«Quando um problema desafia todas as outras formas de solução, é justo e correcto pegar na espada.»
GURU GOBIND SINGH, 1650
Ficha Técnica
Título: Xeque-Mate A Goa
Autor: Maria Manuel Stocker
Design de capa: Ideias com Peso
Tradução dos anexos: Ana Cristina Carinhas
CAPA: Rui Garrido, sobre postal da colecção privada de João Loureiro
ISBN: 9789724745107
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«Quando um problema desafia todas as outras formas de solução, é justo e correcto pegar na espada.»
GURU GOBIND SINGH, 1650
Prefácio
António Barreto
Nunca esquecerei. Um ou dois dias depois da invasão de Goa pelos exércitos da União Indiana, os jornais portugueses, devidamente orientados e meticulosamente censurados, relatavam «a heróica resistência» dos soldados portugueses e das populações goesas. Já o Estado-Maior português na índia tinha entregue a sua rendição e ainda a imprensa da metrópole aludia a batalhas ferozes, travadas nas ruas e nos campos de Goa, de que já teriam resultado mil e cinquenta mortos! Pode imaginar-se o efeito produzido na opinião e nos sentimentos dos Portugueses. Alguns milhares de famílias viveram dias de enorme aflição. E muitos cidadãos ficaram revoltados com aquela agressão, mais simples seria dizer uma verdadeira matança. O país inteiro viveu dias de sofrimento e expectativa dramática. Ainda por cima, nesse mesmo ano, dez meses antes, tinham os Portugueses tomado conhecimento do início das hostilidades em Angola, essas sim marcadas por actos de evidente terrorismo que, no Norte da colónia, não pouparam civis, agricultores, mulheres, crianças, idosos, europeus ou africanos. Mesmo muitos que não tinham qualquer simpatia pelo Estado Novo e criticavam as decisões de Salazar no sentido de, «rapidamente e em força», fazer a guerra, ficaram estupefactos com os actos relatados e a perda de vidas portuguesas. É possível que alguns, como sempre, tenham apenas encolhido os ombros, com indiferença, resmungando, entre dentes, que «a culpa era dos colonialistas». Mas a maioria, certamente, sentiu tais actos com dor e perplexidade.
Seguiu-se um silêncio quase total, propício a boatos e à incerteza, assim como ao desespero das famílias que ignoravam a sorte reservada a seus parentes civis ou militares. Até que, muitos meses depois, pela calada do segredo e da vergonha, quase clandestinamente, chegaram as tropas portuguesas, entretanto detidas num campo de prisioneiros indiano, prontamente despachadas para as suas terras de origem, como se fossem bandidos ou culpados de traição e mentira. Mais tarde, o governador do Estado da índia e comandante das forças lá estacionadas será julgado e condenado.
Tudo isto se passou há apenas quarenta e poucos anos. Já na idade da televisão e da imprensa. A meio de um ciclo de consolidação da democracia e de crescimento económico sem precedentes na Europa. Em pleno apogeu, após a Segunda Guerra, da reconstrução europeia. Numa altura em que já existiam o Mercado Comum e a Associação Europeia de Comércio Livre. Como foi possível mentir tanto e tão descaradamente? Como foi possível que as classes dirigentes e as elites nacionais tivessem acreditado em tão enorme ficção ou até colaborado com a mentira e o silêncio que feriam um povo por inteiro? Como foi possível que, das universidades, da Igreja Católica e do mundo empresarial, não tenham chegado vozes firmes e audíveis a condenar tão despótico e desumano comportamento? A verdade é que, com excepção dos «suspeitos habituais», os militantes do «contra» e do «reviralho», «comunistas» para todos os efeitos, as instituições e as elites deixaram mentir.
Foram, apesar de tudo, gestos peculiares. A imprensa controlada e censurada não merecia muita confiança. Já se sabia. Mas uma colossal mentira como esta, criando uma guerra inexistente e inventando centenas de mortos entre os soldados, nunca se tinha visto. Os próprios simpatizantes do regime foram enganados. Um povo inteiro foi levado a acreditar numa horrorosa ficção. Se já, antes disso, as «verdades oficiais» eram lidas com circunspecção, depois deste episódio a desconfiança estabeleceu-se como regra. Durante os doze anos de guerra que se seguiram, ninguém, quase ninguém acreditava no que os jornais diziam, muito menos nas suas notícias de África e das frentes de batalha. Pior ainda, aquele comportamento do Governo, a invenção de uma guerra e o obrigatório desmentido imposto pela realidade, nas semanas seguintes, criaram um ressentimento nas forças armadas portuguesas que, doze anos depois, ainda não tinham esquecido: sabiam que, se não o impedissem, acabariam por ser denunciadas por não serem capazes de vencer as guerras africanas.
Vivi grande parte destes acontecimentos, que recordo com especial nitidez. Na verdade, estão na génese da minha formação política. Lembro-me, em particular, da imensa encenação e da absurda mentira, de que o Governo foi único e deliberado autor, concebidas com o propósito de enganar a opinião pública e de preservar o poder. Condenei então as políticas de Salazar, assim como as oportunidades perdidas para se encontrarem soluções políticas que poupassem aos Portugueses uma guerra colonial desgastante. Mas nada disso me impedia de querer saber mais e melhor o que realmente se passou em Goa naqueles anos do fim. Durante décadas, a minha curiosidade não foi satisfeita. Só agora, com este livro, sou capaz de compreender a maior parte dos factos e dos comportamentos políticos de todos os intervenientes. Sobre o essencial, a minha opinião não mudou. Mas sinto-me reconfortado pela compreensão mais sólida e pelo conhecimento que este trabalho me proporcionou.
Maria Manuel Stocker consegue um feito raro na literatura ensaística portuguesa recente: não vibra militantemente a favor ou contra os protagonistas da história contemporânea ou dos acontecimentos que estudou e relata. Foi-lhe possível analisar um facto crucial da política nacional, o princípio do fim do Império, sem deixar transparecer simpatias portuguesas, indianas ou goesas, tal como foi capaz de tratar de um dos mais dramáticos episódios da vida do Estado Novo, sem se sentir obrigada a negar ou revelar afectos pelo salazarismo ou pelas causas que o combatiam.
Não é feito a desprezar. Num país como o nosso, em que a história, o ensaio e a reportagem são frequentemente instrumentalizados e politicamente úteis, nem sempre o esforço de isenção é apreciado e recompensado. O «compromisso», o «empenhamento», o «engagement» e o «parti pris» são geralmente considerados virtudes, apesar de pouco contribuírem para o conhecimento e a compreensão. M. M. Stocker não foi por esse caminho e fomos nós, seus leitores, que ficámos a ganhar. A nossa opinião livre, nunca dispensável, fica assim mais bem fundamentada. O nosso ponto de vista, empenhado seja ele, deveria sempre alimentar-se numa investigação séria e isenta, em vez de a conduzir e deformar.
Este livro não produz declarações escandalosas, nem cevela segredos imprevisíveis. Não foi esse o objectivo desta serena e meticulosa investigação. A preocupação consistia em encontrar as provas empíricas e a evidência material que permitissem contar esta história a que tantos pormenores faltavam e na qual existiam tantas zonas obscuras. Os resultados são auspiciosos. Por exemplo, a estratégia deliberada de desarmamento e de condenação das forças portuguesas estacionadas em Goa a uma derrota «politicamente vantajosa» toma agora mais sentido, fundamentado em factos novos, isto é, hoje trazidos a público de modo mais consistente. Mas também não se poderá dizer, como às vezes acontece, que aquela decisão de Salazar e do seu governo foi concebida «contra» as forças armadas portuguesas. Na verdade, o plano de redução foi estudado e preparado por oficiais de vários ramos, entre os mais qualificados e de diversas famílias políticas, se assim se pode dizer. Não parece ter havido, nas vésperas da invasão indiana, nenhum plano e nenhuma ideia estruturada favoráveis à consolidação de uma defesa credível. Ou porque se verificava que a desproporção de forças (assim como as condições ecológicas e geográficas) era definitiva e inultrapassável; ou porque, na escala de prioridades, se considerava que Angola, em particular, e África em geral, vinham à cabeça e exigiam todo o esforço possível; a verdade é que o programa de contenção de forças e de redução do dispositivo não sofreu contestação de vulto. Mais tarde, muitos militares, talvez com razão, invocaram este precedente para recusar um novo papel de «bode expiatório», desta feita em Angola, Moçambique e Guiné. Mas, nos finais dos anos 50 e no princípio dos anos 60, o corpo militar colaborou conscientemente na deliberação do governo.
A integração do «caso de Goa» na política internacional e na diplomacia, com novos factos e testemunhos até agora desconhecidos, ocultados ou ignorados, é outra das vantagens deste livro. Tudo quanto aconteceu em Goa só pode ser compreendido cabalmente com o conhecimento do contexto internacional, da Guerra Fria, das relações entre os Estados Unidos e a União Soviética, da especial posição da Inglaterra (cabeça da Commonwealth, de que a União Indiana fazia parte) e do imparável movimento de descolonização, tanto mais irresistível quanto as grandes potências, embora de modo diverso, o apoiavam. Goa é «um caso» entre Portugal e a União Indiana, mas é também um muito interessante problema de relações internacionais e de balança de poderes. E de interesses de várias potências globais e regionais.
Salazar, aliás, tentou jogar essa carta. Mas de maneira inaceitável para os seus aliados e para as potências. Após ter percebido o alcance que teria a sua derrota na Índia, tentou transformar Goa num caso de «defesa do Ocidente». Só que o Ocidente não quis. Ninguém achou por bem mostrar solidariedade com a «Varanda da Europa», designação intencionalmente cunhada nesta época. Depois de a França, a Inglaterra e a Holanda terem entregue a maior parte das suas colónias, seria pelo menos estranho que se interessassem pelos destinos lusitanos do minúsculo Estado da Índia. O Governo português sabia-o perfeitamente e, por isso, nunca chegou a invocar a cláusula de solidariedade do Tratado da OTAN. Se o tivesse feito, teria recebido uma negativa. A Salazar, realista, tal era-lhe indiferente. O que pretendia era que a solução de Goa não fosse um precedente para as outras colónias africanas. E a sua frenética actividade judicial, diplomática e internacional destinava-se a preparar a metamorfose de Portugal metropolitano em vítima. Sem êxito político, sem reconhecimento junto dos Estados e sem sensibilidade por parte da opinião pública, restava a Salazar explorar a morte sangrenta, um massacre dos seus soldados pela descomunal força dos invasores. Para o que precisava da colaboração das vítimas, isto é, da aquiescência dos seus exércitos para morrerem num combate desigual e absurdo. Não a obteve. Limitou-se então a punir os que se recusaram a morrer ou a enviar para a morte os seus soldados. Após o que voltou a dirigir-se, sem ressentimentos, ao Ocidente e aos Estados amigos.
Em certo sentido pode dizer-se que Salazar também conhecia bem os seus aliados. Se não demonstraram solidariedade no caso de Goa, isso não quereria dizer que, nas outras colónias africanas, não estivessem interessados. E não se enganava. O mesmo Ocidente, que se revelou absolutamente indiferente e desinteressado na Índia, entendeu não contrariar activamente as políticas africanas seguidas por Salazar, incluindo as de guerra em Angola, que tinha começado no início de 1961 e se iria prolongar, com as de Moçambique e da Guiné, por mais de doze anos.
Estranha situação, esta, em que uma aliança se manteve politicamente firme, mas praticamente próxima da abstenção! O que não era indiferença, dado que os aliados de Portugal mostraram sempre um efectivo interesse na exploração dos recursos africanos, sobretudo angolanos. Estavam ali para o melhor, os interesses económicos, mas não se expunham excessivamente no pior, a guerra e a preservação da ditadura em Portugal. Talvez seja verdade que ninguém, nos governos aliados, tenha acreditado ou sequer aceite a hipótese de Portugal poder conduzir uma guerra durante tantos anos. Talvez o regime autoritário de Salazar e a guerra colonial fossem, para esses governos, problemas menores «que acabariam por se resolver com o tempo». Verdade. Como se veio a verificar. Só que o tempo foi longo... E a política dos aliados ocidentais tanto ajudou a União Indiana a conquistar Goa, como Salazar a manter-se e a prosseguir as suas guerras.
António Barreto