iam de legionários até ao visconde de Porto da Cruz, o homem da propaganda nazi via rádio para a Madeira, que achava que Salazar tinha desvios esquerdistas.
Neste ambiente foi crescendo e bebendo Alberto João, ainda por cima menino da mamã e de duas criadas que giravam permanentemente à sua volta.
O pequeno Alberto João, filho único ultramimado, em família era chamado de Janinha — e mais tarde, já no Liceu, onde chegava sempre muito arranjadinho, foi apelidado de Ofélia, Dona Branca e Branca de Neve. Por outros motivos, nos primeiros anos do Liceu teve mesmo direito ao cognome de Barão de Quebra Costas, numa referência directa ao local onde se situava a sua casa.
Contudo, o pai de Alberto João navegava noutras águas que também deixaram marca indelével na natureza e carácter do rebento. Pai babado, boémio, frequentador de bares e tascas, popular, surgia como feliz contraponto do avô Cardoso: fazia todas as vontades ao miúdo, levava-o com ele nas suas andanças, dava-lhe prendas, mostrava-lhe outros mundos.
A vida, porém, é muitas vezes madrasta, e aos onze anos de idade Alberto João, repentinamente, ficou órfão de pai. O equilíbrio quebra-se: ficam a mãe e o avô a impor-lhe regras, desaparece o escape libertador paterno.
Nos primeiros tempos ainda se manteve rapaz aprumado e estudioso. Porém, com o andar da carruagem, Alberto João começa a dar largas à veia paterna. Desleixa-se nos estudos, adora dar nas vistas, torna-se no brincalhão de serviço sempre a pregar partidas aos professores, anda permanentemente de cabeça no ar, as notas deixam de ser o que eram, disciplinas como Ciências Naturais, Físico-Químicas e Desenho são um tormento.
Num livro absolutamente inenarrável, pago pelo próprio Presidente do Governo Regional, publicado em 1997, Jardim diz a propósito da sua infância e início da adolescência:
«Aquilo era um ambiente em que eu era muito mimado. Primeiro por ser filho único, por ser a única criança dentro de casa, e depois porque com a morte do pai toda a gente me queria proteger e tratar de mim, as empregadas mimavam-me muito, eu lembro-me que de manhã, antes de ir para o Liceu, elas nem me deixavam atar os atacadores dos sapatos porque me podia fazer mal às costas, as pessoas tinham a mania que eu podia adoecer, enchiam-me de sobretudos e de pullovers, e é claro que à mais pequena corrente de ar aí é que eu adoecia mesmo, e passava a vida doente. Tinha muitos primos, mas tinha alguma dificuldade em brincar, porque eu aprendi a ler com quatro ou cinco anos. [...] Quando comecei a ver que me estava a tornar numa criança desadaptada, porque aquela educação muito resguardada estava a fazer de mim quase um mariquinhas, [...] percebi que havia qualquer coisa que não estava bem, e então passei a ficar fora de casa, ia para os acampamentos da então Mocidade Portuguesa, [...] e o menino bem comportadinho de repente tornou-se um inferno dentro do Liceu.» (Alberto João, o Homem, 1997, Teresa Mascarenhas e Ana Macedo e Sousa, Edições Golfinho)
Entretanto, quase a terminar o ensino secundário e já senhor de grande basófia, Alberto João desperta para os encantos do sexo feminino.
Porém, aqui as coisas não lhe correm de feição: era pouco atraente, nada convincente e tinha atracção por raparigas mais velhas. De resto é nesse tempo que surgem as primeiras tentativas, goradas, de cair nas boas graças de Ângela, um pouco mais velha e que o olha como quem diz «cresce e aparece»...
Fosse como fosse, apesar desse revés junto das meninas madeirenses, o jovem Alberto João não desanimava e ia encontrando algum consolo nas turistas que, já nesse tempo, aportavam aos magotes ao Funchal — ao mesmo tempo que se entregava com afinco à Mocidade Portuguesa, onde chega rapidamente a Comandante de Castelo, sempre muito obediente e militarista.
Liceu feito, chega então a altura de Alberto João ir para Lisboa para a Faculdade de Direito da Universidade Clássica. Estamos no início da década de 60 e aí começam os empenhos, que lhe foram acolchoando a vida, junto de gente bem colocada no regime: o rapaz, graças à influência da mulher do reitor do Liceu do Funchal, aboletou-se na capital portuguesa numa casa da Mocidade, na Avenida Visconde Valmor.
Uma vez na cidade grande, Alberto João deslumbrou-se com a boémia e a noite. Eram mais fáceis os caminhos para o Cais do Sodré, do que para a Cidade Universitária. Como viria a acontecer mais tarde em Coimbra, também em Lisboa os movimentos associativos lhe passaram ao lado. Ou melhor: combateu-os... à sua maneira.
Voltando ao livro Alberto João, o Homem. Quando as duas autoras lhe perguntaram se ainda tinha amigos dos tempos da juventude, Jardim respondeu:
«Sim, falo com todos, dou-me bem com todos, tratamo-nos todos por tu. [...] Onde eu encontrei alguma adversidade foi nos meus colegas da Faculdade. Porque aquilo eram os anos 60, o ambiente que se vivia nas Universidades eram as lutas das Associações Académicas, claramente dominadas pelos radicais de esquerda. Eram os comunistas, eram outros ainda mais radicais que foram depois para o Partido Socialista, e por outro lado havia os de direita, nitidamente encostados ao regime, e fascismo e comunismo para mim são dois regimes igualmente maus, eu tenho horror a todas as formas de ditadura, abomino todos os sistemas de extremismo radical. Por outro lado, a proibição do direito de associação impedia que nós, os moderados, nos pudéssemos reunir, ou pudéssemos fazer qualquer coisa. Mas o meu percurso político antes do 25 de Abril foi um percurso de defesa de uma liberalização sem revolução. Quando apareceu a Ala Liberal eu revi-me neles, achei que era a mudança do regime para uma democracia, mas sem passar por revoluções. Nunca andei nas lutas académicas, andei atrás de umas farras, festas, copos, umas pequenas giras, eram coisas que me interessavam muito mais do que a contestação política, de forma que eles nunca contaram comigo para fazer revoluções, e isso é uma coisa que muitos deles ainda não me perdoam, e hoje tenho mais adversários políticos nos homens da minha geração do que nos mais velhos ou nos mais novos.»
(Alberto João, o Homem, ob. cit.)
À pergunta seguinte — «Os seus colaboradores políticos mais próximos são quase todos de uma geração mais nova. Porquê?» — o dono do PPD/PSD da Madeira respondeu com a sensibilidade de um diplomata do mais fino recorte:
«Justamente por esse motivo. Os políticos da minha geração não perdoam que o homem que governa a Madeira há mais de vinte anos seja um homem que não alinhou com eles nas lutas académicas, e alguns deles ainda hoje têm complexos em relação a mim, por causa disso, porque eles fartaram-se de berrar e de gritar e não chegaram a lado nenhum, e eu estou onde estou, sem nunca ter andado de braço no ar. Porque as lutas académicas eram muito massificadas, sabe, e eu tenho um grande respeito pelo povo, o povo soberano que trabalha, que constrói uma nação, mas tenho um desprezo imenso pelas massas que não sabem pensar, as massas que gritam, ululam. A votação de braço no ar, por exemplo, é uma coisa que eu considero desprezível.» (Ibidem)
Mas se em 1997 o «moderado» Jardim disse o que atrás se transcreve, no início da década de 60, já em Lisboa, ofereceu-se para fazer um discurso de homenagem ao ditador Salazar que decorreu em São Bento, na sede da Liga 28 de Maio perante uma assistência selecta de legionários, onde se encontravam, entre outros, Casal Ribeiro e o general Santos Costa, que ficaram satisfeitos ao ouvir o jovem madeirense a gritar «Viva Salazar, abaixo o reviralho» — como se pode ler no texto de Felícia Cabrita que, a propósito, ouviu em 1993 o orador, que, sem hesitação, lhe disse: «Achei aquilo divertidíssimo. Salazar era na altura uma figura credível.»
Tão credível — pelo menos para si — que nessa homenagem ao ditador pelos seus 33 anos de poder, Jardim ainda disse:
«Digno sucessor de escola de Sagres que é o Prof. Dr. Oliveira Salazar, o nosso inteiro apoio e admiração ao que tem feito para bem da Pátria.» («Jardim I, o colonialista», Tolentino de Nóbrega, Público, 04-02-2003)
Em Lisboa, a vida académica de Alberto João foi uma desgraça completa. Transferiu-se mais tarde para Coimbra, onde as coisas não lhe correram muito melhor. Mas ficou para toda a vida com os piores trejeitos coimbrinhas.
No seu primeiro ano na capital não fez uma única cadeira e no ano seguinte as coisas seguiam pelo mesmo caminho. A mãe Marceliana decide-se: na época dos exames foi para junto do filho, obrigando-o a estudar à sua frente. A Universidade lisboeta fervia com a luta dos estudantes, o regime sente-se em causa e reage, mas Alberto João, alheio a essas minudências, prepara-se debaixo das saias da mãe e, não se sabe se fura-greves ou não, fez três cadeiras. À tangente.
Cena idêntica passa-se mais tarde em Coimbra, depois de para lá se transferir tentando melhor sorte. Já com mais de vinte anos e o sarcasmo dos colegas que sabiam da história, vê-se obrigado, novamente, em plena época de exames, a ir estudar diariamente com a mãe, todas as tardes, para o lar das Zitas, onde D. Marceliana se instalara na tentativa de salvar o ano académico do «pequeno».
Vivia então Alberto João no «Farol das Ilhas» com mais nove estudantes, oito dos quais madeirenses. E era uma espécie de bobo da corte. A malta até gostava dele, muito gabarolas e fanfarrão, também muito medricas, mas sempre bem-disposto e a fazer palhaçadas.
Nessa altura, Alberto João vivia com os tostões contados. A família não nadava em dinheiro e ele disso tinha consciência. Ao mesmo tempo, evitava jogar às cartas, nomeadamente à lerpa, por dois motivos: não suportava a ideia de perder, característica que não largaria ao longo da vida; o que tinha medo de perder era respeitável, e o dinheiro fazia-lhe falta.
«A vida naquela altura não era fácil como nos dias de hoje, antes da crise que aí está claro... A sr.ª Maria, a empregada que era quase como nossa mãe, quando a malta não tinha dinheiro penhorava coisas suas para comprar o que a casa necessitava», recordou o psiquiatra Ricardo França Jardim, hoje administrador do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, que viveu no «Farol das Ilhas» com Alberto João.
Ricardo França Jardim lembrou também um episódio que considera relevante para conhecer a personalidade de Alberto João:
«Em Julho de 67 ou 68, já não sei ao certo, o Alberto João chumbou num exame, assim perdendo a última esperança de não ir para a tropa logo a seguir. No Farol já quase todos tinham ido para férias e só lá estávamos três: o Alberto João, o Francisco Nunes da Silva e eu. Fomos a uma festa, tomámos uns copos, o Alberto João apanhou um grande pifo, na volta chegámos ao café Ritz e ele fez um discurso patriótico, gritando: “Chumbaram-me hoje, sou filho único de mãe viúva, quero ir para a primeira linha da guerra, e vou mesmo.” Foi um momento de sorte: no Ritz estava um irmão de Veiga Simão, coronel e ex-comandante da PSP, com um outro militar, que era comandante do Regimento de Saúde Militar. Ficaram impressionados com o discurso... “Um homem como este é que eu gostava de ter no meu Regimento” — confessou o comandante. E de imediato entregou ao pobre órfão um cartão pessoal, onde escreveu umas linhas, para ele ir a Lisboa, a um departamento do Exército, para conseguir mais um adiamento na incorporação.»
No dia seguinte, Alberto João já não se recordava de nada. Foram os companheiros de bebedeira que lhe lembraram a coisa, ele foi a Lisboa e teve o adiamento desejado!
Para além das bebedeiras e de outras cenas características do espírito coimbrinha daquela época — que nunca mais o largou ao longo da vida, como demonstram as suas «brincadeiras» de Verão nas praias de Porto Santo, um autêntico maná para os jornais ávidos de espectáculos grotescos —, Jardim assumia comportamentos inaceitáveis a qualquer luz. Um exemplo: quando, depois do jantar, acompanhado por outros membros da casa — sozinho era incapaz de qualquer atitude — ia ao café Ritz na Av. Dias da Silva, tinha um truque infalível para arranjar lugar sentado. Entrava, passava pelo meio das mesas ocupadas, mandava umas bocas em voz alta para os compinchas, a certa altura arrotava alto, levantava a perna e aliviava a tripa sonoramente, sendo certo e sabido que havia sempre alguém que, enojado e sem vontade de entrar em conflito com o provocador, saía apressadamente. Jardim sentava-se então com os comparsas com ar de herói.
No seu trajecto de vida Funchal — Lisboa — Coimbra — Funchal há pelo menos uma coisa em que Alberto João foi coerente: esteve sempre no lado errado da história.
Na Lusa Atenas, em Abril de 1969, a luta dos estudantes por um ensino melhor, universal e democrático — que já vinha de trás e de que Alberto João nunca quis saber — entrou em ebulição e acabou numa greve geral aos exames.
Foi uma luta bonita e corajosa, extremamente bem conduzida e com o apoio geral dos estudantes e de um número considerável de professores universitários. Foi um movimento precursor do 25 de Abril.
Alberto João já ali não morava, mas seria o mesmo se morasse — não participaria, seguramente, numa das mais belas e marcantes lutas estudantis do século XX. No ano lectivo 1968/69 matriculara-se de novo na Universidade de Lisboa e ainda nesse ano foi para o Funchal, sempre com o curso por acabar, acompanhado de Ângela, ficando a dar aulas na Escola Comercial daquela cidade.
Mas se em Coimbra havia a luta dos estudantes, na Madeira, em ano de eleições como foi o de 1969, havia também quem lutasse abertamente pela democracia e pela autonomia, contra o regime centralista e fascista implantado em Portugal há décadas.
Nesse então, Alberto João combatia, mais uma vez, no lado errado da História, defendendo o centralismo e a submissão do povo madeirense a Lisboa, isto é, ao regime fascista e aos ditadores Salazar e Caetano.
Nesse ano de 1969, a 22 de Abril, correndo todos os riscos que se conhecem, 39 madeirenses subscreveram um texto intitulado «Carta a um Governador», dirigida a Braancamp Sobral, governador do Distrito Autónomo do Funchal em representação do poder fascista.
Nesse texto, hoje histórico, exigiam democracia e autonomia, tendo alguns deles, em Outubro desse ano, integrado listas oposicionistas nas eleições para a Assembleia Nacional.
Vinte e cinco anos depois, esse documento foi reeditado. António Loja, o primeiro dos seus subscritores, explicou os motivos da reedição: «[...] para que se fizesse justiça, para que ficasse como registo para a História e para que as gerações mais novas dele tomassem conhecimento». Acrescentou que na génese e elaboração dessa carta foi decisiva a acção dinâmica de dois núcleos de acção cívica e política: o grupo do Pombal (ideologicamente católico) e o grupo do jornal Comércio do Funchal (de carácter não confessional).
De Alberto João Jardim, nem cheiro de qualquer actividade pela autonomia, quanto mais pela democracia. Sabe-se apenas que nesse tempo de luta e abnegação, fazia aconchegadamente a tropa no Funchal, dava aulas na Escola Comercial e preparava o seu casamento com Ângela, que se verificou em Setembro — além de escrever textos de opinião no jornal Voz da Madeira, órgão da União Nacional, dirigido pelo seu tio Agostinho Cardoso.
Em contrapartida, dos subscritores da Carta, onde havia democratas de várias proveniências e profissões, padres católicos incluídos, sabe-se que, alguns deles, viram carros seus serem destruídos por bombas e foram perseguidos e expulsos da Madeira no Verão Quente de 75 — com Alberto Jardim, então a dirigir o jornal diário da Igreja católica, a escrever violentos editoriais a apelar à violência contra esses cidadãos que sempre lutaram pela democracia, liberdade e autonomia.
Em 1969, ainda sem o curso acabado, Jardim não teve como fugir à tropa — foi como cadete para Mafra. Mas de um modo estranho, que lhe podia ter causado grandes dissabores. Valeu-lhe a grandeza de carácter dos camaradas fardados, que ele sempre desprezou na vida académica.
Voltando à crise estudantil de Coimbra e à prisão dos dirigentes associativos e outros activistas em Abril de 1969. A pouco e pouco foram sendo libertados, mas em Agosto a direcção do movimento estudantil foi de novo presa e as instalações académicas encerradas. A luta continuou e em Outubro — como escreveu Celso Cruzeiro — muitos dos estudantes envolvidos no movimento, com a direcção da Associação Académica de Coimbra à cabeça, foram «incorporados de emergência nas fileiras do exército, com guia de marcha imediata para o Quartel de Mafra» (Coimbra, 1969, Celso Cruzeiro, Edições Afrontamento, 1989).
Conta ainda Celso Cruzeiro:
«Foi dada então palavra de ordem para que todos os estudantes mobilizados, que no essencial haviam sido escolhidos e identificados pela polícia como principais quadros dirigentes do movimento, partissem de comboio da gare de Coimbra, utilizando a guia de marcha fornecida pelos serviços militares. Centenas de estudantes puderam assim comparecer na estação, à partida do comboio, e manifestar-se em uníssono contra a guerra colonial.
O comboio arranca vagaroso e à medida que a máquina acelerava desfilávamos às janelas das carruagens por entre filas de estudantes, a quem deixávamos a herança de continuar a luta. Compassadamente, eles começaram então a gritar: “Abaixo a guerra colonial!, Abaixo a guerra colonial.” Debaixo de grande tensão, envoltas por um halo de emotividade que rompia à flor dos olhos, as vozes cresciam ressoando em toda a gare. De dentro do comboio, onde a emoção não era menor, aumentámos esse clamor. E foi assim que, acompanhando da janela este grito, radicalmente sentido pelo povo, nos sentimos dirigidos aos quartéis de Mafra. Soubemos depois que a polícia tinha carregado sobre os manifestantes e que estes haviam entrado pelo coração da cidade adentro entoando coros e gritos conta a ocupação militar em África.» (Ibidem)
Curiosamente, por essa altura, no Funchal, Alberto João Jardim, que se havia casado 15 dias antes e tinha ido passar a lua-de-mel às Canárias, preparava-se também para se apresentar em Mafra.
Porém, há aqui um pormenor estranho: Alberto João e os «reviralhistas» de Coimbra foram para Mafra ao mesmo tempo, uma semana mais tarde do que a generalidade dos outros jovens que integraram a 4.ª incorporação de 1969. Com uma curiosidade: o cadete madeirense ficou alojado numa das duas casernas especiais destinadas propositadamente aos 49 «perigosos esquerdistas» e grevistas de Coimbra, que assim ficaram afastados do grosso da revoada.
Ora, se se percebe essa decisão das autoridades em relação aos «reviralhistas», já ninguém entende o que fazia no meio deles o Barão de Quebra Costas...
Este raciocínio foi feito pelos estudantes associativos, que de imediato suspeitaram do intruso. E como me disse Osvaldo Castro, vice-presidente da Associação Académica de Coimbra em 1969 e então já membro do PCP (agora é deputado do PS), essa questão foi colocada frontalmente a Jardim, que andava por ali comprometido e assustado.
«A explicação que ele me deu pessoalmente é que tinha estado doente e por isso veio uma semana mais tarde. Fora uma coincidência. Se é verdade ou não, isso não sei. O que sei é que ele, inicialmente, passou um mau bocado pois era um corpo estranho no nosso seio e muitos admitiam que pudesse ter sido mandado para ali para nos espiar. Nós pouco sabíamos dele, mas de uma coisa estávamos seguros: não tinha nada a ver connosco, a sua passagem por Coimbra limitara-se aos copos e às farras, e esse é, muitas vezes, o caldo de cultura para outros comportamentos. Por outro lado», acrescentou Osvaldo, que em Coimbra vivia na República «Ninho dos Matulões», «nós estávamos ali por castigo, e ele, pelo contrário, era um homem do regime e até tinha um tio que era figura grada da ANP. Era lógico que desconfiássemos.»
Neste contexto, alguns dos cadetes mais duros, entre os quais Francisco Sardo, fundador da Liga Comunista Internacional falecido precocemente, fizeram-lhe a vida negra: para além de «bocas» que permanentemente lhe mandavam e que ele engolia em seco, não havia noite em que não fosse derrubado o pequeno armário que lhe estava destinado e onde guardava as suas coisas pessoais.
Contudo, os mais atentos começaram a ver a falta de jeito do homem para a vida militar e para viver em conjunto com outras pessoas — e começaram a ter pena dele.
«Metia dó. Não era capaz de apertar as botas, via-se aflito, e para não chegar tarde à formatura tínhamos que o ajudar. Nos exercícios físicos era uma desgraça — até para saltar pequenos obstáculos tinha problemas. Também não sabia como colocar a G3 ao ombro e os exercícios eram feitos sempre transportando a arma... Parecia uma cópia do bravo soldado Schweik, do checo Jaroslav Hasec.»
Ironia do destino: o pessoal que Alberto João abominava convenceu-se de que ele estava ali por engano e, na prática, adoptou-o... Acabaram-se os derrubes do armário, desapareceram as bocas, cobriam-lhe as fragilidades. Mesmo assim, suspeita-se, não aprendeu nada com a vida.
Passado o pesadelo de Mafra, que durou cerca de três meses, enquanto à esmagadora maioria dos seus camaradas de caserna foi atribuída a especialidade de atirador, Alberto João, sempre com a vida amaciada por recomendações, foi parar à EPAM — Escola Prática de Administração Militar, na Alameda das Linhas de Torres, em Lisboa, a dois passos dos velhos estúdios do Lumiar da RTP, com a novel especialidade de Acção Psicológica.
Nessa incorporação foram dez os cadetes escolhidos para tal especialidade, dos quais destaco quatro: o conhecido e excelente jornalista e escritor Manuel António Pina, licenciado em Direito em Coimbra; Albino Esteves, licenciado em Românicas, também na «Lusa Atenas»; o hoje deputado do PSD Guilherme Silva, licenciado em Direito em Lisboa e, mais tarde, ponta de lança de Jardim no Continente; e o jornalista Cordeiro Pereira, já falecido, que foi assessor de Sá Carneiro e protegido de João Coito, e na altura um inseparável de Jardim e tão provocador como ele, embora mais discreto.
Alguns dos seus colegas de especialidade com quem falei guardam, de Jardim, a mesma imagem: desengonçado, engraçadinho, sempre a falar meio a sério meio a brincar, desbragado, berrando, não deixando que os outros argumentassem, incapaz de ouvir, provocador nato e... já sem o medo de Mafra.
Uma das formas de provocar os camaradas de curso que ele suspeitava serem de esquerda — e é preciso sublinhar que se estava antes do 25 de Abril e na tropa — era, por exemplo, quando se encontravam numa sala a fazer um trabalho, ele começar a cantar em voz alta: «Maldita seja a Rússia soviética/ Malditos os países satélites/ Malditos os que comem criancinhas/ Malditos os que cospem nas santinhas»...
Albino Esteves pouco quis falar sobre esses tempos «não agradáveis de recordar». Confessou, contudo, que de Jardim ficou com a imagem de «um jovem que parecia estar sempre com os copos, que não se podia levar a sério mas podia ser perigoso. Um louco pouco recomendável».
Outra questão muito badalada por quem viveu por dentro o ambiente do curso de APSIC ( Janeiro a Março de 1970) foi, como não podia deixar de ser, o facto de, precisamente nessa altura, ter sido aberta uma vaga para Acção Psicológica no Quartel General do Funchal...
«Gato escondido com o rabo de fora», foi o que de imediato todos pensaram. Mas a coisa caiu muito mal, pois a concorrência era fortíssima e o que estava em jogo era a vida das pessoas, o seu futuro. Dos dez do curso, sabia-se, só os dois primeiros classificados não iriam para África, para as colónias em guerra. Por norma, havia uma vaga em Lisboa e outra no Porto. Em Ponta Delgada, por exemplo, não havia vaga para um oficial de APSIC... Porquê a Madeira?
Pina e Esteves resolveram pregar uma boa partida a Alberto João, pondo-lhe os nervos em franja. O segundo fez constar que o António Pina — o melhor aluno do curso — seria candidato ao lugar no Funchal, pois a mulher, professora, ia ser colocada na Madeira. O jornalista e escritor, então fardado, manteve-se em silêncio absoluto, como se fosse verdade. O mistério adensava-se e Alberto João entrou em parafuso, querendo tirar nabos da púcara — e, não aguentando mais, foi perguntar ao próprio Pina se era verdade o que constava. Pina confirmou de imediato, pedindo no entanto segredo...
«A malta gostava de o gozar. Com ele não era possível falar nada a sério, qualquer discussão com ele virava para o anedótico, as coisas real mente importantes passavam-lhe ao lado. Com aquela idade — tínhamos todos vinte e muitos anos, alguns de nós já eram casados e tinham filhos — ele andava sempre a cantar coisas do tipo “Minha mãe casai-me cedo, que me morde a passarinha, ó filha coça-a com o dedo, que também cocei a minha”...», sublinhou Albino Esteves.
Manuel António Pina tem uma opinião sobre Jardim muito parecida. Considerava-o a ele e ao Cordeiro Pereira — que eram unha com carne — dois provocadores com quem era preciso ter muito cuidado. Teve mesmo um caso complicado com Cordeiro Pereira. Numa aula com o major Lucena, a propósito de uma afirmação feita por Pina, Cordeiro Pereira perguntou em voz alta: «Leste isso no Capital? Aprendeste isso com o camarada Lenine?»
Pina ficou lívido. Contou-me: «O major Lucena assistiu a tudo e no final da aula disse-nos aos dois para não sairmos — e passou uma descasca em forma ao provocador. Classificou a atitude de Cordeiro Pereira como uma ignomínia, uma denúncia miserável — e depois de condenar tal falta de camaradagem, disse que por agora a coisa passava, mas estaria atento no futuro e se tal se repetisse iria ter consequências.» Pina lembrou: «Convém não esquecer que estávamos em 1970 e uma boca daquelas era um convite para que a Pide actuasse. Mas esta história mostrou também que havia militares do quadro que tinham outro posicionamento.»
Por fim, Pina, que ficou classificado em primeiro lugar porque tinha uma técnica superior de copiar onde... todos copiavam, contou um episódio significativo:
«Antes de mais convém lembrar que a concorrência entre nós era feroz: só os dois primeiros classificados ficavam em Portugal. Daí que a luta fosse ao milésimo... Ir ou não ir para a guerra, eis a questão. Ora, é neste contexto que se verificou um caso muito revelador do carácter de Jardim. Já no final do curso fomos surpreendidos por uma decisão dos nossos superiores: tínhamos que fazer uma corrida de 20 Kms que contaria para a classificação final. Protestámos, aquilo era demais, a nossa especialidade não passava pelo físico, etc., etc. Mas na tropa ordens são ordens e não tivemos outro remédio. Combinámos então, entre nós, e todos concordaram: chegaríamos ao mesmo tempo, para que, assim, ninguém fosse prejudicado nem beneficiado. Tudo correu como combinado, mas a 100 metros da chegada Alberto João rasgou o compromisso e desatou a correr para chegar em primeiro lugar... Além do gesto feio não conhecia as suas incapacidades...»
Em resumo: como era fraquito e desajeitado em termos físicos, para ele 100 metros era muito metro. Os outros desataram também a correr, Albino Esteves chegou em primeiro lugar e Jardim ficou cá para trás... Tramou-se, pois. A sofreguidão mostrou aquilo de que Jardim era capaz.
Claro que Jardim tem outra visão da sua passagem pela tropa. Recorrendo mais uma vez ao livro de autopropaganda Alberto João, o Homem, que ele próprio pagou com o dinheiro dos contribuintes, define assim o que foi a sua passagem pelo Exército:
«Gostei muito da vida militar. Também tive sorte, porque como já tinha experiência de colaboração em jornais, fiz os testes para ir trabalhar na área de acção psicológica e fui um dos dez cadetes escolhidos. O Guilherme Silva, que é hoje deputado do meu partido, também lá esteve comigo. Entretanto, e como fui dos primeiros classificados, não fui mobilizado para África, estive sempre no Continente e na Madeira. Estive em Mafra, onde o sistema era de uma extrema disciplina, fui para lá quinze dias depois de ter casado. Até costumo dizer que fui em lua-de-mel com o sargento. Mas hoje entendo que essa disciplina me foi muito útil, porque completou a minha formação como homem. Depois também tive a sorte de ser colocado numa especialidade muito interessante, onde aprendi técnicas muito úteis, que foram depois decisivas para a minha vida política. No curso de Direito ninguém aprende Gestão nem Organização Administrativa e a tropa ensinou-me tudo isso. As Forças Armadas são um exemplo do que deve ser uma organização administrativa e uma gestão. Devo muito à tropa e sou contrário ao fim do serviço militar obrigatório. [...] Ensina-nos a disciplina que é preciso saber ter na vida [...].»