Ficha técnica
Título original: These Things Hidden
Autora: Heather Gudenkauf
Copyright © 2011 - Heather Gudenkauf
Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa, exceto Brasil, reservados por Editrad, Edições e Traduções, Unipessoal, Lda.
Tradução: Manuel Brito
Revisão: Editrad
Paginação: Editrad
ISBN: 978-989-8275-05-9
Para Scott
Allison
Fico parada ao ver Devin Kineally caminhar na minha direção, vestida, como habitualmente, com o seu fato cinzento-advogado, com os sapatos de salto alto a bater contra o chão de tijoleira. Respiro fundo e pego no meu pequeno saco, cheio com as minhas poucas coisas.
A Devin está aqui para, no cumprimento de uma ordem do tribunal, me levar para a casa de transição em Linden Falls, onde irei viver, no mínimo, durante os próximos seis meses. Tenho de provar que sei tomar conta de mim, manter um emprego, manter-me longe de problemas. Após cinco anos, estou livre para sair de Cravenville. Espreito com esperança por cima do ombro de Devin, procurando pelos meus pais, apesar de saber que eles não estarão lá. “Olá, Allison”, diz Devin carinhosamente. “Estás pronta para sair daqui?”
“Sim, estou pronta”, respondo, aparentando mais confiança do que realmente sinto. Vou viver num local onde nunca estive antes, com pessoas que nunca conheci. Não tenho dinheiro, nem emprego, nem amigos, e a minha família abandonou-me, mas estou pronta. Tenho de estar.
A Devin procura a minha mão, aperta-a suavemente e olha-me diretamente nos olhos. “Vai correr tudo bem, ok?” Eu engulo em seco e aceno que sim com a cabeça. Pela primeira vez desde que fui condenada a dez anos em Cravenville, sinto lágrimas a queimar-me por trás dos olhos.
“Não estou a dizer que vai ser fácil”, diz Devin, esticando um braço e colocando-o à volta dos meus ombros. Eu destaco-me sobre ela. Ela é baixinha, fala com suavidade, mas é dura de roer, e isso é uma das muitas coisas que eu gosto nela. Ela sempre disse que iria fazer o melhor que pudesse por mim, e foi o que fez. Deixou claro desde o início que, embora fossem a minha mãe e o meu pai a pagar as contas, eu era a cliente dela. É a única pessoa que parece ser capaz de pôr os meus pais no lugar deles. Durante a nossa segunda reunião com Devin (a primeira fora quando eu estive no hospital), nós os quatro sentámo-nos à volta de uma mesa numa pequena sala de reuniões no estabelecimento de detenção. A minha mãe tentou assumir o controlo. Ela não conseguia aceitar a minha detenção, pensava que era tudo um enorme erro, queria que eu fosse a tribunal, declarasse inocência e enfrentasse as acusações. Queria que eu limpasse o nome da família Glenn.
“Ouça”, disse Devin à minha mãe, com uma voz calma e fria. "As provas contra a Allison são avassaladoras. Se formos a tribunal, o mais provável é que ela seja enviada para a prisão por muito, muito tempo, talvez para sempre.”
“As coisas não podem ter acontecido como dizem que aconteceram.” A frieza da minha mãe fazia frente à de Devin. “Temos de resolver isto como deve ser. A Allison vai voltar para casa, terminar o liceu e entrar na universidade.” O seu rosto maquilhado na perfeição agitava-se de raiva e as mãos tremiam-lhe.
O meu pai, que tinha metido uma rara tarde de dispensa do seu trabalho como consultor financeiro, levantou-se repentinamente, derrubando um copo com água. “Nós contratámo-la para tirar a Allison daqui”, gritou. “Faça o seu trabalho!”
Eu encolhi-me no meu assento e esperava que Devin fizesse o mesmo.
Mas ela não o fez. Com toda a calma, pousou as mãos abertas sobre a mesa, endireitou as costas, ergueu o queixo e falou. “O meu trabalho consiste em examinar todas as informações, analisar todas as opções e ajudar a Allison a escolher a melhor delas.”
“Só há uma opção.” O meu pai esticou um dedo grosso e comprido, detendo-se a milímetros do nariz de Devin. “A Allison tem de voltar para casa!”
“Richard”, disse a minha mãe, daquela forma imperturbável e irritante que é típico dela.
A Devin nem pestanejou. “Se não tirar esse dedo da minha frente, arrisca-se a ficar sem ele.”
O meu pai baixou lentamente a mão, com o peito a subir e descer rapidamente.
“O meu trabalho”, repetiu, olhando o meu pai bem nos olhos, "é analisar as provas e escolher a melhor estratégia de defesa. O delegado do Ministério Público pretende passar a Allison do tribunal de família e menores para o tribunal criminal e acusá-la de homicídio qualificado. Se formos a tribunal, ela vai acabar na prisão para o resto da vida. É garantido.”
O meu pai colocou o rosto nas mãos e começou a chorar. A minha mãe olhava para o regaço, franzindo o sobrolho com embaraço.
Quando me vi frente ao juiz − um homem exatamente igual ao meu professor de física −, apesar de a Devin me ter preparado para a audiência e me ter dito o que esperar, as únicas palavras que ouvi foram dez anos. Para mim, isso soava a uma eternidade. Ia perder o meu último ano de liceu, perder as épocas de voleibol, basquetebol, natação e futebol. Ia perder a minha bolsa de estudo para a Universidade do Iowa, nunca seria uma advogada. Lembro-me de ter olhado por cima do meu ombro para os meus pais, com lágrimas a escorrer-me pela cara. A minha irmã não foi à audiência.
“Mãe, por favor”, choraminguei, enquanto o oficial de justiça me levava. Ela limitou-se a olhar em frente, sem qualquer emoção no rosto. Os olhos do meu pai estavam fechados com força. Ele respirava de forma acelerada, procurando manter a compostura. Eles nem conseguiam olhar para mim. Eu teria vinte e sete anos quando saísse novamente em liberdade. Nesse momento, pensei se iriam ter saudades minhas ou apenas da rapariga que queriam que eu fosse. Como o meu caso teve originalmente início no tribunal de família e menores, o meu nome não pôde ser revelado à imprensa. No mesmo dia em que passei para o tribunal criminal, ocorreram grandes cheias mesmo a sul de Linden Falls. Centenas de casas e lojas foram destruídas. Quatro pessoas morreram. Graças aos contactos do meu pai e a um dia noticioso agitado, o meu nome nunca chegou aos jornais. Escusado será dizer que os meus pais ficaram em êxtase por o bom nome dos Glenn não ter sido completamente manchado.
Sigo a Devin enquanto me conduz até ao carro dela e, pela primeira vez em cinco anos, sinto todo o impacto de um sol não bloqueado por uma cerca com arame farpado. Estamos no final de agosto e o ar é pesado e quente. Inspiro profundamente e apercebo-me de que, afinal, o ar na prisão não cheira diferente do ar livre. “O que queres fazer primeiro?”, pergunta-me Devin. Eu penso bem antes de responder. Não sei o que devo sentir por estar a sair de Cravenville. Senti a falta de poder conduzir − eu tinha a carta há menos de um ano quando fui detida. Finalmente, vou ter alguma privacidade. Vou poder ir à casa de banho, tomar um duche, comer, sem dezenas de pessoas a olhar para mim. E, mesmo tendo de ficar numa casa de transição, para todos os efeitos serei livre.
É engraçado. Depois de cinco anos em Cravenville, seria de esperar que estivesse a arranhar a porta, desesperada para sair. Mas não é bem assim. Não fiz amigos aqui, não tenho memórias felizes, mas tenho algo que nunca, nunca, tive na minha vida: paz, o que é uma coisa rara e preciosa. Mas como posso sentir-me em paz depois do que fiz? Não sei, mas sinto-me.
Quando era mais nova, antes de ter estado na prisão, a minha cabeça nunca parava. Estava sempre vamos, vamos, vamos. As minhas notas eram perfeitas. Eu era uma atleta em cinco desportos: voleibol, basquetebol, atletismo, natação e futebol. Os meus amigos consideravam-se bonita, era popular e nunca me metia em problemas. Mas abaixo da superfície, sob a pele, parecia que o meu sangue fervia. Não conseguia estar quieta, nunca descansava. Acordava às seis todas as manhãs para dar uma corrida ou levantar pesos no ginásio da escola, depois tomava um duche rápido, comia a barra de cereais e a banana que tinha metido na mochila e ia para as aulas o dia todo. Depois das aulas, tinha treino ou algum jogo, a seguir ia para casa jantar com os meus pais e a Brynn, em seguida três ou quatro horas de trabalhos de casa e estudo. Finalmente, finalmente, por volta da meia noite, tentava adormecer. Mas a noite era o pior de tudo. Ficava deitada na cama, mas a minha mente não desacelerava. Não conseguia deixar de me preocupar com o que os meus pais pensavam de mim, com o que os outros pensavam de mim, com o próximo teste, o próximo jogo, a universidade, o meu futuro.
Havia uma coisa que eu fazia para me ajudar a acalmar à noite. Deitava-me de costas, apertava os cobertores bem junto a mim e imaginava que estava num pequeno barco. Depois, imaginava um lago tão grande que não conseguia ver as margens e o céu era como uma taça virada para baixo sobre mim, negro, sem lua e com montes de luzinhas de fadas cintilantes a servir de estrelas. Não havia vento, mas o meu barco levava-me através das águas escuras e tranquilas. O único som era o da água preguiçosamente a bater contra o lado do barco. Isso acalmava-me de algum modo e eu conseguia fechar os olhos e descansar. Como eu tinha apenas dezasseis anos quanto fui para a prisão, fiquei separada das reclusas normais até completar os dezoito. Depois de sobreviver às terríveis primeiras semanas, de repente percebi que já não precisava do meu barco e dormia muito bem.
A Devin está a olhar para mim, expectante, aguardando que lhe responda quanto à primeira coisa que quero fazer agora que estou livre. “Quero ver a minha mãe e o meu pai e a minha irmã”, disse-lhe, resistindo à vontade de chorar. “Quero ir para casa.”
Sinto-me mal por muito do que aconteceu, sobretudo pelo mal que as minhas ações causaram à minha irmã. Eu tentei pedir desculpa, tentei remediar as coisas, mas não foi suficiente. A Brynn continua a não querer nada comigo.
A Brynn tinha quinze anos quando fui detida e era − como dizer? − descomplicada. Pelo menos era o que eu pensava. A Brynn nunca se zangava, nunca. Era como se conseguisse guardar toda a raiva numa pequena caixa, até ela ficar tão cheia que não tinha para onde ir e transformava-se em tristeza.
Quando éramos crianças e brincávamos com as nossas bonecas, eu pegava na que tinha uma cara macia e limpa e cabelo suave e solto, deixando para a Brynn a boneca que tinha um bigode desenhado com caneta de tinta permanente, a que tinha cabelo enriçado por ter sido cortado com uma tesoura rombuda. A Brynn nunca parecia importar-se. Eu poderia ter tirado a boneca mesmo das mãos dela que a expressão na sua cara não teria mudado. Ela teria simplesmente pegado na boneca triste e com ar estragado e tê-la-ia embalado como se tivesse sido a primeira escolha. Eu costumava conseguir que a Brynn fizesse qualquer coisa por mim − levar o lixo para o contentor, aspirar quando era a minha vez.
Olhando para trás, havia sinais, pequenos traços da personalidade tolerante da Brynn que eram praticamente impossíveis de observar, mas que eu, quando olhava com atenção, conseguia perceber. E preferi ignorá-los.
Com os dedos, ela arrancava os finos e escuros pelos dos braços um por um até a pele ficar vermelha e em carne viva. Ela fazia isso sem reparar, sem perceber como parecia estranha. Quando os braços já não tinham pelos, começou com as sobrancelhas. Puxava e arrancava. A mim, parecia que ela queria tirar a própria pele. A nossa mãe reparou que as sobrancelhas da Brynn estavam a ficar cada vez mais finas e fez de tudo para que ela parasse. Sempre que a mão da Brynn se movia em direção à cara, a mão da nossa mãe voava e afastava-a com uma palmada. “Queres ter um ar estranho, Brynn?”, perguntava. “É isso que queres? Que todas as outras raparigas se riam de ti?”
A Brynn deixou de arrancar as sobrancelhas, mas encontrou outras formas de se autocastigar. Roía as unhas até ao sabugo, mordia o interior das bochechas, arranhava e escarafunchava as feridas e as crostas até elas inflamarem.
Nós somos o oposto uma da outra. Yin e yang. Enquanto eu sou alta e forte, a Brynn é mais pequena e delicada. Eu sou um girassol grande e robusto, sempre virado para o sol, enquanto a Brynn é um dente de leão, delgado e indistinto, com a cabeça oscilante a abanar ao sabor da brisa. Apesar de eu nunca lho ter dito, gostava mais dela do que de qualquer outra coisa ou pessoa no mundo. Eu tinha-a como certa, partia do princípio de que ela estaria sempre à minha disposição, tinha a certeza de que ela iria sempre admirar-me. Mas agora parece que já não existo para ela. Na verdade, não posso censurá-la.
Eu escrevi cartas e mais cartas à Brynn, mas ela nunca me respondeu. Isso foi a pior coisa da prisão. Agora que estou livre, posso ir ter com a Brynn, posso fazê-la ver-me, fazê-la ouvir-me. É tudo o que quero. Dez minutos com ela e tudo ficará novamente bem.
Já dentro do carro e à medida que nos afastamos de Cravenville, o meu estômago revolve-se de excitação e medo. Vejo Devin a hesitar. “Talvez devêssemos parar e comer alguma coisa primeiro, antes de te levar até à Gertrude House. Depois disso, podes ligar aos teus pais”, diz Devin.
Eu não quero ir para a casa de transição. Provavelmente serei, de todas lá, a que foi condenada pelo crime mais hediondo − mesmo uma prostituta heroinómana condenada por roubo à mão armada e homicídio teria mais compaixão do que eu terei. Para mim faz muito mais sentido ficar com os meus pais, na casa onde cresci, onde tenho algumas boas recordações. Ainda que lá tenha acontecido uma coisa terrível, é onde eu deveria estar, pelo menos por enquanto.
Mas consigo perceber a resposta no rosto de Devin. Os meus pais não me querem ver, não querem ter nada que ver comigo, não querem que eu volte para casa.
Brynn
Eu recebo as cartas da Allison. Às vezes gostava de lhe poder responder, ir visitá-la, ser uma irmã para ela. Mas há sempre algo que me impede. A avó diz-me que eu devia falar com a Allison, tentar perdoar-lhe. Mas não consigo. Parece que alguma coisa se partiu em mim naquela noite, há cinco anos. Houve um tempo em que eu teria dado tudo para ser uma irmã a sério para a Allison, para ser próxima dela, como éramos em crianças. Aos meus olhos, ela podia fazer qualquer coisa. Eu tinha muito orgulho nela, e não inveja, como as pessoas pensavam. Eu nunca quis ser a Allison; apenas queria ser eu mesma, que ninguém conseguia compreender, muito menos os meus pais.
A Allison era a pessoa mais fantástica que alguma vez conheci. Ela era esperta, atlética, popular e bonita. Todos a adoravam, ainda que ela não fosse muito simpática. Ela não era exatamente má para ninguém, só que não precisava de se esforçar para as pessoas gostarem dela. Elas simplesmente gostavam. Ela passava pela vida com total facilidade, e tudo o que eu podia fazer era ficar no meu canto a assistir.
Antes de a Allison se tornar na menina de ouro de Linden Falls, antes de os meus pais terem depositado nela todas as suas esperanças, antes de ela deixar de pegar na minha mão para me dizer que tudo ia ficar bem, a Allison e eu éramos inseparáveis. Éramos praticamente gémeas, apesar de não sermos nada parecidas. A Allison era − é − catorze meses mais velha que eu. Alta, com cabelo louro esbranquiçado comprido e liso. Tem olhos azuis-prateados, capazes de olhar através de nós ou de nos fazer sentir que somos a única pessoa que importa, dependendo do estado de espírito dela. Eu era baixa e simples, com cabelo rebelde da cor de uma folha de carvalho seca.
Mas houve um tempo em que parece que pensávamos com a mesma mente. Quando a Allison tinha cinco anos e eu quatro, pedimos aos nossos pais que nos deixassem partilhar um quarto, ainda que a nossa casa tivesse cinco quartos e nós tivéssemos podido escolher. Mas queríamos estar juntas. Quando a nossa mãe finalmente concordou, juntámos as nossas duas camas de solteiro iguais e pedimos ao nosso pai que pendurasse uma rede rosa pálida muito comprida sobre as camas, para fazermos de conta que era uma tenda. Lá dentro, passávamos horas a jogar à cama de gato ou a ver livros juntas.
As amigas da nossa mãe ficavam encantadas com o nosso relacionamento. "Não sei como consegues", diziam-lhe. "Como conseguiste que as tuas meninas se dessem tão bem uma com a outra?"
A nossa mãe sorria com orgulho. "Tem tudo que ver com o respeito que lhes ensinámos", explicava, da forma pretensiosa que lhe era caraterística. "Nós queremos que elas se tratem bem uma à outra e elas fazem-no. E sentimos que é importante que passemos muito tempo juntos enquanto família."
Quando a minha mãe falava assim, a Allison revirava os olhos e eu escondia um sorriso com a minha mão. É verdade que passávamos muito tempo juntos em família (isto é, todos no mesmo espaço), mas nunca conversávamos realmente uns com os outros.
A Allison tinha doze anos quando decidiu sair do nosso quarto para outro quarto só dela. Eu fiquei destroçada. "Porquê?", perguntei-lhe. "Porque queres um quarto só para ti?"
"Porque sim", respondeu a Allison, passando por mim com um monte de roupa nos braços.
"Estás maluca. O que é que eu fiz?", perguntei-lhe, enquanto a seguia até ao seu novo quarto, mesmo ao lado do que partilhávamos. Aquele que iria ser apenas meu.
“Nada, Brynn. Não fizeste nada. Eu só quero alguma privacidade", disse a Allison, enquanto arrumava as roupas no seu novo guarda-fatos. "Estou mesmo aqui ao lado. Não é propriamente como se nunca mais me fosses ver. Por amor de Deus, Brynn, não vais chorar, pois não?”
"Não estou a chorar", respondi, pestanejando para afastar as lágrimas.
"Então anda, ajuda-me a levar a minha cama", disse ela, agarrando-me pelo braço e conduzindo-me de volta ao nosso quarto. Ao meu quarto. No momento em que puxávamos e empurrávamos o colchão através da porta e para o corredor, eu sabia que as coisas jamais voltariam a ser iguais. Fiquei a ver enquanto ela organizava as medalhas académicas e desportivas, os troféus e as fitas no seu novo quarto, e percebi que já não éramos nada parecidas. A Allison estava cada vez mais envolvida com os seus amigos e com as atividades extracurriculares. Ela tinha sido convidada para integrar uma equipa de voleibol muito competitiva e que viajava muito. Passava praticamente todos os minutos livres a fazer exercício, a estudar ou a ler. E tudo o que eu queria era estar com a Allison.
Os meus pais não eram nada compreensivos comigo. "Brynn", dizia a minha mãe, “vê se cresces. É claro que a Allison quer um quarto só dela. Seria estranho se não o quisesse."
Eu sempre soube que era um pouco diferente dos outros miúdos, mas nunca pensei que era estranha até a minha mãe dizer isto. Comecei a olhar para a minha imagem no espelho para ver se conseguia ver a estranheza que os outros viam em mim. O meu cabelo castanho encaracolado, se não fosse dominado pela escova, saltava em rebeldia na minha cabeça. O que restava das minhas sobrancelhas formava duas pequenas e finas vírgulas sobre os meus olhos castanhos, dando-me constantemente uma expressão de surpresa. O meu nariz era médio − nem demasiado grande, nem demasiado pequeno. Sabia que um dia teria dentes muito bonitos, mas aos onze anos eles estavam presos num aparelho, sendo forçados a um alinhamento perfeito, como soldadinhos de costas direitas, alinhados para cumprir o seu dever. Com exceção das minhas sobrancelhas, eu não achava que parecesse muito estranha. Decidi que era o que havia dentro de mim que era tão esquisito. Jurei manter essa parte escondida. Mantinha-me na sombra, a observar, nunca dando qualquer opinião ou ideia. Não que alguém alguma vez mo pedisse. Com a Allison por perto, era fácil desaparecer para segundo plano.
Naquela primeira noite, enquanto dormia sozinha no meu quarto, chorei. O quarto parecia demasiado grande para uma só pessoa. Parecia despido, apenas com a minha cómoda e uma única pequena estante, com alguns animais de peluche espalhados aqui e ali. Chorei porque a irmã que eu adorava já não parecia querer-me por perto. Ela deixara-me ficar sem olhar para trás uma única vez.
Até ela ter dezasseis anos e, finalmente, precisar de mim outra vez.
Eu nem devia estar em casa naquela noite. Eu ia ao cinema com uns amigos − até a minha mãe descobrir que o Nathan Canfield também ia lá estar. Ela não podia admitir uma coisa dessas. Ele tinha sido apanhado a beber ou algo do género, e não era o tipo de amigo com que eu devia conviver, disse-me ela. Por isso, fiquei proibida de sair nessa noite.
Muitas vezes penso como a minha vida teria sido diferente − todas as nossas vidas teriam sido − se eu tivesse estado sentada num cinema qualquer naquela noite, a comer pipocas com o Nathan Canfield, em vez de estar em casa.
Não sei qual o aspeto da Allison agora. Imagino que a vida na prisão não ajude ninguém a manter uma boa aparência. Talvez as maçãs do rosto dela, em tempos salientes, estejam escondidas por montes de gordura, o cabelo longo e brilhante pode ter-se tornado encrespado e ter sido cortado bem curto. Não sei. Não vejo a Allison desde que a polícia a veio buscar.
Sinto saudades da minha irmã, a que me segurou na mão enquanto eu chorava durante todo o caminho para a sala de aula no primeiro dia de infantário, a que me ajudou a estudar as palavras difíceis até eu as saber de cor, a que costumava tentar ensinar-me a chutar uma bola de futebol. Sinto saudades dessa Allison. Da outra... nem de longe. Eu podia passar o resto da minha vida sem ver de novo a minha irmã e estaria muito bem assim. Eu vivi no inferno depois de ela ir para a cadeia. Agora eu finalmente sinto que tenho um lar, em casa da minha avó. Tenho os meus amigos, as minhas aulas, a minha avó, os meus animais, e isso chega-me.
Receio vir a descobrir que cinco anos na prisão mudaram a Allison. Ela foi sempre tão bonita e autoconfiante. E se ela já não for a mesma rapariga que conseguia enfrentar o Jimmy Warren, o rufia do bairro? E se ela já não for a mesma rapariga capaz de correr 12 quilómetros e depois fazer cem abdominais sem perder o fôlego?
Ou, pior ainda, e se ela for a mesma? E se ela não tiver mudado nada?
Allison
Acho que a minha irmã nem sabe que vou sair da prisão. Quando a Brynn terminou o secundário, estava eu na prisão há dois anos, ela saiu de casa e foi para New Amery, duas horas e meia a norte de Linden Falls, onde o nosso pai cresceu. Ela vive com a nossa avó. A última vez que soube dela, estava numa universidade pública a estudar alguma coisa chamada Ciências dos Animais de Companhia. A Brynn sempre adorou animais. Fico feliz que ela tenha escolhido um curso que a satisfaz. Se os meus pais tivessem levado a deles avante, ela teria ocupado a vaga que eu deixei livre e estaria a estudar direito.
A Brynn continua a não responder às minhas cartas ou a falar comigo ao telefone quando lhe ligo para casa da avó. Eu percebo. Eu percebo porque é que ela não quer nada comigo. Se eu estivesse no lugar dela, provavelmente teria feito a mesma coisa. Mas acho que não teria conseguido manter-me longe dela todo este tempo. Ela ignorou-e durante cinco longos anos. Eu sei que a tomava como certa, mas eu era apenas uma miúda. Por muito esperta que eu fosse, eu não sabia absolutamente nada. Sei os erros que cometi, só não sei como fazer para que a minha irmã se aproxime de mim, como fazer para que ela me perdoe.
Durante a viagem para Linden Falls, a Devin e eu não falámos muito, mas tudo bem. A Devin não era muito mais velha do que eu quando os meus pais a contrataram para me representar. Acabada de sair da faculdade de direito, veio para Linden Falls porque o namorado, que conhecera na universidade, tinha crescido lá e eles pretendiam casar e abrir um escritório de advocacia juntos. Acabaram por nunca casar. Ele partiu, ela ficou. Se não fosse a Devin, eu poderia ter ficado na cadeia muito, muito mais tempo. Devo-lhe muito.
"Vais poder começar uma vida totalmente nova, Allison", diz-me Devin ao entrar na autoestrada que atravessa o rio Druid para me levar para Linden Falls. Eu aceno que sim, mas não digo nada. Eu quero sentir-me entusiasmada, mas sinto sobretudo medo. A entrada na pequena cidade onde nasci e cresci faz-me sentir tonta, e aperto as mãos uma contra a outra para impedir que tremam. Ondas de memórias atravessam-me quando passamos pela igreja onde íamos à missa todos os domingos, pela escola primária e pela escola secundária, onde nunca cheguei a terminar os estudos. "Estás bem?", pergunta-me Devin novamente.
"Não sei", respondo com toda a honestidade, e encosto a cabeça ao vidro frio da janela. Prosseguimos em silêncio, passamos pela Universidade de St. Anne, onde conheci o Christopher, pela rua onde deveríamos virar se fossemos para a casa onde cresci, pelo complexo desportivo onde a minha equipa venceu o campeonato regional três anos consecutivos. "Pare!", disse de repente. "Encoste aqui, por favor." A Devin vira em direção ao complexo desportivo e estaciona ao lado de um campo onde algumas adolescentes estão a dar uns toques com uma bola de futebol. Saio do carro e fico alguns minutos a observar junto à linha lateral. As raparigas estão completamente envolvidas no jogo. As caras estão vermelhas do calor e têm os rabos de cavalo ensopados em suor.
"Posso jogar?", pergunto. A minha voz sai baixinho, tímida. Nem parece a minha voz. As raparigas nem dão por mim e continuam a jogar. "Posso jogar?", pergunto outra vez, agora mais alto, e uma rapariga baixa e de constituição sólida, com o cabelo castanho puxado para trás por uma fita, para e olha-me de alto a baixo, com ceticismo. "Só um minuto", digo.
"Tudo bem", responde ela, e continua a correr atrás da bola.
Eu entro no campo com cuidado. A relva é de um verde-esmeralda profundo e eu baixo-me para a tocar. É macia e ainda está húmida da chuvada que caiu há pouco. Começo a correr, primeiro devagar, depois a um ritmo mais acelerado. Eu tentei manter-me em forma enquanto estive na prisão, correndo várias voltas dentro do pátio murado e fazendo elevações de braços e abdominais na minha cela. Mas o campo de futebol mede, pelo menos, noventa metros de comprimento, por isso rapidamente fico esgotada e tenho de parar. Dobro-me para a frente, as mãos sobre os joelhos, com os músculos já a doer.
As raparigas vêm na minha direção, com a pele bronzeada e de aspeto saudável, em comparação com a minha pele branca, que tão pouco tem visto o sol. Alguém me passa a bola e tudo volta à minha cabeça − o toque familiar da bola contra os meus pés, o instinto de saber para onde me movimentar. Fujo por entre as raparigas, driblando e passando a bola para a frente. Por um minuto consigo esquecer que sou uma ex-reclusa de vinte e um anos, cuja vida já a ultrapassou. Uma rapariga entrega-me a bola e eu passo por entre a multidão de jogadoras e consigo sair a jogar. Sem pitões, escorrego ligeiramente com as minhas sapatilhas baratas, mas rapidamente recupero o equilíbrio. A defesa central está a aproximar-se e eu finto-a pela esquerda, deixando-a para trás e fazendo um passe lateral para a rapariga com a fita no cabelo. Ela atira a bola por cima do ombro da guarda-redes e para dentro da baliza, e as raparigas explodem em festejos. Por um minuto consigo imaginar que tenho treze anos e estou a jogar um jogo amigável com os meus amigos, e sorrio e rio, limpando o suor da minha testa.
Depois olho e vejo Devin pacientemente à minha espera junto à linha lateral, com uma expressão divertida no rosto. Devo ter um aspeto tolo, uma mulher crescida com calças caqui e um polo, a jogar futebol com um bando de miúdas.
"Tens talento", diz-me Devin, enquanto caminhamos de regresso ao carro.
"Pois, e isso serve-me de muito agora", respondo envergonhada, feliz por o meu rosto já estar mais vermelho do exercício.
"Nunca se sabe", replica Devin. "Vamos lá, ainda temos um pouco de tempo antes da hora a que devemos chegar à Gertrude House. Vamos comer alguma coisa."
Quando Devin para à porta da casa de transição onde irei passar os meus próximos seis meses, começa novamente a chover. É uma enorme casa de estilo vitoriano, com a tinta branca a sair, persianas pretas e um alpendre com balaústres brancos. "Não pensei que fosse tão grande", digo, olhando para a casa. Seria assustadora, não fosse o jardim da frente tão bonito e bem arranjado.
"Tem seis quartos, com duas ou três mulheres em cada um", explica Devin. “Vais gostar da Olene. Ela criou a Gertrude House há cerca de quinze anos. A filha dela morreu após ter saído da prisão. A Olene sentiu que, se a Trudy tivesse tido um lugar para onde ir depois de ter saído da prisão, um lugar indicado pelo tribunal, ainda estaria viva hoje. Por isso criou a Gertrude House, como forma de tentar educar as mulheres sobre como viver com sucesso depois da prisão."
"Como é que ela morreu?", pergunto, quando saímos do carro e começamos a caminhar para a porta da frente.
“A Trudy recusou-se a voltar para casa, para junto de mãe. Em vez disso, foi viver com o namorado, o responsável por viciá-la em drogas. Morreu com uma overdose três dias depois de sair da prisão. A Olene encontrou-a.”
Não sei o que dizer a este respeito, por isso abrigamo-nos da chuva debaixo do alpendre em silêncio. A Devin bate à porta e uma mulher com cerca de sessenta anos, com um vestido de ganga sem forma, vem abrir. É magra, com cabelo prateado muito curto e uma pele bronzeada, cor de couro. Parece uma cenoura meio murcha por ter sido deixada muito tempo no frigorífico.
“Devin!”, exclama, dando-lhe um abraço apertado, com as pulseiras de prata a tilintar umas contra as outras nos seus pulsos magros.
“Olá, Olene”, responde Devin com uma gargalhada. "Também tenho muito gosto em voltar a vê-la."
“Tu deves ser a Allison.” A Olene liberta Devin e toma a minha mão dentro da dela. Está quente e segura a minha com firmeza. "Tenho muito gosto em conhecer-te", diz, com uma voz baixa e seca. Uma voz de fumadora. “Bem-vinda à Gertrude House.” Os seus olhos verdes nunca abandonam o meu rosto.
"Prazer em conhecê-la", respondo, procurando olhá-la nos olhos.
"Bem, entra. Vou mostrar-te a casa toda." A Olene entra para o hall. Olho para Devin, com um assomo de pânico a crescer-me no peito, e ela faz-me um aceno encorajador.
“Tenho de voltar para o meu escritório, Allison. Ligo-te amanhã, ok?” Ela lê a preocupação no meu rosto e aproxima-se para me abraçar. Apesar de eu manter o meu corpo rígido e tenso, sinto-me grata pelo toque. “Adeus, Olene, e obrigada”, despede-se Devin. A mim, diz: "Aguenta-te firme. Vai tudo correr bem. Liga-me se precisares de alguma coisa."
"Eu estou bem", respondo, mais para me tranquilizar a mim mesma do que a Devin. "Vou ficar bem." Vejo-a descer rapidamente os degraus do alpendre e regressar ao carro, partindo para continuar a viver a vida. Esta poderia ter sido eu, penso para comigo. Eu poderia estar a usar o fato cinzento, a conduzir clientes para um lado e para outro no meu carrão. Em vez disso, tudo o que possuo cabe numa mochila e vou viver numa casa com pessoas a quem, na minha outra vida, nem sequer daria os bons dias. Viro-me de novo para Olene. Ela está a observar-me com atenção, com um olhar no rosto que não consigo bem decifrar. Pena? Tristeza? A lembrar-se da filha? Não sei.
Ela limpa a garganta, com um som áspero e húmido, e prossegue com a volta pela casa. "Neste momento temos dez residentes connosco − onze, agora que te juntaste a nós. Vais partilhar um quarto com a Bea. É uma mulher simpática. Isto costumava ser a biblioteca.” A Olene acena com a cabeça na direção de uma sala grande e quadrada à esquerda. “Agora usamo-la como a nossa sala para reuniões. Juntamo-nos aqui todas as tardes, pelas sete horas. Esta é a sala de jantar. O jantar é às seis em ponto. Quanto ao pequeno-almoço e almoço, estás por tua conta. A cozinha é mesmo por ali − levo-te lá depois de acabarmos a visita. Como na maioria das casas, a cozinha é o coração da Gertrude House.”
A Olene começa a andar mais depressa agora e tenho de concentrar-me em acompanhá-la, em vez de parar e ver cada espaço individualmente. Depois da minha cela na prisão, a Gertrude House é um ataque avassalador aos meus sentidos. Há paredes pintadas com cores vivas, quadros e fotografias, móveis e bibelôs por todo o lado. Há música a tocar num recanto afastado da casa e acho que ouço um bebé a chorar. Perante o meu olhar interrogativo, a Olene explica: "Os familiares podem vir cá de visita. O que estás a ouvir a chorar é o bebé da Kasey. A Kasey vai deixar-nos na próxima semana. Vai voltar para casa, para junto do marido e dos filhos.”
“Porque é que ela está aqui?”, pergunto, à medida que Olene me leva para aquilo que parece ser uma sala de estar.
“Na Gertrude House, não damos muita atenção aos crimes umas das outras. Procuramos concentrar a atenção no que podemos fazer para melhorar as vidas de todos e tentamos ajudar os outros residentes a alcançar os seus objetivos. Mesmo assim”, reconhece Olene com um abanar da cabeça, "as conversas circulam depressa por aqui e as pessoas ficam a conhecer-se umas às outras bastante bem.”
De repente sinto-me muito cansada e interrogo-me se Olene irá demorar muito a levar-me para o meu quarto. Só quero meter-me dentro dos lençóis e dormir. Passamos por uma mulher baixa e pesada, com cabelo preto pela cintura e vários piercings no nariz e no lábio. “Allison, esta é a Tabatha. Tabatha, esta é a Allison Glenn. Ela vai ficar no quarto da Bea.”
“Eu sei quem tu és.” A Tabatha sorri jocosamente, atirando o cabelo por cima do ombro enquanto pega num enorme balde cheio de produtos de limpeza. Nunca pensei que conseguisse manter em segredo o motivo pelo qual fui presa, mas preferia ser conhecida como a rapariga que roubava automóveis ou snifava cocaína, ou mesmo a que matou o marido que abusava dela, em vez de ser quem realmente sou.
"Prazer em conhecê-la", digo, e a Tabatha dá uma rosnadela tão alta que fico à espera que um dos piercings do nariz voe e me acerte no peito. Lembro-me da minha amiga Katie e quase rio. Quando tínhamos catorze anos, fez um piercing no umbigo sem que os pais soubessem. Quando ela mo mostrou, já estava infetado e cheio de pus. Tentei ajudá-la, mas ela tinha muitas cócegas e começava a contorcer-se de cada vez que me aproximava da sua barriga. A Brynn entrou quando estava a ajudá-la a limpar a ferida e nós não conseguíamos parar de rir. De cada vez que a Brynn e eu víamos alguém com piercings fora do comum, começávamos com risinhos.
Decidir ignorar a Tabatha e virar-me para Olene. "Podemos usar o telefone aqui? Posso ligar à minha irmã?"
Brynn
Ouço o telefone a tocar e a minha avó grita: "Eu atendo!" Um minuto depois, ela vem à cozinha, onde estou a preparar uma sanduíche. Basta-me olhar para o rosto da minha avó para saber que tem alguma coisa que ver com a Allison. "É a tua irmã", diz-me. Nesse momento já estou a abanar a cabeça para a frente e para trás. “Brynn, acho que devias falar com ela.”
A minha avó está a tentar parecer austera, mas sei que nunca vai obrigar-me a falar com ela. "Não", digo, e volto à tarefa de espalhar manteiga de amendoim no meu pão.
"Vais ter de falar com ela mais cedo ou mais tarde", diz-me, pacientemente. "Acho que ficarás a sentir-te melhor."
"Não quero falar com ela", respondo com firmeza. Eu não consigo zangar-me com a minha avó. Sei que ela se sente encurralada. Ela só quer o que for melhor para nós as duas.
"Brynn, se não falares com ela ao telefone, não responderes às cartas que te mandou, a Allison vai encontrar outra forma."
De repente, tudo fica claro. Consigo vê-lo nos seus velhos e gentis olhos azuis. A Allison vai sair da prisão. Tanto quanto sei, até pode já ter saído.
As minhas mãos começam a tremer e um pedaço de manteiga de amendoim cai da minha faca para o chão. Tenho medo que ela apareça aqui de surpresa. Eu vou estar no jardim das traseiras a treinar o meu cão Milo, uma mistura de pastor alemão com chow, a passar por uma guloseima sem a comer, de repente vou virar-me e ela lá estará, a olhar para mim. À espera das palavras que sei que não virão. O que é que eu posso ter para lhe dizer? O que mais terá ela para me dizer que não me tenha já dito nas cartas que me mandou? De quantas formas é possível alguém dizer que lamenta?
Baixo-me para limpar a manteiga de amendoim com um toalhete de papel, mas o Milo apanha-a antes de mim. "Eu não consigo falar com ela."
A minha avó cerra os lábios e abana a cabeça, derrotada. "Ok, vou dizer-lhe. Mas, Brynn, vais ter de a enfrentar algum dia.” Não respondo, mas sigo-a até à sala de estar e vejo-a pegar no telefone.
“Allison?” A voz da minha avó treme de emoção. “A Brynn não pode vir ao telefone.” Faz-se uma pausa enquanto ela ouve. "Ela está bem... muito bem..."
Não aguento mais; vou a correr de volta para a cozinha, agarro na minha sanduíche e saio pela porta das traseiras, para o meu carro. É muito mais fácil lidar com os animais do que com as pessoas. Aprendi isso há muito tempo. Os meus pais nunca me deixaram ter um animal de estimação − por causa do pelo, por causa da confusão, por falta de tempo. Sempre que trazia para casa animais vadios, tinha esperança, rezava para que eles me deixassem ficar com eles. Só uma vez. Eu tentava embelezá-los − amaciava o pelo emaranhado com um pente velho, borrifava-os com desodorizante, escovava-lhes os dentes com uma escova velha. Rafeiros velhotes e cheios de artrite... gatos zarolhos com orelhas cortadas. Depois desfilava com eles à frente dos meus pais. Veem como se porta bem? Veem como o pelo está suave? Veem como é sossegado, simpático, esperto? Percebem como me sinto só? Percebem? Mas não. Nada de animais de estimação. O meu pai levava-me a entregar o animal na sociedade protetora e, todas as vezes, eu chorava e agarrava-me com tanta força ao animal que ele arranhava e lutava para fugir de mim.
A minha avó deixa-me ter animais em casa dela, embora os tenha limitado a um máximo de cinco. Temos dois gatos, um mainá, um porquinho-da-índia e o Milo. A avó diz que tudo tem um limite e que não quer tornar-se numa daquelas velhotas malucas que vivem rodeadas de gatos e obrigam os vizinhos a chamar o canil.
Estou a treinar o Milo para ser um cão de terapia. Ele está a aprender a ficar quieto sentado ou deitado durante trinta segundos e a vir quando for chamado. A avó está a ajudar-me a ensiná-lo a manter-se quieto quando duas pessoas estão a discutir. Nós inventamos discussões patetas sobre quem tem de ir levar o lixo ou fazer o jantar. Acho que o Milo sabe que não estamos a discutir a sério; ele limita-se a bocejar, deita-se e olha para uma e para outra até que começamos as duas a rir. Quando terminarmos o treino, espero poder levar o Milo a lares de idosos e hospitais. É um facto comprovado que os animais conseguem ajudar a aliviar a dor e a ansiedade das pessoas doentes e idosas. Um dia quero abrir o meu próprio negócio, a treinar animais de estimação para serem usados com fins terapêuticos. Pela primeira vez na minha vida tenho um plano. E um bom, ainda por cima. Não quero que nada nem ninguém me distraia do meu objetivo. Não os meus pais e muito menos a minha irmã.
Se ao menos a Allison tivesse feito o que sempre fazia (tomar uma boa decisão) as coisas poderiam ter sido muito diferentes. Ela não teria tido de ir embora. Os nossos pais teriam sido felizes e eu poderia ter-me limitado a ficar em segundo plano, onde pertenço. Mas ela não tomou uma boa decisão. Ela fez asneira da grossa, e depois deixou-me naquela casa sozinha com os meus pais.
Eu não era a rapariga perfeita que ela era, e nunca o serei. Mas eles tentaram que eu fosse. Durante todo o liceu, era só pressão, pressão, pressão. Naquela casa eu não conseguia pensar, não conseguia tomar uma decisão, não conseguia respirar. Tentei ir para a Universidade de St. Anne, tentei acompanhar as aulas, tentei fazer amigos, mas sempre que entrava numa sala de aula era invadida por uma onda de pânico. Começava sempre nos meus ouvidos, um estranho zumbido que descia para a garganta e saía pelas pontas dos dedos, que ficavam dormentes. Sentia o peito apertado, não conseguia respirar. Os professores e os outros alunos olhavam para mim espantados e eu olhava-os de frente até parecer que eles se derretiam diante dos meus olhos. As orelhas deles deslizavam pelas caras abaixo e os lábios escorriam pelos queixos, até não serem mais do que massas de carne disformes.
Só quando engoli um frasco de comprimidos para dormir que encontrei no armário dos remédios da minha mãe é que os meus pais finalmente decidiram deixar-me em paz. Com muito gosto mandaram-me para casa da minha avó, do outro lado do rio e para lá do bosque, com uma mala e uma receita para um antidepressivo.
Aqui tudo me parece bem. A avó convenceu-me a ir a um médico: eu tomei os medicamentos e voltei a ficar em bom estado. Agora estou bem. Mas não vou falar com a Allison. Eu não posso falar com ela. É melhor assim. Melhor para ela e melhor para mim.
Pela primeira vez na vida, a Allison teve o que merecia.
Allison
Pouso o telefone no descanso, consciente de que Olene está a observar-me cuidadosamente, com os seus olhos rápidos, de águia. Depois de me instalar e encontrar um emprego, uma das primeiras coisas que vou comprar é um telemóvel, para poder ter um pouco de privacidade quando quiser telefonar. Tenho a certeza de que os meus pais me comprariam um telemóvel, mas não quero que o meu primeiro encontro com eles seja por causa de dinheiro. Além disso, quero mostrar-lhes que vou ficar bem, que sei tomar conta de mim mesma. Será que estão a pensar em mim neste momento? Secretamente, esperava que eles estivessem estacionados à porta da Gertrude House para me darem as boas-vindas quando eu cheguei.
A Olene deve ser vidente, porque me diz: "Muitos dos residentes têm telemóveis, mas temos uma regra aqui que diz que os telemóveis têm de estar desligados durante a realização das tarefas ou quando estamos nas sessões de grupo. Queremos respeitar a necessidade de sossego dos outros."
A Olene retoma a visita onde tinha parado. Leva-me através da cozinha, onde iremos revezar-nos a fazer o jantar, e para uma sala octogonal com um teto que passa acima do segundo andar. É aqui que os residentes veem televisão. Uma mulher de cabelo grisalho com uniforme de criada está a passar pelas brasas num sofá e uma mulher pequena e jovem, de pele escura, segura uma criança nos braços e canta-lhe suavemente em espanhol. Na televisão está a dar uma telenovela, sem som.
“Esta é a Flora e o filho dela, o Manalo”, sussurra Olene. “E aquela é a Martha.” A Olene acena na direção da mulher ensonada. Os olhos de Flora cerram-se até serem apenas uns estreitos rasgos e aperta mais o Manalo contra si. O pequeno acena-nos com a mãozinha gorducha e sorri.
"Prazer em conhecer-vos", digo.
A Flora diz qualquer coisa a Olene rapidamente e em espanhol, com um tom duro e hostil, e Olene responde-lhe, igualmente em espanhol. Sinto que Olene vai ter de falar muito para acalmar as outras residentes da Gertrude House a meu respeito.
"Vamos lá acima para te mostrar o quarto", diz Olene, levando-me pelo cotovelo e afastando-me da sala da televisão na direção da escada em espiral que leva aos quartos. Consigo sentir os olhos de Flora nas minhas costas enquanto sigo Olene pelas escadas acima. Só cá estou há vinte minutos e já parece que toda a gente sabe quem sou e o que fiz. Sei que não devia deixar que isso me afete muito, tive de lidar com a mesma situação na prisão, mas isto parece de algum modo diferente.
"Espera-se que toda a gente tenha um papel ativo na manutenção da casa", diz Olene, e eu consigo ver que isso é verdade. Não se vê um grão de pó em nenhum sítio e o chão brilha. A Olene bate levemente numa porta fechada antes de a abrir e mostrar um pequeno quarto com dois beliches e duas pequenas cómodas. As camas estão feitas com edredões às flores azuis e brancas e almofadas altas e fofas. Sinto-me de novo exausta e só quero deitar-me. As paredes estão pintadas de azul celeste e as janelas têm cortinas brancas e frescas. É um quarto muito sossegado.
"A tua companheira de quarto, a Bea, está a trabalhar agora. Deve vir para casa dentro de algumas horas. Podes desfazer as malas, põe-te à vontade e eu volto daqui a pouco para podermos terminar a visita." Olho para os beliches e hesito, a pensar qual das duas é a minha. A tua cama é a de baixo", diz Olene. A Bea gosta de dormir no beliche de cima − diz que o de baixo a faz sentir-se claustrofóbica.
A Olene toca-me no braço ao preparar-se para sair do quarto. “Olene”, chamo-a. Ela vira-se para mim e eu reparo como o seu rosto gasto é gentil. “Obrigada.”
"De nada", responde, sorrindo. "Descansa um pouco e chama-me se precisares de alguma coisa."
Os meus poucos pertences cabem numa gaveta do meu móvel e ainda sobra espaço. De uma certa forma, a Gertrude House recorda-me do campo de férias onde estive quando tinha onze anos. Vou partilhar um quarto com beliches e, pelo que me diz Olene, seguimos um horário bastante rígido que é afixado na principal área comum. Desde que acordamos, às cinco e meia, até se apagarem as luzes, às dez e meia, o nosso dia é preenchido com tarefas e sessões de grupo sobre todos os assuntos, desde a gestão das finanças até ao controlo da raiva e como sair-se bem nas entrevistas.
Sento-me no beliche de baixo e salto um pouco. As molas são firmes, mas flexíveis. Isto parece uma cama a sério, nada como o colchão duro e institucional de Cravenville, com lençóis ásperos, que arranhavam e cheiravam a lexívia. Levanto uma almofada fofa e enterro nela o meu nariz. Cheira a lavanda e eu sinto os meus olhos a encherem-se de lágrimas. Talvez aqui não seja assim tão mau. Não pode ser pior do que na prisão. Talvez as outras raparigas aprendam a gostar de mim. Talvez os meus pais ignorem o que os vizinhos pensam e me recebam novamente como filha deles. E talvez, talvez, a Brynn me perdoe.
Inspiro fundo outra vez, afasto a almofada da minha cara e pouso-a − e é nesse momento que a vejo. Os seus olhos vazios olham-me nos olhos e a cara de plástico sujo está congelada num meio sorriso. Pego na boneca. É velha e está estragada, parece que veio do contentor do lixo. No peito nu da boneca está uma palavra, escrita com marcador preto de tinta permanente, uma palavra que − compreendo-o agora − irá perseguir-me por todo o lado, onde quer que eu vá. Assassina.