Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.
Núñez de Balboa, 56
28001 Madrid
A rapariga de Times Square
Título original: The Girl in Times Square
© 2004, Paullina Simons
© 2017, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.
Publicado originalmente por HarperCollins Publishers Limited, UK.
Tradutor: Mariana Mata
Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.
Esta edição foi publicada com a autorização de HarperCollins Publishers Limited, UK.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.
Imagens de capa: Dreamstime.com
ISBN: 978-84-9139-128-9
Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.
Página de título
Créditos
Sumário
Dedicatória
Cita
Mesmo antes do começo
Lily Quinn
Allison Quinn
Um homem e uma mulher
Parte I. No começo
1. Aparentando ser uma coisa quando de facto é outra
2. Havai
3. Uma hora na 9.ª esquadra
4. Carteiras nas cómodas
5. Spencer Patrick O’Malley
6. Conversas com mães
7. Pássaros do Paraíso
8. As desvantagens de ir a pé para o trabalho
9. A ignorância na cama de Amy
10. Coisas no armário
11. Spencer Patrick O’Malley e Lilianne Quinn
12. Um pequeno Honda de aluguer
13. Lily e a cidade dos sonhos
14. No lugar do pendura
15. Os doze bilhetes de Spencer
16. Realidade: a única coisa que aparenta ser
Parte II. O meio do caminho
17. O maior rio do Egito
18. Opções de fertilidade
19. Fibras de suspeição
20. Mais uma noite de sábado para Lily
21. Mais uma noite de sábado para Spencer
22. No jardim do polícia barbeiro
23. Quimioterapia 101
24. Conhecer os pais
25. Quimio 202
26. A igreja na 51ST Street
27. Liz Monroe e 57/57
28. A sopa dos pobres
29. Spencer preso pela segunda vez
30. Quimioterapia avançada
31. Interrogatório avançado
32. O alibi de Andrew
33. O caminho do riso
34. As estações de Lily
35. A mãe de Lily está aqui
36. As estações de Lily, Continuação
37. Pessoas belas
38. Treta do cancro
39. Larry DiAngelo como Imhotep
Parte III. O jogo final
40. Lily como uma antiga egípcia
41. Compras curativas
42. As aflições financeiras e alimentares de uma premiada da lotaria e sobrevivente de cancro
43. Só uma coisinha sobre Spencer
44. O muso
45. Um curso de mestrado em quimioterapia
46. O poderoso Quinn
47. Harkman
48. Os laços amarelos
49. O basebol como metáfora para tudo
50. Tolos de abril
51. Mais uma vez nos Assuntos Internos
52. Teste número um falhado
53. Polícia em primeiro lugar
54. Assuntos infernais
55. Teste número dois falhado
56. Destruição em casa e no exterior
57. Um encontro em Tompkins Square
58. Oito dias em Maui
59. E agora, sobre Spencer
60. John Doe
61. Olenka Pevny
62. Lindsey
63. Um estado terminal no tratamento do cancro
64. Amy e Andrew
65. Nathan Sinclair
66. Um barco em Key Biscayne
67. Cabo San Lucas
68. Um dia na abadia
69. Um anarquista em ação
70. Massacre Grounds
71. A Rapariga do Cancro e o Revolucionário
72. A dança peiote
73. As lições do czar russo
74. Agir sem moderação
75. O Carteiro
76. A única
77. O ringue de Wollman
78. ONR
79. E agora, sobre Amy
80. O outro lado
O passado como prólogo
Agradecimentos
Se gostou deste livro…
Para a minha irmã Elizabeth, em busca contínua.
E para Melanie Cain, que esteve na sala das lágrimas.
No Vaticano, depois de escolherem um novo papa, conduzem-no a uma sala fora da Capela Sistina onde lhe são dadas as vestes papais. É chamada de Sala das Lágrimas. É chamada assim porque é aí que o peso e as responsabilidades papais tendem a abater-se sobre o novo pontífice. Muitos deles choraram.
Os melhores choraram.
PEGGY NOONAN
O que aconteceu ao amor? Lily sussurrou para si mesma. Alguém levou todo o que foi distribuído no universo ou será que não me tenho esforçado o suficiente? O que aconteceu ao amor arrebatador, esmagador, o tipo de amor que move montanhas, o tipo de amor que a minha avó sentiu pelo seu Tomas há meio século, noutro mundo e noutra vida, o tipo de amor que o meu pai diz ter sentido pela minha mãe quando se encontraram pela primeira vez a nadar no mar morno das Caraíbas? Já ninguém sente esse tipo de amor? Será que não há ninguém sem defesas, sem barreiras, sem dor? Será que não há ninguém disposto a morrer por amor?
É óbvio que esta noite não.
Chamavam-lhe Lil. Às vezes, quando a amavam, chamavam-lhe Liliput. Ela gostava. E às vezes, quando não a amavam, chamavam-lhe Lilianne. Esta noite ninguém lhe chamou nada. Lily, esfomeada e sem dinheiro, ficou silenciosamente encostada à parede a observar Joshua a fazer as malas enquanto ela permanecia como uma mancha estoica na parede, olhos castanhos, cabelo cinza, vestida de negro — de alguma forma apropriadamente, pensou, apesar do que ele disse: «É apenas temporário, só para nos dar um tempo. Precisamos disso.» Ele estava a ir-se embora, não ia voltar, e ela vestida de negro. Lily gostaria de ter pigarreado, de ter dito alguma coisa, talvez convencê-lo a não ir, mas de alguma forma sentiu que o tempo para isso já tinha passado. Quando, não sabia ao certo, mas tinha passado na mesma e agora não restava mais nada a não ser observá-lo a partir, e talvez mastigar alguns pretzels velhos.
Joshua era magro e ruivo. Voltando os olhos baços para ela, perguntou, passando a mão pelo cabelo — e como ele adorava o seu cabelo! — se não tinha nada melhor para fazer do que estar ali parada a observá-lo. Lily respondeu que não, que por acaso não, não tinha. E continuou a mastigar alguns pretzels velhos.
Ela queria perguntar-lhe por que partia, mas os seus motivos ficaram por dizer. Ficou muito por dizer entre eles. A sua saída seria inconcebível há um ano: como é que ela conseguia lidar com aquilo, como é que ela conseguia lidar tão bem? Afastou-se da parede, aproximou-se dele, abriu a boca e ele afastou-a acenando, de olhos colados à televisão.
— É a final da Taça Stanley — foi tudo o que Joshua disse, com uma mão nos seus CD’s e a outra no comando com o qual aumentou o volume do aparelho para abafar Lily.
E pensar que na semana passada, o professor de escrita criativa lhes deu como tema para o artigo final — como se o flagelo do obituário anterior não fosse suficiente — «O que farias se soubesses que hoje seria o teu último dia de vida?».
Lily odiava a cadeira. Tinha-se inscrito porque precisava de uma cadeira de inglês, mas se então soubesse o que sabe hoje, teria escolhido «Leitura Avançada de John Donne», às segundas-feiras às oito da manhã, em vez de escrita criativa às quartas à tarde. Oh, o desfile impiedoso da autoanálise! A primeira memória, o primeiro desgosto amoroso, a experiência mais memorável, as férias de verão favoritas, o próprio obituário (!) e agora isto.
Tudo o que Lily mais desejava naquele momento era que hoje — a separar-se do seu namorado da faculdade — não fosse o seu último dia de vida. O seu apartamento era demasiado pequeno para tanto drama. A entrada da casa servia de sala. Na cozinha, o micro-ondas ficava em cima da única bancada existente e o escorredor da louça em cima do micro-ondas, onde estavam latas de Coca-Cola enxaguadas a pingar para o lava-louça, em parte a servir também para guardar pão já bolorento. Não usavam pratos normais e raramente comiam em casa. Havia dois quartos na casa — o dela e o de Amy. Esta noite, Lily foi para o quarto de Amy e deitou-se na cama dela, tentando a todo o custo não se encolher em posição fetal. Durante o intervalo, Joshua levantou-se do sofá para ir buscar uma bebida, lançou-lhe um olhar e disse:
— Achas que podias dormir com a Amy? Vou ter de levar a minha cama. Até a deixava, mas não tenho mais sítio nenhum onde dormir.
Lily queria responder. Pensou que poderia ter algo espirituoso para dizer. Mas a única coisa que lhe ocorreu foi:
— O quê, a Shona não tem cama?
— Não comeces outra vez com isso — respondeu ele, entrando na cozinha.
Lily encolheu-se. Joshua pagava um terço da renda. E ainda assim ela estava falida, a sua dieta alternava entre pretzels velhos e massas chinesas. Um bagel com requeijão era um luxo a que só podia dar-se aos domingos. Nalguns domingos tinha até de escolher entre um bagel e um jornal.
Lily costumava ler as notícias online, mas agora não conseguia pagar os 20 dólares da ligação de Internet. Por isso, não havia Internet, bagels e, em breve, Joshua, que estava a ir-se embora e a levar a cama e um terço da renda com ele. Se ao menos tivesse tido notas para entrar na Universidade de Nova Iorque, na baixa, em vez do City College, na rua 138, poderia ir a pé para a faculdade tal como ia para o trabalho e pouparia quatro dólares por dia. Seriam vinte dólares por semana, 80 por mês, 1040 por ano! E quantos bagels, jornais e cafés poderia comprar com esse valor!
Lily pagava quase 500 dólares por mês pela sua parte da renda. Bom, na verdade, a mãe dela mandava-lhe 500 dólares para poder pagar a sua parte, ralhando com ela todos os meses. E no próximo mês de maio, no dia da sua pretensa, suposta e alegada licenciatura, Lily ia receber o último cheque do banco da mamã. Sem o Joshua, a sua parte da renda ia subir para 750 dólares. Como raio ia ela arranjar mais 750 dólares em junho? Já estava a servir à mesa vinte e cinco horas por semana para pagar a comida, os livros, os materiais artísticos e os seus filmes. Teria de pedir para fazer mais um turno, talvez dois. Talvez pudesse fazer turnos duplos, levantar-se cedo. Lily não queria pensar nisso. Queria ser como a Scarlett O’Hara e pensar nisso amanhã — noutro livro, uns cinquenta anos mais à frente.
O telefone tocou.
— Ele já se foi embora, querida? — Era Rachel Ortiz, outra grande amiga de Amy, senão a melhor amiga, aquela do repentino cabelo louro esticado e uma maneira de ser contundente. Alguém devia explicar à Rachel que o facto de ser amiga de Amy não a tornava automaticamente em amiga de Lily.
— Não — respondeu Lily, acrescentando que a Taça Stanley Cup estava a atrasar a saída de Joshua.
— Esse desgraçado! — disse Rachel, de qualquer modo.
— Mas sai em breve — declarou Lily —, muito em breve, Rach.
— A Amy está aí?
— Não.
— Onde é que ela está? Num dos seus encontros?
— Apenas a trabalhar, acho.
— Bom, amanhã à noite não quero que fiques em casa sozinha. Vamos sair. O meu novo namorado quer levar-nos a Brooklyn, a uma discoteca em Coney Island.
— Ir a Coney Island, numa segunda-feira? — perguntou Lily, recusando de imediato — Não posso. É noite de escola.
— Escola, uma treta. Não vais ficar em casa sozinha. Vais sair comigo e com o Tony — Rachel baixou o tom de voz para dizer Tóni, com uma acentuada pronúncia italiana. — A Amy também é capaz de ir e tem um amigo para ti do Bed-Stuy que ela diz ser um «pão».
— Oh, por favor! — Lily baixou a voz até ao sussurro. — O Joshua ainda está aqui.
— Esse desgraçado! — disse Rachel. E desligou.
— O quê? A Rachel já te está a tentar arranjar encontros? — perguntou Joshua — Ela detesta-me.
Lily não disse nada.
Nessa noite, depois da Taça Stanley acabar, Joshua traçou os cinco lanços de escadas de cima a baixo, levando as suas caixas, caixotes e malas para a Avenida C com a rua 4, onde ia agora ficar com o amigo comum Dennis, o cabeleireiro. (Amy uma vez disse-lhe: «Lil, já alguma vez te perguntaste porque é que o Joshua se quis mudar tão precipitadamente para casa do Dennis? Já alguma vez pensaste que talvez ele também possa ser gay?» E Lily respondeu: «Pois, mas não me digas isso a mim. Diz isso à Shona, a rapariga nua do norte do estado de Nova Iorque a quem ele andava a ligar com o meu telefone.)»
Quem ia agora cortar o cabelo a Lily? Era sempre Dennis que o fazia. Porque é que Joshua tinha de herdar o cabeleireiro? Bem, talvez o Paul, outro dos melhores amigos de Amy, e um especialista em coloração, também soubesse cortar cabelo. Tinha de lhe perguntar-lhe.
Joshua teve a decência de não pedir ajuda a Lily e ela a dignidade de não lha oferecer.
Por volta das três da manhã, a agarrar a última caixa, ele acenou-lhe com a cabeça e saiu, passando rapidamente pelo seu A rapariga de Times Square, a única tela a óleo que pintou quando tinha 20 anos, antes de conhecer Joshua.
«Há coisas em ti que eu nunca poderia amar,» dissera Joshua a Lily há dois dias, quando tudo se começou a desmoronar.
Se eu soubesse que hoje era o meu último dia de vida, gostaria de ser como a rapariga daquele postal famoso do final da guerra, ser lançada atrás no tempo para o meio de Times Square e beijada com paixão por um estranho. Só que essa não sou eu. Essa fantasia da rapariga em Times Square é de outra pessoa. Talvez da Amy. Mas é uma Lily fraudulenta.
A verdadeira Lily dormiria até tarde, pelo menos até ao meio-dia, sem aulas ou trabalho. E então, uma vez que o tempo estaria quente e soalheiro no seu último dia, iria até ao lago do Central Park. Compraria uma sanduíche de atum, um chá gelado e um pacote de batatas fritas e levaria o livro que está a reler devagar — Sula, de Toni Morrisson —, porque tinha tempo, o seu bloco de apontamentos e lápis. Passaria a tarde sentada, a comer, a desenhar os barcos e o Ajax de Sula — por quem estava perversamente apaixonada — a ler e a pensar sobre o que ia desenhar a seguir. Teria uma longa e descontraída tarde de desenhos e, à noite, no regresso a casa, passaria por Times Square alheia a todas as pessoas, encostando-se à parede a observar os coloridos painéis animados e as torres cintilantes, os semáforos verdes a mudar de cor, as luzes azuis e brancas das sirenes a piscar e os táxis amarelos a zumbir à passagem. O cowboy nu no meio da rua, a tocar a sua guitarra apenas com o seu chapéu e roupa interior, e as famílias, as crianças, os casais, os novos e os velhos, todos apaixonados, a tirar fotografias, a rir, a passar pelo meio das luzes.
Esta rapariga em Times Square fica encostada à parede enquanto outros avançam pelas luzes.
Lily afastou-se da porta e contemplou a noite pela janela aberta, da cama de Amy, sozinha.
Em tempos houve uma vez uma mulher que vivia para o amor. Agora estava parada a olhar pela janela. Lá fora via palmeiras verdes, rododendros vermelhos, um céu azul, um mar cristalino, rochedos cinzentos, vulcões pretos e areias brancas. Ela não olhava para dentro da divisão. Estava à espera que o marido regressasse com as mangas que tinha ido comprar. Estava a demorar uma eternidade. Afastou ligeiramente o cortinado para dar conta de algum movimento lá fora, e suspirou, recordando o tempo em que era nova e sonhava com o céu, o mar e a abundância.
Agora tinha tudo isso.
E em tempos, um homem pôs um disco a tocar numa vitrola antiga e levou-a a dançar pelo pequeno quarto. O homem era elegante e ela bela, e falavam então uma língua diferente. The look of love is in your eyes… Agora, o homem passeava sozinho debaixo das palmeiras sobre as areias. Molhava os pés no oceano, e a alma também, caminhando depois até à frutaria para comprar mangas sumarentas que a jovem e atrevida vendedora assegurava serem as melhores de sempre. O homem olhou para ela e sorriu enquanto as tirava da mão dela.
A mulher afastou-se da janela. Ele estava sempre a caminhar, sempre a sair de casa. Mas ela sabia — ele não estava a sair de casa, estava a sair de ao pé dela. Ele simplesmente não conseguia suportar a ideia de estar sozinho com ela durante uma hora, não conseguia suportar a ideia de fazer alguma coisa que ela quisesse, em vez de alguma coisa que ele queria. Quando ela não fazia o que ele queria, como ele amuava… como uma criança. Era na verdade o que ele era, uma criança. Faz as coisas à minha maneira ou nunca mais falo contigo. Era assim. Bem, ela tinha culpa de as manhãs não serem a melhor altura do dia para ela? Tinha culpa de não conseguir levantar-se durante a manhã para ir passear e dar um mergulho debaixo de todo aquele sol? Deprimia-a a um nível insano o facto de às oito da manhã o oceano estar tão quente e o sol tão forte. Se ao menos chovesse, uma vez que fosse! Estava farta do raio do oceano. E do sol. E daquelas mangas, do sashimi de atum, da cinza do vulcão. Farta.
Comprou cortinas pesadas e opacas e fechou-as bem para afastar a luz do dia, para fazer de conta que ainda era de noite. Fingia muita coisa hoje em dia.
Não conseguia perceber onde é que ele estava. Quando é que ele ia agraciá-la com a sua presença? Não sabia que ela estava doente, que tinha fome? Não sabia que ela tinha de comer pequenas refeições? Era isso, ele não queria saber daquilo que ela precisava. Só se preocupava com o que ele precisava. Bem, ela não ia pôr uma única migalha na boca. Se desmaiasse por falta de açúcar no sangue e partisse um osso, tanto melhor. Queria ver como ele se iria sentir depois, por estar fora a manhã inteira sem preparar o pequeno-almoço para a sua mulher doente. Queria ver como ia explicar essa à mãe dela, aos filhos. Nem pensar que ela ia colocar sequer uma colherzinha de açúcar na própria boca.
A porta do quarto abriu-se ligeiramente.
— Estou de volta. Já comeste?
— Claro que não comi! — disparou ela — Como se quisesses saber. Podia morrer para aqui sozinha enquanto tu andavas a passear agradavelmente na tua estúpida Maui, sem pensares uma única vez em mim!
… a look that time can’t erase…
A porta fechou-se silenciosamente e ela ficou sozinha no quarto escurecido com as persianas corridas na manhã radiante de Maui.
É sexta-feira à noite e estão no apartamento dela. Foram jantar, ela convidou-o para uma bebida e para irem dançar num bar vínico, perto do sítio onde mora. Ele recusou. Ele recusa sempre — beber e dançar em bares não faz o género dele —, mas há que concordar — ela é persistente. Continua a convidar. Agora estão na cama dela e quer isto já faça o género dele, quer ela não tenha opções mais atrativas, ele não sabe porquê, mas ela continua a aparecer todas as sextas à noite. Por isso só pode estar a fazer alguma coisa bem, apesar de não fazer a mínima ideia do quê. Afinal, o que ele lhe dá, ela pode ter em qualquer lado.
E depois de lhe dar e de tomar a sua parte, ela adormece satisfeita na dobra do seu braço, enquanto ele fica deitado de olhos abertos a contar as peças de estanho do seu teto alto, na luz amarela e azulada que vem da rua. Para alguém que o observasse de fora, científica e empiricamente, ele também podia parecer satisfeito — no prazer ostensivo dessa noite, vindo da sua comida e da sua mulher. Mas agora, numa perversão da natureza, a mulher está a dormir e o homem a olhar para o teto. Portanto, o que resta integralmente do prazer no seu interior?
Ele está a contar as peças de estanho. Já as contou antes e o que o fascina é que, de cada vez que as conta a horas tardias da noite, chega sempre a um número diferente.
Depois de ter a certeza de que ela dorme, ele desembaraça-se dela, sai da cama e leva as suas roupas até à sala.
Ela aparece quando já tem os sapatos calçados. Deve ter tilintado as chaves. Normalmente, não o ouve sair. Está escuro. Olham um para o outro, parados.
— Não entendo porque fazes isto — diz ela.
— Tenho de ir.
— Vais para casa ter com a tua mulher?
— Para.
— Então porquê?
Ele não responde.
— Sabes que sim. Vou sempre. Porquê tornar as coisas difíceis?
— Não foi uma noite agradável?
— É sempre.
— Então, porque é que não ficas? É sexta-feira. Preparo-te waffles para o pequeno-almoço.
— Eu não como waffles ao pequeno-almoço aos sábados.
Silenciosamente, ele fecha a porta atrás de si. Ruidosamente, ela dá duas voltas na fechadura e tranca a porta com a corrente de segurança. Se pudesse, usava até um cadeado.
Ele está na rua, em Amesterdão. Na estrada, circulam apenas táxis. Os passeios estão vazios, os poucos frequentadores dos bares vagueiam entre um e outro. Os semáforos alternam entre verde, amarelo, vermelho. Antes de chamar um táxi para regressar a casa, ele afasta-se vinte quarteirões a pé da zona dos bares abertos, às três da manhã, sozinho.
Achas que és livre? Livre de quê?
O que importa isso a Zaratustra?
Mas os teus olhos devem dizer-me
claramente: livre para quê?
FRIEDRICH NIETZSCHE