A Deusa do Oriente
Barbara Cartland Ebooks Ltd
Esta Edição © 2014
Título Original: “Terror in the Sun”
Direitos Reservados - Cartland Promotions 2014
Capa & Design Gráfico M-Y Books
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No primeiro dia do ano de 1833, William Sleeman, um dos grandes nomes da história da colonização inglesa na Índia, empreendeu uma inspeção oficial dos territórios por ele administrados, carregado em um palanquim precedido por elefantes ricamente enfeitados e escoltado, como sempre, por inúmeros criados e pela cavalaria garbosamente uniformizada. Em sua companhia, encontrava-se sua esposa Amelie, grávida de nove meses. Seis dias depois de partirem da cidade de Sagar, ela começou a sentir as dores do parto. Acamparam em um lugar cheio de limoeiros e pimenteiras e que há várias gerações era conhecido como um bele, isto é, um esconderijo dos Thugs , praticantes de uma seita de fanáticos adoradores da deusa Kali. Era neste local que os fanáticos costumavam estrangular, com um lenço de seda amarelo, viajantes incautos e depois enterrar seus corpos, em honra de Kali, a deusa assassina.
Foi nesse lugar, de tão sombria tradição, que o filho de William Sleeman nasceu.
A nossa história situa-se nesses perigosos tempos da Índia e muitos de seus personagens existiram realmente, como sir William Sleeman, sua mulher e filho.
–Apraz ao sahib Major conceder sua permissão para que o trem parta?
O indiano, chefe da estação, exprimia-se com respeito. Ao mesmo tempo em que falava, olhava por cima dos ombros para a confusão que se desenrolava naquele momento na plataforma.
Momentos de enorme excitação haviam precedido a chegada do trem, o qual, recém-introduzido na Índia, era tido como um dragão terrível, que expelia fogo pelas ventas.
Indianos revestidos de dholis, saris, trapos e panos que caíam cintura abaixo encontravam-se em um estado muito próximo da histeria coletiva. Vendedores que apregoavam seus produtos com vozes superagudas espiavam através das janelas dos vagões superlotados e, com uma expressão de súplica no olhar, ofereciam chipattis, doces coloridos, laranjas e bebidas avermelhadas.
Monges, ostentando trajes amarelos, soldados em uniformes escarlates, carregadores com pesadas bagagens acotovelavam-se em meio à confusão geral.
Havia os inevitáveis adeuses apaixonados e recomendações feitas, quase aos berros, àqueles que viajavam, por parte de quem ficava e acreditava que os passageiros iriam arriscar suas vidas no bojo daquele monstro perigoso.
O Major Iain Huntley contemplava vários homens reunidos em torno de uma pilha de bagagem, possuído da firme convicção de que eles se encontravam ali com o único propósito de armar alguma confusão.
No momento em que o chefe da estação afastou-se dele, desdobrando sua bandeirola vermelha, o pandemônio explodiu.
Os indianos começaram todos a correr, aos gritos e aos berros, abanando os braços e sacudindo seus bastões. Quase como em um passe de mágica, numerosos soldados apareceram empunhando seus mosqueteiros, deslocando-se rapidamente a fim de conter a multidão ameaçadora.
Eles eram poucos, em comparação com os baderneiros que, dispostos a armar a maior confusão, perturbavam e empurravam as famílias que não iriam viajar naquele trem e estavam sentadas ou dormindo na plataforma, ao lado de seus bens, os quais, na maior parte, consistiam em frágeis pacotes amarrados com corda. Cada família possuía numerosas crianças, além das inevitáveis cabras.
Toda aquela confusão tomou-os de surpresa e puseram-se a gritar, em meio ao choro generalizado das crianças e aos balidos dos animais, o que aumentou consideravelmente o tumulto.
Os chipatti, voavam em todas as direções, os recipientes de vidro que continham as bebidas coloridas estilhaçavam-se no chão e um bode livrou-se do laço que o prendia e saiu em carreira desabalada plataforma afora, perseguido de perto por seu desesperado dono.
Possuído de uma sensação de alívio, o Major Huntley achou que os soldados seriam perfeitamente capazes de controlar a situação assim que o trem partisse e andou sem pressa em direção á sua cabine, onde se encontrava seu criado ao lado da porta aberta, esperando por ele.
As rodas começavam a girar e o vapor e o resfolegar da máquina, superavam qualquer outro barulho.
A enorme locomotiva, fabricada na Inglaterra, parecia sobrepor-se a tudo e a todos.
Quando estava para chegar á cabine, notou, para sua grande surpresa, que a porta do vagão se abria e uma mulher vestida de branco descia para a plataforma.
Certificou-se imediatamente, com a rapidez de um homem habituado ao inesperado, que ela pretendia socorrer uma criança que, empurrada por aqueles que haviam armado toda aquela confusão, estava caída na plataforma, sem ninguém que a socorresse e na iminência de ser pisoteada pela pequena multidão. Apesar de muito pequena, chorava a plenos pulmões.
Um segundo antes que os braços da desconhecida pudessem pegá-la, o Major Huntley agarrou a mulher pela cintura e colocou-a à força no vagão.
O trem começava a deslocar-se com velocidade cada vez maior e como ele não tinha tempo de entrar em seu próprio vagão, seguiu a desconhecida, trancando imediatamente a porta.
Olhou para a plataforma que ficava para trás e viu dezenas de punhos levantados e gritos irados dos baderneiros, que pareciam um bando de chacais a quem a presa acabava de ser roubada.
A velocidade aumentava cada vez mais e a estação já se perdia de vista. O Major Huntley, voltou-se para contemplar a mulher que ele tinha empurrado para dentro do vagão sem a menor cerimônia.
Para sua grande surpresa ela era jovem e excecionalmente bela.
Havia retirado o chapéu e seus cabelos negros emolduravam um rosto muito alvo. Seus olhos, grandes, escuros, porém pontilhados de dourado, olhavam-no carregados de cólera.
–Graças á sua interferência– comentou com rispidez–, aquela criança, sem a menor duvida, será morta!
–Quem é a senhora e o que está fazendo aqui?– perguntou sem maiores rodeios.
Sentou-se e olhou à sua volta, com uma expressão incrédula no olhar, como se esperasse descobrir alguém na cabine, fazendo-lhe companhia.
Notou, porém, que ela estava vazia. Voltou-se para a desconhecida e antes que ela pudesse responder sua primeira pergunta, indagou:
–Quem foi que a colocou neste trem? Não tinham o menor direito de fazer uma coisa destas!
–Parece-me que qualquer pessoa tem o direito de viajar de trem, contanto que disponha de meios para comprar a passagem!
–Mas não especificamente neste trem, que se dirige para Sagar .
–Sim, eu sei e é para lá que quero ir.
–Para Sagar ?
Ela, que era pouco mais do que uma garota, levantou-se.
–Será que o senhor tem alguma autoridade para me interrogar?
–Autoridade plena– retrucou o Major Huntley com firmeza–, dei ordens no sentido de que nenhum europeu viajasse para Sagar que, no momento, é área proibida.
–Por quê?
A pergunta exigia resposta, mas ele retrucou um tanto evasivamente:
–Por razões oficiais. A senhorita ainda não respondeu minha pergunta.
Enquanto falava, adivinhou que ela não tinha a menor intenção de fazê-lo e, dominando o tom autoritário com que se exprimira até então, disse:
–Acho que devemos apresentar-nos. Sou Iain Huntley e, como pode notar por meu uniforme, pertenço aos Lanceiros de Bengala. No momento, porém, exerço tarefas especiais nesta região.
O Major Huntley acabou de falar e esperou por uma resposta.
Enquanto se exprimia, pensava que aquela garota era por demais bela e jovem para viajar sozinha em qualquer parte que fosse da Índia e sobretudo naquela região específica e naquele preciso momento.
Fez-se uma pausa estudada, como se ela se ressentisse com o fato de ter de lhe dar informações. Então, como se tivesse chegado à conclusão que não fazia o menor sentido mostrar-se difícil, declarou, com óbvia relutância:
–Meu nome é Brucena Nairn.
–E está viajando para Sagar ?
–Sim.
–Posso saber por quê?
–Vou ficar lá com meus amigos.
–Perdoe a minha curiosidade, pois há uma explicação para ela, mas gostaria de saber seus nomes.
Teve novamente a sensação de que ela gostaria de desafiá-lo e dizer-lhe que não se metesse onde não era chamado.
Ainda estava zangada. Podia notar este fato em seus olhos, que agora reconhecia como expressivos e pareciam, apesar de escuros, estar irradiando aquele sol que dentro de algumas horas transformaria as planícies atravessadas pelo trem em um inferno de calor.
–Vou ficar com o Capitão e a Sra. Sleeman.
O Major Huntley olhou-a sem acreditar no que acabava de ouvir.
–Com os Sleeman? Mas como é possível?
–Por quê? Parece-lhe tão pouco provável?
–Mal posso crer que William Sleeman esperaria uma hóspede como a, senhorita sem participar-me sua chegada e sem tomar as devidas providências para recebê-la.
Brucena Nairn deu de ombros.
–Se é este o seu modo de pensar, não há razão para que eu lhe diga mais nada.
Levantou o queixo, com ar de desafio, e olhou ostensivamente pela janela, como se a conversa tivesse chegado ao fim.
Quase a despeito de si mesmo, Iain Huntley pôs-se a sorrir.
Havia qualquer coisa de divertido no antagonismo daquela criaturinha que não tinha o menor direito de estar naquele trem e muito menos discutindo com ele.
Achou que seria uma boa medida mostrar-se conciliatória.
–Devo pedir-lhe desculpas, Srta. Nairn, mas, francamente, tomou-me de surpresa. Desde a semana passada que Sagar está proibida para todos os europeus. Como acaba de ver na estação, tem havido alguma perturbação da ordem e se tivesse ficado por lá poderia encontrar-se em uma situação muito desagradável.
–Mas qual foi a razão de toda aquela confusão?
–Estas coisas costumam acontecer nesta época do ano– respondeu o Major, um tanto evasivo–, mas ainda não consigo compreender porque o Capitão Sleeman, não me contou que estava à sua espera.
Enquanto falava notou, muito surpreendido, que um ligeiro rubor apoderava-se do rosto da garota e durante alguns segundos ela mostrou-se ligeiramente perturbada.
–Ele e a Sra. Sleeman estão de fato à sua espera?– Indagou, exprimindo-se em um tom diferente.
Fez-se uma ligeira pausa antes que Brucena Nairn dissesse em voz baixa:
–Eu… espero que sim.
–Espera que sim! Pois ficaria muito grato se me contasse exatamente o que aconteceu e por que está aqui.
–Não há a menor razão…– começou a dizer.
Neste preciso momento seu olhar cruzou com o do Major Huntlev e quase contra sua vontade ela capitulou.
–Bem… acontece que… acontece que o Capitão Sleeman é meu primo.
–Então ele sugeriu que a senhorita deveria vir ficar com ele aqui na Índia?– indagou o Major Huntlev, como se estivesse começando a compreender o que havia acontecido
–Não… exatamente.
Ela se exprimia com hesitação e ele olhou para Brucena Nairn fixamente, antes de prosseguir
–O que quer dizer com isto?
–Sua mulher, a Sra. Sleeman, escreveu-me pedindo que encontrasse uma babá para sua criança. Está esperando… um nenê para o ano que vem.
Brucena ficou levemente ruborizada, como se sentisse constrangimento em abordar assunto tão íntimo e o Major Huntley apressou-se em dizer:
–Sim, tenho conhecimento deste fato.
–Tentei de todos os modos, encontrar uma pessoa confiável que quisesse vir para a India, mas todas se recusaram
Enquanto falavam, Brucena pensava que fora uma tarefa impossível convencer as moças escocesas de Invernesshire de que a India era um lugar interessante para se trabalhar.
A relutância não partia somente delas, mas também de suas mães.
–Não vou permitir que minha filha se case com algum pagão– diziam repetidas vezes.– Vão ficar por aqui mesmo, onde eu possa ficar de olho nelas.
–Mas a senhora precisa levar em conta que seria uma aventura e tanto, além de representar uma oportunidade de se educar– dissera Brucena, batalhando por sua causa, tendo recebido de uma das mães, aliás urna senhora muito abespinhada, a seguinte resposta:
–Minha filha não vai viver esse tipo de aventura na idade em que se encontra. Se a coisa lhe parece tão atraente, Srta. Brucena, por que então não vai?
Foi a partir desta sugestão que Brucena começou a acalentar a ideia.
No momento apenas rira, porém mais tarde, quando sua missão de encontrar uma babá para a prima Amelie, revelara-se cada vez mais impossível, começou a sentir que a Índia lhe acenava e que seria tolice recusar o convite.
Não se sentia feliz em casa a partir do momento em que tivera idade suficiente para compreender que fora um grande e irremediável desapontamento para seu pai, pois ele queria um filho.
O General Nairn tinha apenas dois interesses na vida, o seu regimento e a perpetuação de seu nome.
Sua maior alegria consistia em abrir os livros nos quais podia seguir a história dos Nairn desde as épocas mais remotas e provar que todos eles tinham sido audazes guerreiros.
Brucena costumava pensar que ele havia sonhado desde criança com o dia em que teria um ou mais filhos a seu lado, combatendo junto a ele, acrescentando troféus das guerras em que tomariam parte àqueles que já pendiam das paredes do Castelo de Nairn.
–Sou um desapontamento para papai– dizia para si mesma, antes mesmo de completar nove anos.
Nos anos que se seguiram, ela começou a se dar conta da extensão de seu ressentimento em relação a ela, pois havia fraudado a maior de suas ambições.
Se não houvesse outras maneiras de relembrar o fato, ela o evocaria toda vez que ouvia seu nome ser pronunciado,
Bruce era um nome de família entre os Nairn e seu pai a batizara quase como se estivesse desafiando os deuses que lhe tinham aplicado um golpe baixo, não lhe dando o filho que ele desejara tão ardentemente.
Há dois anos, logo após a morte de sua mãe, seu pai, com pressa quase indecente, aproveitara a primeira oportunidade para voltar a se casar.
Escolhera uma jovem apenas três anos mais velha do que sua filha, mas que era muito diferente na aparência e que poderia ser considerada como uma “boa criadeira.”
Desajeitada, pesadona, sem a menor pretensão a uma bela aparência, Jean sentira-se orgulhosa e excitada por casar com o senhor do Castelo de Nairn, porém ficou perturbada com a aparência de sua enteada a partir do momento em que a viu.
Era inevitável que a beleza de Brucena, e a atração que os homens sentiam por ela não contassem pontos a seu favor junto a uma madrasta, sobretudo em se tratando de alguém tão jovem.
A tensão que sempre existira entre ela e seu pai acentuou-se rápida e violentamente, em tudo o que dizia respeito à sua nova esposa. Quando, há seis meses, Jean dera a luz àquele filho tão esperado, Brucena constatou que sua posição no Castelo tornara-se insustentável.
Seu pai a censurava por qualquer pretexto. Tentava ignorar o ódio estampado no olhar de sua madrasta e tinha certeza de que assim que o herdeiro mimado e adorado pudesse ver e pensar acabaria por odiá-la também.
–Preciso ir embora daqui– pensou dezenas de vezes, mas não tinha a menor ideia de para onde ir.
Seus parentes não somente não a queriam, como também se sentiriam muito constrangidos em lhe oferecer um lar sem serem solicitados a tal pelo General.
Apesar de Brucena nunca ter abordado o assunto com ele, achava que o orgulho de seu pai jamais lhe permitiria pedir ou aceitar favores de seus parentes, a maior parte dos quais achava aborrecidos, convidando-os raramente para ir ao Castelo.
Tudo o que Brucena possuía, eram trezentas libras, deixadas a ela em testamento por sua avó.
Recebera orientação no sentido de não gastá-las e sabia que seu pai considerava aquela quantia como parte de seu dote, o que, até certo ponto, o dispensava de maiores esforços, no sentido de completá-lo.
Compreendia agora que aquilo era uma dádiva dos deuses, que lhe permitiria pagar sua viagem à India.
Debateu durante muito tempo consigo mesma se deveria contar a seu pai o que pretendia fazer e decidiu pela negativa.
Sentia que, apesar de ele não gostar dela, apreciava no fundo ter alguém que pudesse repreender e com quem pudesse brigar.
Brucena se encontrava sempre por lá e o General podia despejar sua cólera sobre ela, sempre que alguma coisa o desagradava, e isto de um modo violento, que ele teria hesitado em empregar com qualquer outra pessoa.
Subitamente, pareceu a Brucena que tudo se harmonizava enquanto lhe passava um plano pela cabeça e ela não encontrou a menor dificuldade em pô-lo em prática.
Uma garota, sua única amiga depois que ela se tornara uma mocinha, convidou-a para fazer companhia a ela e a seus pais, em uma viagem a Edimburgo.
–Papai e mamãe vão estar muito ocupados– disse a jovem para Brucena–, papai tem de receber todas as pessoas importantes que vem do sul para a inspeção das tropas.
Acharam que eu me sentiria muito só e sugeriram que eu a convidasse para viajar connosco. Podemos visitar as lojas e quem sabe até mesmo sermos convidadas para ir a um baile! De qualquer modo, seria divertido viajarmos juntas.
–Muito divertido!– concordou Brucena.
Achou que seu pai criaria dificuldades, mas, para sua grande surpresa, ele declarou que achava a ideia muito boa, contanto que ela não se ausentasse por muito tempo.
A seu modo de ver, ele estabelecera aquela condição porque, em princípio, não lhe permitia nenhuma diversão, mas há um ano a recusa teria sido perentória. É que naquele momento ainda não lhe nascera o herdeiro, o filho que perpetuaria seu nome.
Ao despedir-se do pai e da madrasta com forçada cordialidade de ambas as partes, Brucena teve certeza de que eles, no fundo, sentiam-se alegres em livrar-se dela por algum tempo.
Achou que isto a eximia de quaisquer sentimentos de culpa, em relação aquilo que pretendia fazer.
Permaneceu durante uma semana em Edimburgo, comprando às escondidas tudo aquilo que achava que iria necessitar na Índia.
Era suficientemente inteligente para não ir para um novo país antes de aprender algo a respeito e fora muito difícil localizar em casa livros que lhe revelassem o que queria saber.
Havia, entretanto, numerosas informações sobre a Índia nas livrarias de Edimburgo e ela logo reuniu uma pequena biblioteca. Sabia que teria tempo de ler e reler aqueles livros durante a viagem.
Disse a seus amigos de Edimburgo que precisava voltar para casa, pois seu pai estava à sua espera e quando eles, com relutância, despediriam se dela, tomou um trem para Londres.
Era agora que a verdadeira aventura começava, pensou, enquanto viajava para o sul.
Por mais estranho que parecesse, Brucena tinha plena confiança em que saberia tomar conta de si mesma e que chegaria à Índia sem que nada de mal lhe acontecesse.
A Sra. Sleeman mandara-lhe instruções completas sobre as providências que deveriam ser tomadas em relação à viagem da babá, se acaso encontrasse uma que quisesse ir.
Ao ler todas aquelas páginas preenchidas pela caligrafia elegante de prima Amelie, Brucena pensou, com um sorriso, que suas recomendações mais se assemelhavam ao despacho de uma encomenda valiosa que não deveria ser danificada durante a viagem.
Certificou-se de que a companhia P.&O. tomaria todas as providências e que uma acompanhante para a jovem seria encontrada entre as passageiras que viajavam na segunda classe.
Haverá missionárias ou senhoras cristas pertencentes a alguma organização e que estarão viajando para Bombaim.
Prima Amelie escrevera:
“ Tenho certeza de que não aceitariam dinheiro por seu trabalho, pois o considerariam um ato de caridade. Você deve dar à pessoa que escolheu, um presente adequado, a fim de que ela recompense aquelas senhoras por sua bondade.”
No escritório da companhia P&O, Brucena relatou uma história um tanto diferente.
–Tenho de viajar até a Índia para ficar com meus parentes, mas infelizmente a senhora que deveria me acompanhar adoeceu. Os senhores não fariam a gentileza de encontrar alguém que pudesse tomar conta de mim durante a viagem?
O funcionário olhou para o rostinho bonito de Brucena e achou que era absolutamente necessária a presença de uma acompanhante para uma garota tão atraente.
Havia sempre oficiais de volta à pátria, de licença. Lidar com romances nascidos a bordo era uma das tarefas menos árduas com que um Comissário se via a braços.
Algumas vezes, no entanto, a situação tornava-se traumatizante quando os passageiros se envolviam demais e então surgiam dificuldades inesperadas…
Ele, entretanto, dispôs-se a colaborar no que pudesse, vindo portanto de encontro às expectativas da Sra. Sleeman.
–Acho que tenho precisamente a pessoa de que necessita, Srta. Nairn. O pastor Grant e sua mulher, estão de regresso a Bombaim e tenho certeza de que a Sra. Grant colaboraria de muito bom grado, quando eu lhe explicar as circunstâncias.
–Seria muita bondade de sua parte.
Notou pela expressão do funcionário que ele removeria céus e terras a fim de ajudá-la.
A Sra. Grant e o pastor revelaram-se pessoas extremamente prestimosas, porém muito aborrecidas… cercaram Brucena com uma aparência de respeitabilidade, mas não interferiram em sua vida e ela passou grande parte da viagem lendo.
Também apreciava os divertimentos a bordo e à noite transformava-se no centro de atração dos homens que queriam todos dançar com ela, para grande despeito das outras passageiras.
Era a primeira vez na vida que se sentia livre e sem ser continuamente censurada, como acontecia o tempo todo em casa.
Sentia uma grande alegria em poder exprimir uma opinião sem ser reprimida e uma alegria ainda maior em saber que, quaisquer que fossem os sentimentos de seu pai em relação ao que ela acabara de fazer, não havia nenhuma atitude que ele pudesse tomar.
Havia gasto uma quantia apreciável com as roupas e a passagem, mas ainda lhe sobrava algum dinheiro.
Agora que havia tomado a decisão e deixado sua casa, sabia, no fundo do coração, que jamais regressaria, e se os Sleeman não a quisessem, encontraria alguma outra casa onde pudesse trabalhar.
Havia telegrafado para eles antes da partida do navio, dizendo:
“Encontrei pessoa solicitada. Seguem detalhes.
Afetuosamente,
Brucena.”
Omitiu deliberadamente a data da chegada e deixou de explicar que ela própria iria, em lugar da babá que prima Amelie havia pedido.
Era urna precaução necessária, pois sentia que talvez eles não a quisessem e não poupariam esforços para enviá-la de volta para casa, assim que chegasse a Bombaim.
–Haverão de pensar que a babá chegará dentro de um mês e que na carta, que aliás não tenho a menor intenção de escrever, explicarei quem é ela e por que penso que é uma pessoa recomendável.
Voltou a refletir profundamente sobre o assunto e certificou-se de que quando chegasse disposta a fazer tudo aquilo que se esperava de uma babá, os Sleeman achariam extremamente difícil mandá-la embora.
–Vão ter de manter-me em sua companhia pelo menos durante alguns meses– pensou Brucena.
Ao mesmo tempo, a despeito de ter certeza de que seria uma babá muito mais competente do que aquelas rudes moças escocesas, não podia deixar de sentir que estava se impondo junto a pessoas que talvez não a quisessem.
O primo William tinha sido sempre muito gentil com ela.
Lembrava-se de que quando criança ele lhe inspirava um grande respeito e até mesmo um certo receio, pois lhe parecia um jovem muito inteligente.
Tinha cabelos alourados, olhos azuis e uma fronte ampla e quando ele os visitou pela segunda vez, anos mais tarde, tinha domínio do árabe, do persa e do urdu.
Nascera na Cornualha, a exemplo de sua mãe, e suas famílias tinham sido vizinhas durante anos a fio.
Devido a sua inteligência, por volta dos trinta anos foi dispensado de seu regimento, ingressando na administração pública. O General Nairn ficara impressionado com o fato de que ele havia se tornado um magistrado e um administrador regional na Índia Central muito antes dos homens de sua idade.
Há três anos, uma carta do Capitão Sleeman dirigida ao General comunicava que ele tinha sido nomeado pelo novo Governador-Geral, Lord William Bentick, para ocupar um cargo muito importante.
–É o homem certo para o posto certo– dissera o General sentenciosamente enquanto lia a carta durante o café da manha.
–E de que cargo se trata, papai?
–O título dele é superintendente para a supressão da seita Thuggee, mas você não entenderia se eu lhe dissesse do que se trata.
Ele se exprimia em tom perentório, não somente como um homem que acha que o intelecto de uma mulher não pode se expandir alem dos limites da cozinha ou do quarto das crianças, mas também porque não apreciava a curiosidade de Brucena, que a levava a formular perguntas que ele teria apreciado ouvir de um rapaz e não de uma menina.
–Já li a respeito dos Thugs , papai– replicou Brucena–, trata-se de uma sociedade secreta, que culta Kali e acha que é um dever sagrado estrangular as pessoas.
–Você não devia se informar a respeito dessas coisas– disse o General com profundo desagrado–, mas, dentro em breve, William controlará essa gente abominável.
–E como pretende agir?
–Deram-lhe cinquenta soldados da cavalaria e quarenta sipaios, pertencentes à infantaria. É mais do que suficiente. Gostaria eu mesmo de empreender esta tarefa, se fosse mais jovem.
Havia dezenas de perguntas que Brucena queria fazer a seu pai, mas ele saiu do quarto levando a carta de William Sleeman e ela sabia que sua curiosidade não seria satisfeita.
Assim sendo, tentou averiguar tudo o que pudesse a respeito dos Thuggee, mas sem grande sucesso. Mesmo em Edimburgo os livros que conseguiu comprar não lhe disseram muito mais do que aquilo que ela já sabia.
Enquanto o Major Huntley a encarava com um brilho de suspeita no olhar, ela disse:
–Meu primo pediu que arranjasse uma babá, mas como não consegui encontrar a pessoa de que eles necessitavam… resolvi me apresentar.
O Major Huntley sorriu.
–E sem lhes dar a oportunidade de rejeitá-la?
–Sim.
–Agora estou começando a entender. A senhorita não viajou desde a Inglaterra sem ter a companhia de alguém, não é mesmo?
–