Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.
Núñez de Balboa, 56
28001 Madrid
© 1992 Stephanie Laurens. Todos os direitos reservados.
PRESO PELOS SEUS BEIJOS, N.º 66 - Setembro 2012
Título original: Tangled Reins
Publicada originalmente por Harlequin Enterprises, Ltd.
Publicado em portugués em 2004.
Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados.
Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.
Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.
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As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.
I.S.B.N.: 978-84-687-0641-2
Editor responsável: Luis Pugni
Conversão ebook: MT Color & Diseño
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Dorothea fechou os olhos, saboreando a amora madura. Sem dúvida, o maior deleite do Verão. Só então contemplou a enorme amoreira, cujos galhos se apresentavam repletos de fruta. Decidida a apanhar o suficiente para fazer uma torta de amoras e ainda vários potes de geleia, colocou a cesta no chão e começou a colheita. Seleccionando as amoras mais tenras e maduras, apanhava-as e atirava-as para a cesta com rapidez. Enquanto as suas mãos se movimentavam, a mente divagava. Como era infantil a sua irmã, mesmo aos dezasseis anos! Fora por sugestão dela que Dorothea se embrenhara no bosque da propriedade vizinha. Cecily queria comer torta de amoras como sobremesa ao jantar e, com os olhos castanhos brilhantes e cachos dourados agitando-se de entusiasmo, pedira à irmã mais velha que apanhasse as frutas quando saísse para o campo, a fim de colher ervas.
Dorothea suspirou, perguntando-se se Londres acabaria com aquela espontaneidade fascinante. Mais importante, tinha esperança de que a tão planeada viagem à capital pudesse libertar Cecily daquela monotonia existencial. Seis meses haviam passado desde que a sua mãe Cynthia, Lady Darent, sucumbira a uma forte gripe, deixando as duas filhas sob a guarda do seu primo Herbert, Lorde Darent. Cinco meses intermináveis na mansão Darent, em Northamptonshire, à espera que os advogados fizessem o inventário, convenceram Dorothea de que ali em vez de ajuda, só encontrariam entraves. Herbert era, sem dúvida, o mais enfadonho dos homens; Marjorie, a sua perturbada, tediosa e deselegante esposa, uma perfeita inutilidade! Se a sua avó não tivesse aparecido como a providencial fada-madrinha, o melhor era nem pensar no que teria sido das duas irmãs!
Subitamente incapaz de se mexer, deitou o olhar na bainha do vestido, presa por um galho espinhoso. Felizmente, usava o seu velho vestido de fustão. Apesar dos sermões da tia Agnes sobre as roupas de luto, Dorothea insistia em usar o vestido verde e fora de moda, para as suas jornadas campestres. A saia, desprovida dos inúmeros saiotes, praticamente aderia às suas formas esguias. Imperturbável, examinou os pequenos rasgos produzidos pelos espinhos.
Quando se voltou a erguer, o calor do sol pareceu-lhe ainda mais forte. Obedecendo a um impulso, soltou os cabelos castanhos-avermelhados, que alcançavam a sua cintura. Sentindo-se mais fresca, voltou a colher amoras.
De uma coisa estava certa: não teria surpresas em Londres. Nem todos os esforços da sua avó para lhe arranjar um marido seriam suficientes! Os enormes olhos, verdes como esmeraldas, eram a sua melhor e única verdadeira qualidade. O resto da sua aparência estava irremediavelmente fora de moda: os seus cabelos eram escuros em vez de loiros, os preferidos do momento; a tez pálida nem se aproximava da tonalidade rosada que cobria as faces de Cecily; o nariz era bem feito, mas a boca era grande demais; e os lábios, excessivamente carnudos, também destoavam, porque a moda exaltava as boquinhas pequenas e delicadas. Além de tudo isso, Dorothea era demasiado alta e esguia perante a forte preferência por curvas voluptuosas. E, para coroar a sua certeza, tinha vinte e dois anos e gosto pela independência! Definitivamente, não era o tipo que atraía a atenção dos jovens cavalheiros da época. Rindo consigo mesma, colocou mais uma amora madura entre os lábios generosos.
Ser relegada ao plano das velhas solteironas não a incomodava. Tinha dinheiro suficiente para viver confortavelmente para o resto da sua vida e ansiava pelos anos que passaria em Grange. Recebera atenção considerável dos cavalheiros da região, mas nenhum deles havia despertado nela o desejo de trocar a sua existência independente pela respeitável condição do matrimónio. Enquanto as outras raparigas arquitectavam planos e armadilhas, a fim de conseguir colocar no dedo o tão importante anel, Dorothea não via motivos para as imitar. Somente o amor, aquele sentimento estranho que ainda não tocara o seu coração, seria capaz de a fazer mudar de ideias. Na verdade, não conseguia imaginar o cavalheiro, cuja atracção a seduziria a mudar de vida. Fazia muito tempo que era dona de si, livre para fazer o que quisesse; estava sempre ocupada com actividades que lhe agradavam; sentia-se segura e feliz.
Cecily era muito diferente. Entusiasmada pela vida, ansiava por um estilo muito mais brilhante. Embora muito jovem, tinha um enorme interesse pelas pessoas, e os horizontes de Grange eram demasiado estreitos para ela. Jovem, meiga e dona de uma beleza fiel à moda da época, certamente encontraria um jovem elegante e de boa posição, capaz de dar tudo o que o seu coração desejava. E era essa a principal razão daquela viagem a Londres.
Dorothea observou, durante um largo momento, uma amora particularmente grande, quase fora do seu alcance. Com um sorriso repentino, estendeu a mão na direcção do tentador fruto. O sorriso transformou-se em choque e surpresa, quando um braço forte a enlaçou pela cintura. Antes que pudesse reagir, viu-se apertada num abraço ardente. Teve um rápido vislumbre de um rosto moreno e no instante seguinte, foi beijada com intensa paixão.
Por um momento, a sua mente paralisou-se. Só então, a consciência retornou. Ora, não era assim tão ingénua! Sabia muito bem que a ausência de reacção a libertaria mais depressa do que qualquer outro tipo de atitude. Sendo ela uma mulher prática, mostrou indiferença.
Infelizmente, equivocara-se quanto à sua avaliação da ameaça. Apesar das claras instruções recebidas, o seu corpo recusou-se a cooperar. Horrorizada, Dorothea sentiu uma súbita onda de calor varrer-lhe as entranhas, seguida de um impulso quase incontrolável de retribuir aquele abraço. Nenhum dos seus admiradores se havia atrevido a beijá-la assim! O desejo de reagir com ardor àqueles lábios exigentes crescia a cada segundo, fugindo ao seu controlo. Aflita, tentou desenvencilhar-se, mas uns longos dedos enroscaram-se-lhe nos cabelos, imobilizando-lhe a cabeça, ao mesmo tempo que o braço em torno da sua cintura a apertava ainda mais. A força do corpo contra o qual se sentia pressionada confirmava o facto de que não havia nada que ela pudesse fazer. Do meio da confusão de pensamentos que se tornavam, rapidamente, incoerentes, formou-se a ideia de que o homem não era cigano, nem vagabundo. Certamente, não era da região. O breve vislumbre daquele rosto revelara elegância negligente. À medida que os seus sentidos mergulhavam num mar de desejo, estranhas sensações foram assumindo o controlo do seu corpo. Então, de forma abrupta, o beijo foi habilmente interrompido.
Atordoada, Dorothea ergueu os olhos para o rosto moreno. Os olhos castanhos-claros, iluminados pelo brilho inconfundível da diversão, estavam fixos nos dela. Furiosa, ela ergueu a mão para esbofeteá-lo, mas ele foi mais lesto e segurou-lhe o braço, impedindo-a.
Então, ele sorriu com ar provocante.
– Não creio que me deva bater – murmurou. – Como poderia eu adivinhar que não é a filha do ferreiro?
A voz suave era, definitivamente, a de um homem educado. Lembrando-se da própria aparência, com o seu velho vestido verde e cabelos soltos, Dorothea corou até à ponta dos cabelos.
– Se não é a filha do ferreiro – continuou. – Quem é a menina?
Diante do tom levemente trocista, ela empinou o queixo.
– Sou Dorothea Darent. Agora, quer fazer o favor de me soltar?
O braço em torno da sua cintura não se moveu.
– Ah... Darent, de Grange?
Tudo o que Dorothea conseguiu fazer foi balançar a cabeça, pois não era fácil conversar, colada a ele como estava. Afinal, quem era aquele homem?
– Sou Hazelmere – declarou com simplicidade.
Por momentos, ela pensou ter ouvido mal, mas ao observar-lhe as arrogantes feições, sentiu as dúvidas dissiparem-se.
Dorothea ouvira os rumores. A sua velha amiga, Lady Moreton, cuja propriedade envolvia aquele bosque, morrera enquanto estavam na mansão Darent. O seu sobrinho-neto, o Marquês de Hazelmere, havia herdado Moreton Park. A notícia pusera o distrito em polvorosa. Num pequeno condado como aquele, a possibilidade de se ter um dos líderes da sociedade como novo vizinho gerava, no mínimo, grande curiosidade. Quando o vizinho em questão era o Marquês de Hazelmere, a agitação era total.
A esposa do reitor comprimira os lábios com desdém.
– Ora querida, nada me faria travar amizade com um homem como aquele! A sua reputação é chocante!
Quando Dorothea perguntara como ele havia conquistado tal reputação, a senhora Matthews lembrara-se, de repente, de quem estava à sua frente e tratou de encerrar a conversa, com a desculpa de ter de servir os bolinhos.
Na casa da senhora Mannerim, ouvira o marquês ser acusado de jogador viciado, sedutor mulherengo e libertinagem. Embora não tivesse experiência em sociedade, Dorothea possuía um grande bom senso. Se Lorde Hazelmere continuava a frequentar a ton, como era chamada a nata da sociedade londrina, as intrigas eram provavelmente exageradas. Além do mais, dificilmente imaginar-se-ia a respeitável Lady Moreton como tia-avó de um libertino.
Forçando a mente a abandonar a contemplação daqueles olhos castanhos hipnóticos e lábios tão bem esculpidos, Dorothea reviu a sua opinião sobre o marquês. Ora, era evidente que o homem era ainda mais perigoso do que sugeria a sua reputação!
Os seus pensamentos mostraram-se com clareza no seu semblante, numa verdadeira procissão que se iniciou com surpresa, passando por reconhecimento, incredulidade e choque. Os olhos castanhos brilharam. Para quem se cansara dos rostos bonitos, porém insípidos das jovens da ton, cujos sentimentos jamais eram mostrados, os traços fortes e expressivos eram infinitamente atraentes.
– Precisamente – murmurou, na esperança de vê-la corar de novo, e foi recompensado pelo rubor mais delicioso que já vira.
Deliberadamente, Dorothea fixou os olhos no ombro dele. Embora não fosse baixa, o topo da sua cabeça mal lhe alcançava o queixo. Nunca na sua vida se sentira tão indefesa!
– O que faz, exactamente, a menina Dorothea Darent no bosque da minha propriedade?
O tom autoritário fê-la erguer os olhos de novo, tal como ele esperava.
– Então o senhor sempre herdou o Park de Lady Moreton!
Ele assentiu, libertando-a com relutância, mas sem desviar os olhos dos dela.
– Lady Moreton sempre nos permitiu apanhar o que quiséssemos do bosque – respondeu Dorothea em tom imperioso. – No entanto, agora que o senhor é o proprietário...
– A menina vai continuar a apanhar o que quiser, quando quiser – interrompeu-a Hazelmere com um sorriso. – Da próxima vez, prometo não confundi-la com a filha do ferreiro.
– Obrigada Lorde Hazelmere! – curvou-se ela com ar irritado. – Terei o cuidado de avisar Hetty.
O comentário apanhou-o de surpresa. Aproveitando o momento, Dorothea virou-se, decidindo que, devido às circunstâncias, a melhor táctica de guerra seria bater em retirada.
– Hetty? De quem se trata? – indagou o lorde.
– A filha do ferreiro, quem mais? – retorquiu ela, indignada.
Ele soltou uma gargalhada e segurou a cesta, impedindo-a de fugir.
– Presumo que ficámos quites, menina Darent. Por favor, não se vá embora. A sua cesta ainda está pela metade e a amoreira tem frutas de sobra. Sei que não pode alcançá-las, mas eu posso. Se esperar alguns instantes e segurar a cesta, rapidamente estará cheia de amoras.
Só então Dorothea se deu conta de que as suas qualificações eram inadequadas para lidar com um cavalheiro daqueles. Inexperiente nos relacionamentos sociais, não sabia o que fazer. A esposa do reitor esperaria que ela se retirasse imediatamente. Por outro lado, a sua curiosidade pedia-lhe que permanecesse. Tinha de considerar, se bem que aquela criatura autoritária não a deixaria partir com tamanha facilidade. E, além de tudo isso, uma vez que ele a posicionara ali, com a cesta na mão, e já estivesse a apanhar as amoras mais suculentas dos galhos mais altos, seria uma grande falta de cortesia virar-se e ir-se embora. Assim, Dorothea ficou onde estava, aproveitando a oportunidade para analisar o homem que exercia sobre ela um efeito tão inesperado.
A sua impressão inicial de elegância negligente não fazia jus ao belíssimo casaco feito sob medida. A honestidade forçou-a a reconhecer que os ombros largos que coroavam os músculos esbeltos contribuíam sobremaneira para o efeito de poder másculo que ele exercia. Os cabelos negros eram curtos, como ditava a moda, e cachos ligeiramente mais longos enfeitavam-lhe a testa; os olhos castanhos-claros de tão directos que eram, chegavam a desconsertar; o nariz recto, a boca firme e o queixo quadrado denunciavam um homem habituado a dominar o seu mundo. Porém, Dorothea vira aqueles olhos e lábios abrandar em expressões de humor, tornando-o muito mais acessível. Na verdade, o sorriso de Lorde Hazelmere era, sem dúvida, devastador para raparigas mais jovens e impressionáveis do que ela. E depois, havia aquela aura subtilmente atraente, assunto que raparigas de boas famílias jamais discutiriam. Aludindo à reputação do marquês, não encontrou nenhum traço de libertinagem na sua aparência. Porém, a sua atitude não deixava dúvidas quanto à existência do fogo que dera origem ao fumo.
Adivinhando boa parte dos pensamentos que cruzavam a mente de Dorothea, Hazelmere observava-a disfarçadamente. Ah, como era uma jóia rara! Os traços clássicos emoldurados pelos fartos cabelos escuros eram lindos, mas os olhos... como enormes esmeraldas, claros e límpidos, reflectiam-lhe os pensamentos; e os lábios, que ele já experimentara, eram macios e sensuais. Seria fácil viciar-se neles, assim como nela toda. No entanto, se pretendia alimentar aquela amizade, teria de ser cuidadoso.
Nisto, retirou a cesta das mãos dela, agarrou na sua espingarda de caça e anunciou:
– Acompanhá-la-ei até sua casa, menina Darent – percebendo que ela abria a boca para protestar, impediu-a. – Não, não discuta. No círculo social de onde provenho, jamais uma jovem sai de casa sozinha.
O tom zeloso das suas palavras fez os olhos de Dorothea faiscar. As tácticas de Lorde Hazelmere eram mesmo difíceis de combater. Como não encontrou palavras que pudessem demovê-lo, acompanhou-o com relutância.
– Aproveite para matar a minha curiosidade – continuou ele, em tom casual. – Por que deambulava pelo bosque, sem a presença sequer de uma criada?
Sabendo que ele a provocava, Dorothea reprimiu a exaltação.
– Sou conhecida por todos na região e, na minha idade, não sou considerada uma jovem que necessite de andar acompanhada o tempo todo.
Lorde Hazelmere sorriu.
– Ora, a menina não é assim tão velha! É claro que precisa de uma acompanhante!
O que ele acabara de comprovar.
– De futuro, Lorde Hazelmere, trarei uma acompanhante sempre que me sentir tentada a visitar o seu bosque! – retorquiu Dorothea, perdendo a paciência.
– Atitude sábia – murmurou ele.
Ao que Dorothea redarguiu, sem pensar:
– Ainda não vejo a necessidade disso. Não foi o senhor mesmo que disse que da próxima vez não me vai confundir com uma rapariga da vila?
– O que significa que, da próxima vez, saberei quem estou a beijar.
Ultrajada, Dorothea parou para fitá-lo.
Hazelmere soltou uma gargalhada e tocou-lhe na face com a ponta de um dedo.
– Repito, a menina Darent precisa de acompanhante. Não se arrisque a andar pelo meu bosque, ou por qualquer outro lugar, sozinha. Caso os cavalheiros da vila não lhe tenham contado, a menina é demasiado bonita para se aventurar sozinha, «apesar» da sua idade avançada.
Os olhos castanhos mantiveram-se fixos nos dela e, vislumbrando algo mais que simples divertimento no brilho que os iluminava, sentiu-se estranha, incapaz de falar. Irritada, furiosa e aturdida, virou-se e retomou a caminhada.
Pelo canto do olho, Hazelmere estudou o rosto zangado ao seu lado e o seu sorriso tornou-se ainda mais amplo. Procurou então por um assunto inócuo de entre as muitas informações que a sua tia-avó lhe fornecera, antes de falecer.
– Se não estou enganado, menina Darent, perdeu a sua mãe recentemente. Creio que a minha tia-avó me contou que a menina estava a viver com parentes, no norte.
Dorothea virou-se para o fitar.
– Então, o senhor viu-a antes da sua morte?
Por alguma razão, o tom ligeiramente incrédulo magoou Hazelmere.
– Pode não acreditar, menina Darent, mas eu visitava a minha tia-avó com frequência, pois gostava muito dela. No entanto, como raramente ficava por mais do que um dia, não é de admirar que a menina, tal como a maior parte dos moradores da região, desconheçam esse facto. Estive com ela durante os três dias que precederam a sua morte e, como era o seu herdeiro, ela esforçou-se para me informar sobre as famílias vizinhas.
Tais palavras fizeram Dorothea corar, mas em vez de desviar o olhar, confusa, ela continuou a fitá-lo.
– Então, deve saber que éramos muito amigas. Entristeceu-me não a ter visto de novo.
Pela primeira vez, Hazelmere curvou o olhar.
– Ela teve um fim calmo e indolor. Morreu enquanto dormia e, considerando tudo o que sofreu nos últimos anos, só podemos encarar a sua morte como um alívio.
Dorothea concordou, curvando também o olhar.
– A menina e a sua irmã planeiam ficar em Grange, indefinidamente?
O rosto dela iluminou-se.
– Ah, não! Iremos para a casa da nossa avó, Lady Merion, no início do próximo ano.
Hermione, Lady Merion, ex-Lady Darent, passara pelos corredores gelados da mansão Darent como uma brisa de Verão, carregando consigo o calor do glamour londrino, e assumira o comando. As irmãs, juntamente com a tia Agnes, a idosa solteirona que desempenhava o papel de acompanhante para as duas, haviam sido prontamente despachadas para Grange, em Hampshire, onde esperariam até ao final do seu ano de luto. Deveriam apresentar-se a Lady Merion em Fevereiro. O que aconteceria dali por diante fora apenas insinuado e, definitivamente, Lady Merion trataria de tudo. Lembrando-se da avó, Dorothea sorriu.
– Ela pretende apresentar-nos um ao outro... – notando o leve arco formado por uma sobrancelha negra, ela sentiu-se particularmente sensível, e continuou em tom defensivo: – Cecily é considerada uma jovem muito bonita, e acredito que encontrará um bom marido.
– E a menina?
– Não tenho planos de casamento. Pretendo aproveitar os meus dias em Londres para conhecer a cidade e as pessoas.
Ergueu os olhos e surpreendeu-se com a intensidade com que ele a fitava. Diante do sorriso enigmático que curvou aqueles atraentes lábios, ocorreu-lhe uma ideia.
– Conhece Lady Merion?
O sorriso estendeu-se.
– Creio que toda a Londres conhece Lady Merion. Quanto a mim, ela é uma grande amiga da minha mãe.
– Por favor, fale-me sobre ela – percebendo a surpresa dele, explicou: – Não a vejo desde criança, excepto na noite em que ela passou na mansão Darent, para nos informar que deveríamos ir para Londres.
– Bem, a sua avó sempre foi uma líder da moda, e é bem relacionada com as melhores famílias de Londres. É amiga íntima de Lady Jersey e da princesa Esterhazy. Ambas frequentam o Almack’s, requisito indispensável para quem quer fazer parte da ton. Para a menina, isso não será problema. Lady Merion é muito rica e vive numa bela mansão, em Cavendish Square, deixada pelo segundo marido George, Lorde Merion. Eles casaram-se alguns anos após a morte do seu avô, e George morreu há cerca de cinco anos. Lady Merion tem uma personalidade bastante forte, além de ser um tanto autoritária. Por isso, nem pense em passear por Londres sozinha! Por outro lado, tem excelente sentido de humor e todos conhecem a sua generosidade para com os amigos. É, também, excêntrica, e raramente sai de Londres, excepto para visitar amigos no campo. Enfim, duvido que encontre uma senhora mais capaz de apresentar a menina e a sua irmã à sociedade com sucesso.
Dorothea ponderou a breve biografia e comentou:
– De facto, ela parece ser muito elegante.
– E é.
Os dois chegaram ao portão que recortava o alto muro de pedra. Dorothea parou e estendeu a mão para a cesta.
– Este é o jardim de Grange.
– Nesse caso, vou deixá-la aqui – declarou prontamente Hazelmere. Decidira acompanhá-la até sua casa apenas para desfrutar da companhia dela por mais tempo, mas não pretendia ser visto com ela, pois sabia o tipo de intrigas que resultariam disso. Levou a mão dela aos lábios, dizendo: – Mas não se esqueça do meu conselho! Se pretende continuar nas boas graças da sua avó, não saia sozinha pelas ruas de Londres, pois as jovens que fazem isso não ficam sozinhas por muito tempo. Até logo, menina Darent.
Sem perder tempo, Dorothea abriu o portão e entrou. Atravessou o jardim apressadamente, sem sequer parar para apreciar o perfume das flores. Na varanda, parou e respirou fundo, sentindo-se aliviada por se ver à sombra, pois as suas faces ardiam. Ao ouvir os passos da criada no corredor, chamou-a:
– Doris, leve estas amoras à cozinheira, por favor. E diga à minha tia que me vou deitar até à hora do jantar. Acho que fiquei tempo demais ao sol.
Mais precisamente ficara tempo demais na companhia do Marquês de Hazelmere!
Furiosa consigo mesma, subiu a escada e fechou-se no seu quarto. Sentada diante da janela, tentou ordenar os caóticos pensamentos. Aquilo era ridículo! Deixara a sua casa como uma rapariga de vinte e dois anos, serena e confiante, totalmente segura no seu mundo independente. No entanto, lá estava ela, menos de uma hora depois, sentindo-se como Cecily se sentiria se o filho do juiz lhe piscasse o olho! Afinal, já antes havia sido beijada, e não deveria fazer diferença quem a beijava. O facto desse pormenor fazer tamanha diferença exacerbava ainda mais o seu humor, já abusado por um par de olhos castanhos. Olhos muito perceptivos. Durante dez minutos, Dorothea deu a si mesma um sermão sobre a insensatez de criar interesse por um libertino.
Sentindo-se fortalecida, tentou considerar os acontecimentos à luz da razão. Sem dúvida dever-se-ia sentir ultrajada, pronta a rotular o marquês como patife desprezível. No entanto, apesar da sua irritação, era honesta demais para não admitir que parte da culpa coubera aos seus trajes impróprios. Além disso, a reacção de uma jovem ao descobrir-se nos braços de Hazelmere deveria ser totalmente diferente do comportamento que ela tivera. Em sua defesa, havia a certeza de que, se houvesse desmaiado nos braços dele, que escolha teria ele, senão esperar até que ela recuperasse os sentidos? Aí, a situação ter-se-ia agravado. Seguindo tal linha de pensamento, Dorothea convenceu-se de que nada de condenável fizera, após o marquês a ter libertado. Na verdade, ele acabara por se tornar num valioso informador, no que à sua avó dizia respeito.
O que continuava a perturbá-la era o que havia acontecido antes daquele abraço tão íntimo terminar. Levou os dedos aos lábios, que ainda ardiam. A lembrança do corpo musculoso pressionado contra o seu ainda era uma sensação física.
Nisto, decidiu deixar de lado os acontecimentos daquela tarde, afastando com determinação o marquês e as suas investidas para o canto mais remoto da sua mente. Não tinha a menor dúvida de que, no dia seguinte, ele já se teria esquecido dela e de tudo o que acontecera.
Enquanto trocava o vestido velho pelo belo traje de musselina que havia escolhido para usar naquela noite, avaliou a possibilidade de o encontrar outra vez, por acaso. Conhecendo a fundo os costumes locais, sabia que seria praticamente impossível ao marquês encontrá-la socialmente. E, como ele mesmo admitira, não costumava permanecer em Moreton Park por muito tempo. Dorothea convenceu-se estar aliviada. E, para garantir que tal alívio não fosse perturbado, decidiu convencer no futuro a irmã a acompanhá-la nas suas saídas.
Dorothea apanhou a escova e penteou os cabelos, prendendo-os num coque simples. Lançou um rápido olhar para o espelho e, satisfeita por ter esquecido o assunto referente ao marquês, desceu para jantar.
Duas semanas depois, no regresso à mansão Hazelmere, a sua residência em Cavendish Square, situada quase em frente à mansão Merion, o marquês encontrou uma pilha de cartas e convites à sua espera. Examinando-os, foi para a biblioteca. Retirou da pilha um envelope roxo e manteve-o bem afastado do rosto, a fim de evitar o perfume bastante activo. Reconhecendo a caligrafia rebuscada da sua última amante, uma admirável criatura de posição invejável, franziu o sobrolho; abriu a carta e leu as poucas linhas, arqueando as sobrancelhas. Um sorriso que Dorothea Darent jamais reconheceria curvou-lhe os lábios. Atirando carta e envelope para a lareira, sentou-se à escrivaninha.
Dez minutos mais tarde, um lacaio atendeu à chamada da sineta, encontrando o marquês a selar um envelope.
– Entregue esta mensagem imediatamente.
– Sim, milorde.
De novo sozinho, Hazelmere considerou a provável reacção que a sua carta provocaria. Assim terminava mais um dos seus casos. Estendendo as pernas diante da lareira, recordou o interminável desfile das suas belas amantes. Enquanto isso lhe proporcionava uma reputação invejável diante da ton, aquele jogo começava a entediá-lo. Depois de mais de dez anos na cidade, eram poucos os vícios em moda que ele ainda não experimentara, e as suas acções começavam a tornar-se demasiado previsíveis.
Recordou Cerise, comparando a sua beleza madura com os encantos da jovem de olhos verdes, cujo rosto não saía da sua cabeça. A insatisfação que sentia com a sua actual vida devia-se, em grande parte, àquele encontro no bosque de Moreton Park. Por sua culpa, claro.
Marc St. John Ralton Henry, aos trinta e um anos, quinto Marquês de Hazelmere e um dos nobres mais ricos do reino, deixou que a mente vagueasse até à primeira vez em que ele ouvira o nome da menina Darent, durante uma conversa que tivera com a tia-avó, na noite precedente à sua morte. Sendo uma velha senhora directa e objectiva, ela fitara-o com um olhar frio, interrogando-o sobre as suas intenções em relação ao casamento. A conversa tivera início com a seguinte frase: «Sei que a tua mãe jamais tocará no assunto e, por isso, aproveito o facto de estar a morrer, para me poderes mandar para o inferno.»
Como se apreciasse aquele tipo raro de franqueza, Hazelmere admitira não ter ainda planos de casamento, e aceitara ouvir um verdadeiro sermão, que não teria suportado de qualquer outra pessoa.
– Não te posso culpar por não te quereres casar com nenhuma daquelas rapariguinhas insípidas e inúteis, que te são apresentadas todos os anos – declarara a tia-avó em tom desdenhoso. – Também não suporto aquelas choramingas! Mas, por que não procuras noutras paragens? Existem imensas jovens bonitas que, por uma razão ou por outra, nunca foram a Londres – diante do olhar céptico do sobrinho-neto, continuou: – Não penses que, por serem raparigas do campo, seriam incapazes de viver entre a ton. Há Dorothea Darent, por exemplo. Jovem, bonita, dona de uma herança considerável e tão bem-nascida quanto tu. O único motivo pelo qual não te foi apresentada foi porque passou os últimos seis anos a administrar a propriedade da mãe viúva. Cynthia Darent devia apanhar por não a ter levado a Londres, há anos! Bem, agora é tarde demais, pois ela está morta.
– Quem? A bela Dorothea? – perguntara Hazelmere, confuso.
– Não, tolinho! Cynthia! Ela morreu há alguns meses, e as filhas foram passar algum tempo à mansão Darent. É uma pena, pois eu adoraria ver Dorothea outra vez. Ela não tem nada de insípida, ou de inútil.
– E por que razão, embora não tenha sido apresentada à sociedade, essa jovem não está casada? Não acredito que os cavalheiros do campo sejam tão lentos!
Etta soltara uma gargalhada.
– Imagino que seja porque nenhum cavalheiro lhe conseguiu mostrar uma boa razão para se casar! Vê a situação do ponto de vista dela. Tem boa posição, bastante dinheiro e independência. Casar-se para quê?
Hazelmere exibira um sorriso atrevido.
– Atrevo-me a dizer que posso sugerir algumas excelentes razões.
– Não duvido! Mas não faz diferença, pois não creio que a vás conhecer. A menos que Hermione Merion se interesse. Escrevi-lhe uma carta. Talvez ela procure as netas. Há Cecily, também, a irmã mais nova. Outra beldade, embora de estilo diferente. Terá de te ser apresentada, em breve, mas Cecily esgotaria a paciência a um santo, e como tu, definitivamente, não és um deles, ela não serve para ti. Mas já chega de falar das irmãs Darent. Apenas as usei como exemplos.
E assim, a conversa seguira por outros caminhos.
A ideia de que a sua tia-avó havia, de facto, tentado fazê-lo olhar para Dorothea Darent como potencial esposa ocorrera a Hazelmere logo depois de a conhecer.
Ao longo dos últimos dez anos, ele havia-se recusado terminantemente a considerar qualquer das jovens exibidas para sua aprovação no Almack’s e em festas da ton. O que causara consternação em membros da família, especialmente nas suas duas irmãs mais velhas, Maria e Susan, que não se cansavam de lhe apresentar candidatas. A sua posição fora apoiada pela mãe e pela tia-avó, Etta. As duas pareciam compreender o sufocante tédio que se apoderava dele, após breves minutos de abordagem a uma das insípidas debutantes. Hazelmere sabia que a sua mãe adoraria vê-lo casado, mas ela havia confidenciado a uma amiga que, a menos que os costumes mudassem, isso jamais aconteceria. Quanto a Etta, ela nunca tocara no assunto, até àquela noite.
Como Etta o conhecia tão bem como a sua mãe, era perfeitamente possível que ela houvesse tentado chamar-lhe a atenção para a menina Darent.
– Bem, tia Etta – murmurou ele com um sorriso – conheci a sua Dorothea, e de uma maneira muito mais directa do que a tia jamais teria sonhado!