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© Editora Gato-Bravo, 2019


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editor Marcel Lopes
coordenação editorial Paula Cajaty

revisão e adaptação Hanny Saraiva

projecto gráfico 54 Design

imagem da capa Shutterstock



Título

Sob o olhar do guardião

Autor

Juca Serrado


isbn 978-989-8938-47-3
e-isbn 978-989-8938-48-0


1a edição: setembro, 2019

Depósito legal: 461352/19



gato·bravo
rua de Xabregas 12, lote A, 276-289
1900-440 Lisboa, Portugal
tel. [+351] 308 803 682
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Para a minha esposa Laura,
parodiando Scott Fitzgerald,
ela é o começo e o fim de tudo.

Para meu netinho Felipe e
para os que estão a caminho,
a saga continua.

Para meus filhos, noras e genro,
Pedro e Camila Serrado,
Dudu e Carol Serrado,
João e Carol De Lucca,
e Camila Ganon,
família é tudo

Agradeço a minha doce esposa Laura, a minha sogra Laura Coimbra e a minha nora Camila por serem minhas leitoras críticas, que me ajudaram muito nesta difícil tarefa que é escrever.

A Carol Ganon De Lucca,
minha designer preferida.

A meus pais e minha família, sempre presentes.

Ao Márcio Vassallo, que sempre me coloca no caminho certo da palavra, além da magnifica quarta capa, emocionante.

A Luiz Antônio Aguiar, um verdadeiro mestre da literatura e meu amigo querido.

A Bel Noronha que fez um lindo trabalho sobre a obra e a verdadeira história do Cristo Redentor, construído pelo seu bisavô.

Ao meu saudoso amigo Ricardo Boechat, que compartilhava dos anseios de vermos um futuro melhor para o nosso país.

A Celso Possas Jr., editor, escritor e grande amigo, que sempre me apoiou nos meus projetos literários.

A minha sobrinha Glauce,
excelente fotografa que fez a minha foto.

A Editora Jaguatirica e em especial a
Paula Cajaty, por acreditar nos sonhos das pessoas e ajudá-los a tornar uma realidade.

Sumário

Rio de Janeiro, no calor de 2016.

Em algum lugar do Oriente Médio.

Rio de Janeiro, pouco antes do calor.

Domingo, aeroporto de Orly, Paris.

Mirthal chegou de madrugada...

Lucas acordou cedo...

As velas iam queimando lentamente...

No dia seguinte, ele passou às nove da manhã...

Às quatro da manhã...

Depois que leram o livro...

Bernardo, Mirthal e Arthos partiram...

Lucas foi dirigindo...

Bernardo e Arthos...

Lucas e Madeleine saíram do hotel...

Troyes...

A velha Kombi...

Mirthal ficou no convés...

Lucas e Madeleine chegaram à praça do Lido...

O voo foi tranquilo...

Leon acordou...

O despertador tocou...

Mirthal se levantou...

Lucas acordou bem cedo e Madeleine...

Mirthal quando partiu...

Lucas e Madeleine acordaram...

Rio de Janeiro, no calor de 2016.

Lucas sentia o sangue escorrer pelo rosto enquanto Madeleine, em lágrimas, lamuriava baixinho.

Je veux rentre à la maison. Quero ir pra casa. — Suplicou-lhe, e ele respondeu.

— Eu também quero, nós vamos sair daqui — disse sem ter a menor ideia de como iriam escapar dos marginais.

E lá ia a Kombi em disparada, aos solavancos. Mas uma coisa eles sabiam: aquele sujeito realmente os seguia. Lucas tentava entender onde tudo isso se encaixava, sabia que aquilo não era um simples assalto, era um sequestro. Não queriam seus pertences, queriam eles.

Lucas estava atônito e confuso com tudo. Com a pancada na cabeça, tentava concatenar seus pensamentos de como eles chegaram até ali. Enquanto isso, Madeleine tremia de medo e pegava um lenço para limpar seu ferimento. Agora ele sentia o gosto do sangue na boca, olhava para sua companheira enquanto corriam naquele carro velho e enferrujado, capturados, sob o olhar e as armas de seus sequestradores. Lucas ficou pensando em como tudo aquilo havia começado e começou a rezar, lembrava-se da imagem do Cristo e pediu que ele os salvasse.

Em algum lugar do Oriente Médio.

A chuva caía fina naquele final de inverno de 1127 d.C., as gotículas penetravam nas vestes de Mirthal. Entravam por baixo de sua armadura, aumentavam a sensação térmica do frio. Os sons da chuva fina caindo sobre as folhas das árvores com os das pedrinhas pisoteadas pelo seu cavalo quebravam o silêncio naquele tenebroso vale enevoado.

Apesar da leve brisa fria e da umidade, seu sangue fervia pela luta desenfreada para se salvar, numa corrida desleal. Um grupo de cavaleiros sarracenos o perseguia há dois dias, através dos campos de oliveiras, no caminho para Constantinopla. Isso deixara Mirthal sem dormir e se perguntando por onde andaria seu amigo Philibert. A última vez que o viu foi quando se separaram logo depois que partiram de Edessa, na hora em que um grupo de cavaleiros inimigos os atacou ferozmente, cavalgando em direção a eles aos berros de “Allahu Akbar”.

Antes de prosseguir a viagem, eles haviam descansado durante o dia na cidade para saírem acobertados pela escuridão da noite. Quando o sol se pôs, os dois cavaleiros partiram. Seguiram uma nova etapa de sua difícil missão achando que a estratégia os protegeria. Mas seus algozes conheciam bem as tramas dos inimigos. Na tentativa de escapar dos perseguidores, Philibert cavalgou em direção à beira de um riacho enquanto Mirthal galopava em direção às montanhas do vale que se encontrava adiante.

O começo desta jornada começara alguns dias antes em Jerusalém. Seu mestre, Hugo de Payens, havia lhes dados dois rolos de pergaminhos antes de partirem. Um para ele e outro para Philibert, companheiro dos tempos de monge e agora aprendiz de cavaleiro, assim como Mirthal. Colocaram os documentos dentro de alforjes presos à sela dos cavalos com a recomendação expressa de que, se capturados, os dois deveriam se livrar dos pergaminhos de qualquer maneira. Os documentos jamais poderiam cair em mãos inimigas.

Mirthal lembra-se das ordens de Hugo:

“Meus jovens e nobres aprendizes da Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo do Templo de Salomão, eu vos saúdo e lhes digo que ao final desta jornada não serão mais aprendizes e sim mestres de seus pupilos, assim como nós fomos para vocês. Vosso destino está muito longe, sua árdua e perigosa tarefa será levar estes documentos até San Gimignano, na região da Toscana, Itália.

Nesta cidade existe uma estalagem para receber cavaleiros cruzados, vocês verão a cruz de oito pontas na entrada, será fácil reconhecer. Lá, vocês deverão encontrar-se com um abade chamado Arthos da Abadia de Claraval, que os guiará até Bernardo, meu primo e um nobre religioso. Foi ele que em 1115 fundou esta abadia, sendo agora ele mesmo chamado de “Bernardo de Claraval”. Ele saberá o que fazer com os documentos. Suas vidas não são mais importantes que estes pergaminhos. Em caso de ataques, separem-se. Eles são de suma importância religiosa, o futuro da nossa igreja depende disso. Repito, em caso de perigo, escondam estes documentos em algum tronco de árvore ou mesmo numa caverna. Em última instância, destrua-os. Caso um de vocês sobreviva, nos envie um mensageiro, assim teremos alguma chance de recuperá-los. E que Deus tenha piedade de vossas almas”.

Mirthal recorda-se de suas últimas ordens e do diálogo seguinte, com o qual não concordou muito:

— Agora sigam, e não olhem para trás, se um cavaleiro cair, o outro, neste caso, deverá seguir em frente — ordenou Hugo.

— Mas mestre, eu… — Foi logo interrompido por Payens.

— Eu sei, meu jovem, nenhum cavaleiro da Ordem deixa o seu parceiro para trás, mas neste caso tens a minha bênção e a do nosso senhor para tal medida, sua missão é maior que suas vidas e por serem vocês meus melhores aprendizes vos confio tal missão.

— Pode deixar, mestre, sua benção e a de Jesus será nossa proteção — completou Philibert.

— O abade Bernardo um dia me falou as seguintes palavras, as quais repito agora a vocês para esta dura empreitada: “Vista teu corpo com a armadura de aço, e teu espírito com a couraça da fé”. A luz de Jesus os protegerá — falou Payens, com uma espada na mão esquerda. Com a outra fez o sinal da cruz.

— Amém. — Os dois foram uníssonos na resposta e repetiram o mesmo sinal.

— Vão agora, eu e os outros cavaleiros partiremos na próxima lua nova. Após a missão cumprida me encontre em Roma para juntar-se a nós.

Lembrava-se bem de Hugo se despedindo deles e de quando montaram seus cavalos e partiram para Edessa já com a noite chegando. Todos os dois sabiam da importância dos documentos, alguns eles mesmos haviam ajudado a encontrar nas escavações feitas nas ruínas das cavalariças de Jerusalém quando lá chegaram.

Enquanto cavalgava, para se distrair do frio e do perigo, Mirthal ficou recordando das primeiras aulas da história local, ministrada pelo seu tutor em volta da fogueira nas tardes de frio:

“Meus caros novatos, quero contar um pouco da história deste sagrado local que hoje habitamos. A história deste misterioso templo começa bem antes com o rei Davi, que na realidade foi construído pelo seu filho, Salomão, no ano de 1014 a.C. A construção seguiu os preceitos arquitetônicos projetados pelo seu pai, que na época havia contratado o arquiteto Hiram Abiff para executar este sagrado projeto. Este renomado construtor fora enviado pelo rei Hiram do Tiro em troca de azeite, vinho, cevada e trigo num acordo comercial. O rei Salomão queria construir um suntuoso palácio para guardar a Arca da Aliança num lugar digno e seguro, pois nela se encontravam as pedras dos Dez Mandamentos e outros objetos religiosos como a vara de Arão e um pote de maná.”Depois, Hugo acrescentou:

“Este templo foi saqueado e destruído com a invasão de Nabucodonosor II, durante o cerco a Jerusalém em 586 a.C. Dizem que nos documentos do profeta Jeremias estava escrito que a arca foi enterrada antes da invasão de Nabucodonosor numa caverna no Monte Nebo, morro onde Moisés teria visto a Terra Prometida. Os fiéis auxiliares de Jeremias que levaram a arca teriam marcado o caminho de ida, porém quando tentaram voltar para pegá-la não conseguiram encontrar de novo a tal caverna. Esta história não foi aceita pela maioria dos judeus e pelos protestantes, mas está no livro II de Macabeus. Dizem também que ela teria sido enterrada no subsolo das ruínas do templo, outros contavam que teria sido levada na época da invasão e destruída para roubar o ouro que a cobria”.

Em seguida, Hugo lembrou que o templo tinha sido destruído quatro vezes e por último reconstruído pelo rei Herodes, na época de Jesus, para agradar aos judeus.

“O templo levou seu nome, mas foi destruído mais vez no ano de 70 d.C. pelo general Tito, comandante militar romano na grande revolução judaica. No século VII, um califa chamado Abdal Malique mandou construir uma mesquita chamada de Al Aqsa. Essa mesquita tinha sido construída sobre as ruínas do templo, mas ela foi destruída por um terremoto duas vezes, uma em 748 d.C. e outra em 1033 d.C. Ela foi reconstruída de novo por um outro califa na época, mas depois das cruzadas quando os cristãos conquistaram Jerusalém, o lugar serviu como palácio real por algum tempo e depois foi abandonada acabando por virar uma cavalariça. Quando estivemos com o rei Balduíno II o lugar nos foi oferecido para ser o nosso alojamento”.

Hugo falava com tanta sabedoria e firmeza em suas palestras que todos os novatos monges guerreiros, sem pestanejar, prestavam atenção a uma parte importante da história que viviam naquele tempo.

Mirthal ouviu dizer que Hugo de Payens havia chegado à Terra Santa com outros cavaleiros cruzados, quando o conde Hugo de Champanhe organizou uma cruzada a Jerusalém em 1114. Na época Payens era vassalo de Champanhe. O conde tinha sido grande doador de dinheiro e terras para a Abadia de Claraval da Ordem de Cister e o abade Bernardo era muito grato a ele. Alguns anos depois Hugo de Champanhe também faria doações para a Ordem dos Cavaleiros Templários no ano de 1125 quando retornou a Jerusalém e acabou se tornando membro desta ordem.

Os jovens aprendizes ouviam seus mestres contarem como essa organização militar religiosa havia começado. No primeiro ano do reinado de Balduíno II em 1118 d.C. quando se reuniu com Hugo e mais oito cavaleiros fiéis a ele, o rei falou que necessitava de homens bem treinados, que fossem seus guardiões e que coordenassem a proteção dos peregrinos que chegavam à Terra Santa.

O rei Balduíno ficara encantado com a devoção e a coragem desmedida daqueles cavaleiros vestidos de branco com uma cruz vermelha no peito, que eram valentes monges guerreiros com uma obediência cega a Deus e fidelidade ao papa. Foi quando então Balduíno deu a eles as cavalariças para se instalarem, sob a condição de serem seus protetores e também protegerem seus peregrinos. Porém, na realidade, eles pouco ajudaram nestes nove anos que lá estiveram.

Mirthal lembrava também de quando Hugo contou a ele e a seus cavaleiros de confiança o que haviam achado ao entrarem no antigo Templo de Salomão. Quando chegou ao templo o lugar estava em ruínas e havia se transformado num estábulo. Hugo falou de como todos trabalharam duro para reformar as acomodações para melhor se instalarem. Ele lembrava do dia em que Godfrey de Saint-Omer, Godemaro e outros cavaleiros, foram derrubar uma parede para ampliar uma das salas do templo e acharam um poço com uma escada de pedras atrás da parede falsa. Hugo foi logo chamado e então, ele e seus comandados desceram com uma pequena lamparina e se aventuraram pela escuridão adentro pela estreita escada de pedra em caracol, a qual descia a uma sala pequena que dava num corredor onde esta se abria para uma sala maior. As salas secretas deveriam ter sido um espaço de fuga ou de proteção do antigo rei e de sua família, ou também para abrigar seu tesouro.

Mirthal andava naquela chuva encharcado, se distraía com pensamentos do passado recente esquecendo um pouco dos seus inimigos que estavam a seu encalço. Lembrou-se de Godemaro contando de quando Hugo desceu pela primeira vez naquela estranha sala secreta:

“O cheiro de mofo com a umidade causava uma sensação de torpor e náuseas, provavelmente estava fechada há muito tempo, mas não era só isso, além do mofo tinha um cheiro cadavérico no local, como uma tumba. Lembro-me quando ouvi a voz de Hugo me chamando:

— Godemaro?

— Sim, Hugo, estou logo atrás de ti.

— Traga ferramentas e mais lamparinas, avise a Arcambaldo para pegar mais um homem e montar vigilância na entrada do templo, ele tem ordens expressas para não deixar ninguém entrar, acho que temos alguma coisa importante aqui.

— Pode deixar. — Me virei para o primeiro cavaleiro atrás de mim e estava repassando as ordens quando Hugo me chamou de novo.

— Godemaro? Estás vendo o que vejo?

Hugo com sua pequena lamparina mostrava algo brilhando como um contorno de uma arca dourada, com umas esculturas de querubins na tampa. Ao lado dela havia restos de corpos de guerreiros com lanças que jaziam inertes, como se fossem fantasmas guardiões daquela caixa que tudo indicava ser a Arca da Aliança. Respondi para ele:

— Sim, meu irmão e amigo, mas não quero acreditar, não pode ser o que estou pensando. — E nós dois nos ajoelhamos.

Apesar da pouca luz dava para ver na parede atrás da arca uma cruz com os dizeres “INRI” entalhados na madeira. Nós sabíamos o que aquilo significava, INRI era o anacrônico em latim de “Iesus Nazarenus, Rex Ludaeorum” e oramos. Após alguns minutos de excitação e perplexidade, nós suspeitamos o que havíamos encontrado. Logo depois, Godfrey de Saint-Omer chegou com outras lamparinas e logo deram mais luz àquele insalubre ambiente e ele num susto exclamou:

— Meu Deus, que ele nos perdoe pela profanação de seu esconderijo — falou espantado.

No instante em que a luz dava lugar à escuridão, vimos ânforas carregadas de pergaminhos ao lado da arca, alguns códices espalhados pelo chão e um jazigo sem identificação que estava num dos cantos com outros corpos de soldados também com lanças jogadas ao solo. Então Hugo disse:

“São corpos de soldados voluntários que ficaram de guardiões quando lacraram esta sala para morrerem em missão de proteger seu maior tesouro”.

Ao chegarmos perto do jazigo, sentimos um frio na espinha. Havia na tampa um desenho na forma de um peixe que significava o que todos ali já desconfiavam, mas preferimos não falar nada naquele momento. À medida que as outras lamparinas iam iluminando a sala, vimos que o espaço era maior do que havíamos imaginado. Ao fundo havia um sem números de caixas empilhadas, algumas com lacres com dizeres em aramaico, outras em latim e copta, alguns sarcófagos egípcios e uma enorme estante cheia de documentos e papiros. Parecia que eram livros e pergaminhos antigos da biblioteca de Alexandria. Algumas das caixas estavam fechadas com um lacre vermelho com um símbolo que deviam ser do imperador romano Tiberius, outras semiabertas com tesouros à mostra. Lembro-me de quando Hugo se aproximou de uma das caixas, ele notara algumas moedas no chão enterradas na areia, quando pegou uma delas viu num dos lados três espigas de algo que parecia ser uma folha de cevada e do outro lado tinha um simpulum, utensílio usado pelos sacerdotes romanos em cerimônias religiosas. Nossas suspeitas se confirmavam ainda mais, o que me deixou lívido e mudo. Ao meu lado, Godfrey perguntou:

— O que vistes, homem de Deus?

— Ele — respondi.

E nós três nos ajoelhamos e os outros cavaleiros que entravam na sala nos acompanharam em silêncio. Payens e eu sabíamos que aquelas moedas foram cunhadas entre 29 e 31 d.C., aquelas moedas eram “pilatos” e aquele símbolo de um peixe no jazigo significava para os cristãos primitivos “Ichthys”, que era um outro anacrônico e significava “Iesus Christos Theous Yios, Soter”.

Godemaro gostava de Mirthal, ele o admirava pela sua inteligência e pela sua destreza com a espada, achava que seria um mestre cavaleiro um dia.

Mirthal havia chegado à Jerusalém em 1120 com uma caravana de peregrinos para encontrar-se com os Cavaleiros Cruzados, mas lá, pela facilidade com que manejava uma espada, foi logo incorporado ao que agora eram chamados de “A Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo do Templo de Salomão”, ou simplesmente Templários, nome dado em razão do lugar das ruínas onde moravam.

Ele tinha completado 18 anos quando veio com esta leva de peregrinos e mais alguns outros cavaleiros cruzados, entre eles seu amigo Philibert, que também fora deixado em uma abadia quando era criança para se transformar em um monge. Naquela época era muito comum um pai deixar seu filho mais novo, ou sua filha, em um mosteiro para se transformar em um homem religioso, num padre, e a mulher, numa freira. Ali ele sabia que seu filho teria uma moradia, instrução e comida, às vezes com melhores condições do que se vivesse em casa com os próprios pais.

Diga-se de passagem, ser um religioso e morar num mosteiro era assegurar que este filho teria uma educação muito melhor que os demais. Afinal, padres eram letrados, ter instrução era uma coisa muito rara e apenas 1% da população na Europa sabia ler e escrever naqueles tempos. Sua rotina como monge era acordar antes de o sol raiar, rezar, comer um pedaço de pão com água ou às vezes leite de cabra, rezar de novo, fazer as tarefas do mosteiro, tal como cuidar da horta, limpar, cozinhar, rezar nos intervalos e ajudar na hora da missa, entre outras coisas.

Uma delas eram as aulas de catecismo e de aprendizado com seus monges professores. No final do dia comia um caldo ralo de legumes e se tivesse sorte, com algum pedaço de carne dentro, depois ia dormir, não sem antes rezar mais uma vez. Mirthal já não se lembrava mais dos seus irmãos nem de como era sua mãe, que morrera de peste quando tinha oito anos. No ano seguinte seu pai o enviaria para a Abadia de Cluny na região da Borgonha.

Perdido na escuridão daquele vale, ele parou com seus devaneios em face do perigo, sua mente agora só pensava em como sair dali. Porém suas memórias ainda o martelavam com suas lembranças desde sua chegada a Jerusalém, de quantas lutas e mortes que ele teve que enfrentar no caminho, dos aprendizados com seus mestres padres, do duro e cruel treinamento dado pelos monges cavaleiros, do que Hugo e Godemaro haviam falado das escavações que ele viu no templo e do que eles haviam encontrado por lá. Um misto de estafa, confusão mental, adrenalina e muito frio.

Quando Hugo contou a eles o que havia achado, juntou todos os outros aprendizes e cavaleiros que estavam no templo para o juramento secreto de jamais revelar o que fora encontrado no subsolo daquelas ruínas. Sabia que estes pergaminhos que levava eram parte de um grande e importante tesouro e que se caísse em mãos erradas, sua religião estaria abalada e ele estaria condenado ao inferno por não ter conseguido proteger o segredo de sua igreja e de sua fé cristã. Pensou de novo por onde andaria o amigo.

Philibert havia fugido por dentro de um riacho para não deixar pegadas, estava mais ao sul quando se separaram, não sabia também por onde o amigo tinha ido, mas tinha certeza que os inimigos estavam por perto. Foi quando avistou um pequeno desfiladeiro com montanhas íngremes de difícil acesso e viu de longe uma caverna.

— Meu Deus, por favor, não me abandonais, vos imploro. — Murmurou, tremendo de frio.

Caminhando agora a pé com seu cavalo, ele ia andando bem devagar para não fazer barulho, sabia que seus perseguidores podiam estar na espreita, volta e meia ele conseguia ouvir o trotar dos cavalos ao largo. Depois de algumas horas caminhando, achou esta pequena caverna que dava para acomodar seu cavalo na entrada e se proteger do frio e da chuva. Sabia que teria pouca chance de sair dali vivo, então pensou: “Vou guardar este alforje aqui dentro, depois vou até Constantinopla, acho Mirthal, pego reforços e volto para pegar estes pergaminhos, meus inimigos estão por perto, posso senti-los”.

Descansou um pouco para recuperar as forças. Estava exausto, e quando era ainda de madrugada se levantou, montou no cavalo e partiu. Depois de algumas horas cavalgando já ao raiar do sol sentiu-se livre dos seus perseguidores, sentia o vento gelado da manhã tentando lutar contra aquele pequeno raio de sol que começava a esquentá-lo.

Philibert respirou o ar fresco matinal e achou que iria escapar. De repente sentiu uma pontada nas costas. Ao olhar para o peito viu uma mancha de sangue e a ponta de uma flecha que havia atravessado seu corpo, sabia que seu fim havia chegado e seus últimos pensamentos antes de cair morto foram:

“Que Deus possa perdoar a minha falha...”

Mal acabou aquele derradeiro sussurro, ele caiu ao solo com seus algozes já ao lado dele bradando gritos de guerra que ecoaram naquele vale até os ouvidos de Mirthal. Ele parou por um instante e rezou. Pressentia que seu maior amigo havia tombado.

“Que Deus tenha piedade de sua alma, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém”.

Levantou-se, montou seu cavalo e partiu em direção à Constantinopla e não viu mais seus inimigos, provavelmente estavam satisfeitos com a sua presa. Tinha uma missão e ela não incluía voltar para ajudar seu amigo, lembrou-se do que ele carregava e das ordens do seu mestre. Tinha que mandar uma mensagem a Hugo para pedir reforços para o resgate do corpo e dos pergaminhos que estavam com Philibert, que conhecendo bem seu amigo, sabia que ele havia escondido estes documentos antes de morrer.

Relembrou o que Hugo de Payens havia lhe dito. Se um deles fosse capturado antes de chegar ao seu destino, o sobrevivente deveria enviar um mensageiro até Jerusalém para avisá-los e se possível dizer onde o corpo deveria estar, daí em diante eles cuidariam do resgate. Dito e feito, após mais alguns dias de viagem sem descanso, Mirthal chegou à Constantinopla e foi diretamente falar com o Imperador João II Comneno.

Recebido com deferência pelo rei como um Cavaleiro da Ordem de Cristo, explicou parcialmente sua missão e pediu um cavaleiro veloz para levar a sua mensagem para Payens em Jerusalém, a qual escrevera num papiro em código que aprendera nas cavalariças do Templo com seu mestre. Após um dia de descanso seguiu para San Gimignano, não sem antes travar algumas lutas, agora não mais com sarracenos e sim com meliantes e assaltantes de estrada. Mas nenhum deles fora páreo para o melhor aprendiz da ordem.

Rio de Janeiro, pouco antes do calor.

Sob aquela manhã chuvosa de outubro de 2016 seguia Lucas no ônibus rumo à estação do metrô do bairro onde morava. Eram sete e meia da manhã e ele já de mau humor por conta do tempo. Olhou para cima, viu o Cristo Redentor coberto pelas nuvens e pensou: “Essa chuva não vai parar tão cedo”, o Cristo quando ficava coberto era um sinal para os cariocas que o tempo ficaria fechado.

Todo dia era a mesma rotina de segunda a sexta, de casa para o trabalho, do trabalho para faculdade para dar aulas e de noite voltava para casa. Lucas morava numa casa que fora do seu avô no bairro da Usina no alto da Tijuca. Sua casa ficava numa ruazinha sem saída chamada de Rua da Selva, que acabava nos limites da mata onde começava a floresta.

Era uma casa simples comparada às mansões ao redor, tinha três quartos com uma boa varanda na frente e um bom jardim ao fundo, onde ele ficava nos finais de semana cuidando de sua pequena horta. Lucas adorava cozinhar com os ingredientes que costumava pegar no seu canteiro de hortaliças, como tomilho, coentro, hortelã, salsinha, entre outras ervas. Quando estava ventando em dias de sol, ele pegava sua pequena prancha de kitesurf e ia para a praia do Pepê. Eram suas duas paixões, sua horta e o mar.

Lucas vivia uma vida solitária desde o fim de sua última relação que já fazia três anos. Tinha morado junto com uma colega da faculdade chamada Regina que fora sua namorada de adolescência, os dois eram casados na época quando se reencontraram numa destas festas de colégio, mas apesar dos olhares e do bate papo nada aconteceu.

Cinco anos depois se reencontraram de novo, desta vez numa exposição na Biblioteca Nacional, lugar onde ele trabalhava. Agora os dois estavam solteiros, quer dizer, ela separada e ele viúvo. Foi numa exposição de gravuras antigas do acervo, tinha obras de Debret, Visconti, Bernardelli, entre outros, por conta da inauguração da nova ala da biblioteca dedicada a obras que retratavam o Brasil do final do século XIX ao começo do século passado que ele ajudara a organizar.

Começaram a sair e moraram juntos por alguns anos, mas suas idiossincrasias aliadas à falta de habilidade em conseguir conciliar seus momentos de lazer, como o kitesurf e a horta, com as necessidades de sua ex-companheira, acabaram com o relacionamento. Por exemplo, ela adorava sair à noite, Lucas odiava, adorava acordar cedo para ir cuidar da horta ou velejar nos finais de semana.

Ela gostava de teatro, shows, sair com as amigas para bares e ele gostava de cinema e odiava noitadas, principalmente bêbados inconvenientes e multidões. Separaram-se sem brigas e em comum acordo, ela saiu da sua casa e voltou para São Paulo para morar com os pais, e ele seguiu a vida em sua rotina simples. Achava que depois deste relacionamento nunca mais iria se casar, fora mais uma fuga contra a solidão mútua do que um amor de verdade.

Depois ele teve um ou outro caso, um deles com uma estagiária do trabalho, consequência de uma festa de fim de ano do escritório e algumas cervejas a mais e o outro fora a mãe de uma aluna que insistia em querer sair com ele, criando tal constrangimento a ponto de ele não conseguir se desvencilhar.

Lucas havia herdado a beleza hispânica da mãe (ela, como seu avô, era espanhola da Catalunha, da cidade de Girona) e o corpo esguio do pai. Era moreno com olhos castanhos esverdeados, tinha 1m85cm, corpo atlético por conta do esporte, cabelos negros curtos, barba sempre por fazer e um sorriso simpático, quando sorria, o que era raro.

Estava com 41 anos, mas com cara de mais jovem, a não ser pelo ar bucólico de tristeza que às vezes o aparentava ser mais velho do que era. Usava sempre calça jeans, camisa polo e tênis, odiava sapato, se pudesse viveria de sandálias.

Sua primeira mulher, Florença, havia morrido quando voltava de Cabo Frio com os pais dele, num acidente de trânsito. Naquele dia Lucas perdera as três pessoas que ele mais amava, perdera sua juventude, seu humor, seu sorriso e sua alegria de viver. A família tinha uma casa de veraneio neste balneário localizada no norte do estado, a duas horas e meia de viagem quando não tinha trânsito.

Ele havia voltado um dia antes por conta de um trabalho extra da faculdade, era um passeio que aconteceria na manhã de domingo pela Biblioteca Nacional com seus alunos de História. Florença e os pais dele voltaram no dia seguinte, mas uma tragédia inesperada aconteceria.

Lucas nunca se perdoou, sentia-se culpado por não ter vindo junto com eles, se odiava por isso. Em alguns momentos pensara em se matar, mas lembrava da mãe, Dona Rita, católica fervorosa que jamais o perdoaria por tal gesto.

Chegava à Praça Saens Peña para pegar o metrô, preferia deixar o carro na garagem e enfrentar o transporte público, além da economia era também em função do trânsito caótico da cidade, pois chegava mais rápido. Olhou para o relógio da praça que mostrava as horas e a temperatura local, “17º graus? Só pode ser sacanagem, até o tempo está doido”. Uma primavera com cara de inverno, afinal esta temperatura para um carioca era igual a um frio siberiano para um russo.

Chegou ao escritório às oito e meia, como sempre, Lucas chegava todo dia no mesmo horário, seu pai havia lhe ensinado que pontualidade era sinal de respeito e educação. Pensara em seus pais durante o trajeto, “se for sair, leva um casaco”, sua mãe sempre falava assim quando chovia e seu pai, o velho Joaquim, dizia, “casaco é um agasalho que o filho usa quando a mãe sente frio” e deu um leve sorriso naquele momento.

— Bom dia, seu Mario — falou Lucas ao chegar à biblioteca e encontrar o velho vigia do seu trabalho, um gaúcho mais carioca que nunca, que sempre se cumprimentavam no café da biblioteca pela manhã e falavam sobre o futebol do final de semana.

— Bom dia, guri. Quase deu pra gente ganhar. — Os dois torciam pelo mesmo time, o Flamengo.

— Pois é, mas até que o empate fora de casa não foi ruim.

— Mas meu filho, dava pra ganhar, nosso time era melhor que o deles e que juizinho sem vergonha que não deu aquele pênalti — falou o velho vigia.

— Mas é assim mesmo, um dia da caça outro do caçador, já tivemos erros a favor e contra, enquanto não colocarem a tecnologia a favor do esporte ficaremos à mercê dos erros humanos, acontece.

Nisso foram interrompidos por Solange, sua colega de escritório, chamando-o para uma reunião com sua chefe.

— Bom dia, seu Mario. Bom dia, Lucas. Vamos rapaz, Dona Carmem já chamou a gente, depois vocês conversam — disse ela segurando a porta do elevador.

— Ok Sô, tenho que ir meu amigo, o dever me chama. — Lucas se despediu, o seu Mario acenou para a Solange e voltou para o seu posto na entrada do prédio.

Ele foi para o quinto andar para a sala de reunião com a Solange e outros colegas da direção, era a reunião de segunda-feira de manhã que ocorria toda a semana. Além das avaliações funcionais dos empregados, dos estagiários e da manutenção dos arquivos, tinha a discussão sobre os calendários de eventos, as finanças, além dos novos assuntos de pauta.

Dona Carmem era uma mulher dos seus sessenta e tantos anos, mas com uma saúde de ferro. Era sua chefe e antiga colega de sua mãe, as duas foram professoras do estado assim como seu pai.

Ser professor era uma tradição da família. Depois da aposentadoria, seus pais tinham aberto uma pequena escola no bairro onde moravam e que durante algum tempo funcionou muito bem, mas nos últimos anos, pela crise geral e por falta de segurança, tiveram que fechar as portas.

Lucas, que trabalhava no colégio, depois disso teve que correr atrás de um emprego, conseguiu este cargo na biblioteca graças à Dona Carmem e a seu excelente currículo. Formara-se em arquitetura numa universidade particular da classe média alta na Zona Sul da cidade, graças a uma bolsa de estudos que havia conquistado.

Em função de suas ótimas notas fora convidado a fazer uma pós-graduação em História da arte e doutorado num convênio com a Universidade de Louisville no estado do Kentucky, nos Estados Unidos. Nos anos que lá passou, mudou em muito seu conceito sobre política e sobre suas posições partidárias, afinal teve a chance de viver num país do primeiro mundo em um sistema realmente capitalista e democrata, onde a meritocracia funcionava e as leis idem.

Seus pais, que foram ativistas políticos no passado e se desencantaram com os últimos governos, assim como ele, achavam e com razão, que todos eram iguais, hoje ele se considerava um liberal.

A reunião começara.

— Lucas, como vai o nosso departamento de informática? Conseguimos o convênio com aquela empresa de computadores? Precisamos correr com as doações, queremos levar a biblioteca aos alunos por meio digital, que é uma maneira que eles conhecem, e muito bem, antes do final do ano — disse Dona Carmem a respeito do programa que Lucas havia criado de aproximar a leitura aos alunos carentes. Era um projeto para captar recursos ou doações de computadores e fazer um link para pesquisa e entretenimento entre as escolas públicas e o acervo da Biblioteca Nacional, um belo plano educacional.

— Claro, Dona Carmem, já obtive o sinal positivo da empresa e da prefeitura, mas para falar com o novo prefeito está difícil, só pedindo ajuda aos santos, o cara não para de viajar desde que foi eleito. Com relação às escolas estaduais tivemos que aguardar a nomeação do novo secretário de educação, o antigo, como todos sabem, foi preso por desviar o dinheiro das merendas, uma vergonha — falou Lucas.

A reunião transcorria bem até o final, outros itens foram abordados e quando acabou Dona Carmem chamou Lucas e disse:

— Preciso falar com você em particular, não se levante. — Ela se despediu dos outros presentes à reunião e quando todos saíram, fechou a porta e falou:

— Como você está, meu filho? — perguntou, agora que estavam sozinhos.

Ela ficou com muita pena dele na época do acidente fatal, na realidade foi ela quem o convidou a ir trabalhar na biblioteca. Dona Carmem tinha meio que adotado ele, já que nunca havia se casado e não tinha filhos. Gostava de Lucas, de sua capacidade e inteligência, fora uma grande aquisição para a biblioteca, ele dinamizou o setor de relacionamento com o público. Lucas, além dos programas sociais, revitalizou todo o departamento de informática e de exposições, trazendo o povo de volta à casa.

— Estou bem, madrinha, às vezes um pouco cansado, só isso. — Ele a chamava de madrinha quando estavam sozinhos.

— Meu filho, a tristeza não está na vida, assim como a felicidade, está tudo dentro de nós, nos nossos corações, você precisa é de um novo amor — falou ela, e ele riu.

— Madrinha, a senhora está querendo que eu arrume sarna pra me coçar? Já basta um casamento, e depois aqui no Rio pode faltar emprego, segurança, hospital, mas se tem uma coisa que nessa cidade não falta é mulher.

— Não estou falando de sexo, meu filho, estou falando de amor, e isso não é tão fácil assim.

Tell me about it — respondeu ele, e continuou. — No momento estou mais preocupado com nossos projetos.

— Eu sei, e fico muito grata por isso, mas você precisa pensar um pouco em você também, há quanto tempo você não tira férias? Cinco anos, seis?

— Seis, sete anos, nem me lembro mais.

— Então é hora de parar, não acha?

— Por favor, madrinha, não me faça tirar férias, eu iria pirar, agora não.

— Bom, entendo, mas vou lhe dar uma missão e quando acabar, você vai tirar um mês de férias, queira ou não, combinado?

— Combinado, mas qual seria esta missão?

— Simples, o professor Marcel, meu amigo da Escola de Belas Artes de Paris me pediu uma ajuda, uma de suas assessoras vem ao Brasil na próxima semana e ele me pediu alguém de minha confiança para ajudá-la num determinado projeto aqui na cidade. Ela vai ficar aqui por um mês fazendo uma pesquisa e precisa de uma logística, podemos lhe dar uma sala no quarto andar que está fechada perto da sua e também o monsieur Marcel me pediu alguém com conhecimento da nossa História contemporânea e você é o melhor nome que tenho para esta tarefa, além do que, aproximar a Biblioteca Nacional com a “L’École Nationale Supérieure des Beaux-Arts” é uma missão de muita responsabilidade e eu só confio em você.

— Poxa, obrigado pela confiança, madrinha, mas ser babá de uma gringa na hora que eu tenho tanto trabalho?

— Deixa que eu resolvo isso e a Solange está pronta pra assumir os casos pendentes. Cá entre nós, você já deixou tudo “mastigadinho” pra quem fosse assumir o seu trabalho. Eu já vi seus relatórios e você já adiantou bastante, portanto não há desculpa, sua próxima missão será aproximar as relações do Brasil com a França.

— Parece até missão diplomática — falou ele.

— E é — respondeu ela. — E isso agora é uma ordem, pode falar com a Solange que ela já está a par disso — completou sem o deixar falar.

— Ok, madrinha, quem sou eu para recusar um pedido seu, ou mesmo uma ordem?

— Agora larga esse sorrisinho irônico e vem cá, me dê um beijo nessa madrinha que te ama muito e vá procurar a Solange, quero até sexta-feira tudo resolvido. A moça chama-se Madeleine e chega na segunda pela manhã num voo da Air-France vindo de Paris, no Galeão, depois te passo os detalhes do voo. E se prepare para recebê-la. Ela vai ficar num hotel em Copacabana, portanto não se atrase, coloque uma camisa social, faça a barba e penteie este cabelo.

— E qual seria a missão dela?

— É sobre um processo a respeito da verdadeira autoria do Cristo Redentor que um dos familiares de um escultor francês abriu contra a Arquidiocese do Rio de Janeiro na justiça de lá, tentando cobrar royalties sobre a exploração da imagem. A francesa vem aqui como uma espécie de mediadora da questão, ninguém quer advogar em uma causa perdida e a justiça de lá, por conta do processo, pediu um parecer à Escola de Belas Artes de Paris antes de prosseguir com a ação, daí o professor Marcel, meu amigo, me pediu uma ajuda.

— Cristo? Do Corcovado?

— Você conhece outro?

— Não, claro, quer dizer, pode deixar, mas pelo que eu me lembro há alguns anos teve um documentário a respeito disso e me parece que a autoria foi de um brasileiro.

— Exato, mas quando se envolve dinheiro até os santos vão para o banco dos réus. Agora, vá até a sala da Solange que ela está te esperando, e depois desta missão já sabe, vai pra Bali ou Havaí, vai pegar umas ondas, arrumar uma namorada, fumar uns baseados, sei lá, vai se divertir — falou ela às gargalhadas pela cara de espanto dele.

— Madrinha, a única coisa que eu posso lhe dizer é que você é um “barato”.

Lucas deu-lhe um beijo de despedida e ela continuou.

— Agora fora daqui que temos muito trabalho.

— Sim, senhora, minha chefe mandou, tá feito. — Saiu da sala com sorrisos mútuos.

Chegou à sala da Solange e ela já o esperava:

— E aí, bonitão, como foi com a madrinha?

Solange, ou Sô para os íntimos, era uma amiga querida e de sua confiança. Ela era destas moças garbosas que quando passava na frente de um canteiro de obras o cronograma atrasava. Usava sempre aquelas calças jeans apertadas que mal dava para respirar, dona de um corpo mais avantajado, digamos assim, ela fazia sucesso no “Cordão do Bola Preta” com o namorado todo o sábado quando tinha baile ou na quadra da escola de samba do Salgueiro, perto do lugar onde morava. Era uma pessoa querida por todos, daquelas que conhecia todo mundo e todos a conheciam.

— Poxa Sô, pega leve, madrinha só entre nós — falou ele acabrunhado, não queria confundir amizade de Dona Carmem com o trabalho, não admitia qualquer tipo de protecionismo, tanto é que ele era sempre o primeiro a chegar ao trabalho, querendo dar o exemplo.

— Fica frio, menino, sou eu, a sua Sô, sua amiga, lembra? E não tem ninguém por perto. Olha, fique tranquilo que eu toco as coisas por aqui, e quem sabe se a tal francesinha não é uma gata, hein? Une o útil ao agradável.

— Sô, minha amiga, olha lá, onde se come o pão não se come a carne.

— Até parece, você acha que eu não sei das coisas? — E os dois riram.

Solange lembrava bem do caso dele com uma estagiária na festa de fim de ano, mas como ela logo saiu no fim do estágio, as coisas não evoluíram, nem para o bem ou para o mal, e ele entendeu o comentário.

— Bom, vamos ao trabalho, vou ficar aqui com você o resto da semana te passando tudo, e depois a Dona Carmem me mandou dar a sala 406 pra a tal gringa trabalhar.

— Foi bom você falar, vamos até lá pra dar uma geral, ver se está tudo ok, afinal a sala foi reformada, mas eu ainda não testei o computador e quero ver também se o mobiliário já foi entregue pelo depósito.

— Então vamos lá.

E os dois seguiram para a verificação da sala de sua nova “hóspede”. Lucas passou o resto da semana cuidando dos assuntos gerais para não ter nenhuma pendência, queria dar o melhor tratamento à tal representante da Escola de Belas Artes de Paris, sabia que sua madrinha estaria de olho e ele não gostaria de decepcioná-la.

***

Domingo, aeroporto de Orly, Paris.

Madeleine estava sentada na sala vip tomando sua flute de Veuve Clicquot enquanto aguardava a chamada de seu voo nº AF 442 para o Rio de Janeiro pela Air France, ela ainda tinha uma hora antes do embarque. Estava lendo um livro de Jorge Amado, Dona Flor e seus dois maridos. Madeleine lia bem em português, queria tirar a “ferrugem” da língua que iria ouvir e falar nos próximos trinta dias.

Ela tinha aprendido o idioma por conta do seu tio Eduardo, que era brasileiro e que havia se casado com a irmã de sua mãe, a tia Emilie. Ela gostava quando ele ficava traduzindo histórias de Monteiro Lobato para ela na sua infância, estava familiarizada com a língua de Dona Benta e companhia. Seus tios se casaram por causa de uma viagem que sua tia havia feito na década de 70 quando fora conhecer, com um grupo de amigas, o Carnaval do Rio de Janeiro e as Cataratas de Foz do Iguaçu.

Conheceu seu tio Eduardo num camarote durante o desfile das escolas de samba no Rio. Ele era um empresário de navegação e tinha acabado de vender seu estaleiro por vários milhões de dólares. Estava começando a se divertir na vida quando conheceu sua tia, que sambava desajeitadamente no camarote ao lado.

Rapidamente, ele passou para o camarote vizinho e nunca mais se desgrudaram, para desespero de suas amigas e da família, já que ela fugiu dali para uma viagem aos Estados Unidos com ele, dias depois abandonando o grupo. Depois de uma noite de muita bebida, após um show do Tony Bennett em um cassino em Las Vegas, acabaram por se casar com um padre vestido de Elvis Presley numa destas igrejas de casamento de lá, que era um misto de igreja e “fast-food”.

Para tristeza do resto família, e para o deleite de Madeleine, a foto de casamento foi tirada com eles brindando com um cheeseburger e uma Coca-Cola, claro que sua tia Emily fez essa foto de propósito quando mandou para eles pelo correio. Ela, na época, elegeu sua tia como ídolo eterno, já que toda a sua família era muito antiquada e religiosa, e consideraram aquele ato como insanidade.

Como o tio Eduardo era muito rico e a família dele descendia de uma família nobre inglesa que imigrou para o Brasil, suas loucuras foram “perdoadas” em nome do verdadeiro amor que um sentia pelo outro. Madeleine achava aquela história o máximo, sentia admiração e um pouco de inveja de sua tia, considerada a maluquinha da família.

Madeleine morava em Paris, mas nasceu na região da Normandia num bucólico vilarejo chamado Vierville-sur-Mer, local onde os aliados, durante a Segunda Grande Guerra, invadiram a França em seis de junho de 1944, mais conhecido como o “Dia D”.

Seus avôs foram da resistência francesa e seus pais nasceram logo depois da guerra, eram vizinhos, cresceram juntos, foram namorados desde a adolescência e acabaram se casando na pequena igreja de Saint-André na cidade. Ainda jovens, foram estudar em Paris. O pai, Thierry Bresse, se formou em engenharia e a mãe, Joelle, se formara em psicologia. Após a formatura, ambos retornaram à sua cidade natal onde tiveram dois filhos, um casal, Madeleine e seu irmão Bastian.

Madeleine era mais impulsiva e mais inquieta que Bastian, já o resto da família era mais conservadora. Eles jamais admitiriam morar em outro lugar que não fosse na sua cidade natal, muito menos fora da França. Madeleine tinha um pouco de sua tia Emilie dentro dela, como seu pai falava quando ela o contrariava, apenas um pouco mais contida. Foi logo cedo morar em Paris com uma amiga onde terminou a escola secundária e depois emendou na faculdade de direito na Sorbonne, mas nunca chegou a exercer advocacia para a decepção de seu pai.

Gostava era de arte, mas como sua família era rica ela não dependia do emprego para se sustentar. O pai tinha uma empresa de engenharia que havia sido comprada por uma multinacional por causa dos contratos que a empresa dele mantinha com o governo francês e agora, com o dinheiro no banco, ele e sua mãe usufruíam das mordomias do “dolce far niente” da vida de aposentados abastados.

O velho Thierry havia feito a partilha dos bens em vida, deixando seu irmão e ela muito bem financeiramente, o que lhe dava o conforto e um poder de barganha para comprar a coisa mais preciosa que temos: o tempo. Com o dinheiro recebido, ela havia comprado um apartamento na Rue de Vaugirard nº 48, bem em frente ao Jardim de Luxemburgo, um lugar muito valorizado e que tinha sido um ótimo investimento. Comprara o imóvel de um casal de velhos que se mudara para Marselha, era no último andar e precisava de uma boa reforma, dinheiro que os antigos proprietários não tinham e acabaram por aceitar sua justa oferta. De lá ela via todo o palácio de Luxemburgo, o rio Sena, a Île de la Cité, com a catedral de Notre-Dame, e nos fundos via a igreja de Saint-Sulpice. Ficava perto de tudo que ela gostava, dos cafés, das brasseries, dos bares, da vida noturna divertida, e apenas a 6 minutos de bicicleta do seu trabalho, a Escola de Belas Artes que fica na Rue Bonaparte 14, pertinho do Sena.

Depois da faculdade de Direito, resolvera fazer uma pós-graduação em design e História da arte, sendo uma aluna destacada e brilhante. Madeleine tinha como um dos seus professores o monsieur Marcel, e este quando assumiu a direção da escola, convidou-a para trabalhar com ele no departamento jurídico da instituição.

Ela sempre trabalhava nos assuntos mais delicados, como casos de obras roubadas durante a Segunda Guerra e sua devolução aos verdadeiros donos, ou sobre autenticidades de obras e seus artistas, e em casos jurídicos da escola, entre outras coisas. Agora recebeu uma incumbência de ir ao Brasil para fazer um parecer para a escola, solicitado pelo departamento de justiça da França sobre a ação que um dos familiares do estatuário, que trabalhou no projeto, havia entrado contra a Arquidiocese do Rio de Janeiro, por conta da verdadeira autoria de uma das sete maravilhas do mundo moderno.

Esse parente do falecido escultor francês cobrava os royalties sobre a exploração da imagem do Cristo. Ela, que não conhecia direito a história da construção da estátua, resolveu aceitar a missão. Além de ter a oportunidade de visitar o Rio de Janeiro, era uma maneira de conhecer o local onde seu tio havia nascido e se criado, onde também sua tia havia se apaixonado e falado maravilhas sobre o Brasil.

Madeleine adorava ouvir as histórias da tia Emilie quando era criança, sonhava em conhecer terras tropicais e exóticas, então essa era mesmo sua chance, só não tinha ideia de como uma simples investigação sobre um processo jurídico de direito autoral mudaria sua vida para sempre.

***