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João da Câmara
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João Maria Evangelista Gonçalves Zarco da Câmara (Alcântara (Lisboa), 27 de Dezembro de 1852 - Alcântara (Lisboa), 2 de Janeiro de 1908), mais conhecido como D. João da Câmara, foi um dramaturgo português. Foi o primeiro português a ser nomeado para o Prémio Nobel da Literatura, em 1901.
Era filho dos 1.ºs marqueses da Ribeira Grande, D. Francisco de Sales Gonçalves Zarco da Câmara (1819-1872) e de sua mulher D. Ana da Piedade Brígida Senhorinha Francisca Máxima Gonzaga de Bragança Mello e Ligne Sousa Tavares Mascarenhas da Silva (1822-1856). Tornou-se um importante dramaturgo no final do século XIX.
Estudou em Lisboa (Colégio de Campolide) e em Lovaina, na Bélgica, regressando a Portugal com a morte do pai, em 1872. De seguida, estudou na Escola Politécnica e no Instituto Industrial. Casou-se a 12 de Fevereiro de 1874 na Igreja de São Pedro de Alcântara, em Lisboa, com D. Eugénia de Mello Breyner (1852-1944).
Desenvolveu a sua carreira profissional nas obras públicas: construção do ramal de Cáceres e das linhas de Sintra e Cascais e chefiou a Administração Central de Caminhos de Ferro. Posteriormente dedicou-se à escrita, que o tornaria conhecido.
Faleceu aos 55 anos na casa número 64 da Rua da Junqueira, na freguesia de Alcântara (Lisboa), deixando sete filhos dos quais três ainda menores. Foi sepultado no Cemitério do Alto de São João.
O sol despedia os raios mais vividos. O suão aquecido nas cinzas das queimadas soprava abrazador. Via-se tudo em volta como atravez de vidros amarellos.
O caminho era ruim, apenas indicado por velhos muros afogados em silvas e cheios de musgo como ferrugem, que lindavam as tapadas. No meio da estrada erguiam-se de espaço a espaço enormes panedos, que ainda conservavam os furos das brocas, mostrando um trabalho abandonado de um dia para outro, falta de dinheiro, alguma eleição perdida. Massas enormes de granito esbranquiçado erguiam-se de uma e outra banda, umas por cima das outras, acastelladas. Por entre as pedras cresciam as giestas sequinhosas, cujo fructo crepitava abrindo-se aos beijos do sol e deixava caír a semente na terra. Nos pontos mais elevados resahiam do tremulo azul celeste uns carvalhos rachiticos e tortos, que não davam sombra.
Elle caminhava alegre, estrada fóra, parando de vez em quando para escolher nos cachos das amoras, que relusiam ao sol, as menos maduras, avermelhadas, rijas, cujo acido lhe mitigava a sede.
Ainda vinha com o seu bigode, com as calças de linho e as botas pretas de soldado, em que brilhavam como lentejoulas os pedacinhos de mica do granito desfeito.
O gosto com que elle diria lá na terra ao Antonio:—«Deite-me isto abaixo, ó mestre, e talhe-me n'esta cara uma suissa como a que eu tinha d'antes e a tinha meu pae, que Deus haja.»
E passava a unha pela cara, satisfeito, marcando a suissa que havia de usar.
O gosto com que atiraria para o lado aquellas botas engraxadas, a mortificarem-lhe os pés e que, apesar do bom tamanho, lhe pareciam botas de senhora, boas, quando muito, para o domingo, quando fosse á missa. As botas altas, brancas, de bom salto de prateleira muito commodo e tão bom para andar, lá tinham ficado penduradas n'um prego, defronte da lareira, muito bem ensebadas e recommendadas. Tinham umas tombas, é verdade, mas eram botas amigas. Como havia de calçal-as, contente, para sair com ellas para o trabalho, quando vem rompendo a aurora, quando o céu é cheio de luz e ainda não ha sombras na terra!
Ia morto por voltar aos habitos velhos, á santa vida do campo.
Lembrava-se, cheio de saudades, das boas historias, que se contam pela estrada fóra, na volta do trabalho, caminhando lentamente atraz dos burros, que, de orelhas muito cahidas, projectam na alvura da poeira sombras de gigantes.
O que hão de rir os ganhões com as historias novas que elle traz do quartel!
Quasi ao chegar á villa, ao pé da volta da estrada, um nadinha para baixo, á direita, é a fonte. Quando ali se chega, grita-se chó! aos burros, pára-se um bocado a conversar e contende-se com as raparigas que passam de bilhas á cabeça, bem aprumadas, de ancas fortes e caras sadias, com uns fios de dentes, que o pão de centeio torna muito brancos, como folhinhas de malmequeres, e que ellas gostam muito de mostrar, abrindo em grandes risos, por qualquer dichote amavel, as boccas muito vermelhas, mais frescas e perfumadas que uma ginja.
Aquelle bocado de tempo era sempre o melhor do dia.
E, ao pensar na fonte, alargou o passo.
É coisa aborrecida estar de sentinella duas horas, uma noite de inverno. E a agua pela valeta a correr, barrenta, cheia de espuma, precipitando-se na sargeta, com uma bulha muito triste, muito monotona, tão differente do estrepito das ribeiras quebrando as aguas nos rochedos das voltas!
Elle pensava na fonte e nos taes labios vermelhos. E o tempo assim lá passava mais depressa.
Um outro, ás vezes, tão triste como elle talvez, gritava-lhe de uma guarita perdida na treva:
—Sentinella, álérta!
E elle respondia, engrossando a voz:
—Álérta está!... Sentinella álérta!
E, emquanto os gritos repetidos se iam perdendo ao longe, recahia no mesmo pensar constante, a fonte, sempre a fonte, e triste, sempre triste.
Mas afinal estava livre! N'aquella mesma tarde, á hora em que as chaminés começam fumegando e debaixo das parreiras, emquanto a ceia aquece, se toca alegremente nas businas, estaria batendo á porta de casa, disfarçando a voz, fingindo ser um pobresinho a pedir esmola e agasalho.
E ria feliz com aquella idéa divertida.
A alegria da mãe! Era capaz de morrer de gosto a pobre velha, coitadinha!
Sabe Deus, quantas vezes, quando elle pelas madrugadas frias tremia enregelado na guarita, não molhava ella com lagrimas o travesseiro, a chorar a sua pobreza.
Recebera duas cartas d'ella muito ternas, cheias de noticias e de conselhos. Pedia a todos que lh'as lessem e por fim sabias-as de cór; trazia-as sempre comsigo entre a fardeta e a camisa, mettidas n'um saquinho de coiro, para se não estragarem.
E, ao lembrar-se de que afinal o tempo, de que tantas saudades tivera, ia novamente voltar, enchia-se-lhe a alma de alegria, e caminhava ligeiro, cantando em voz de falsete uma cantiga do S. João.
*
* *
Ainda lhe faltavam tres leguas para chegar a casa.
Aquelles sitios já eram d'elle muito conhecidos. Lembrava-se perfeitamente de que, por detraz d'aquellas pedras, que lhe ficavam á esquerda, crescia basta a herva, regada pela agua de uma fontesita, onde, por mais de uma vez, de madrugada, quando ali andava guardando as cabras da viuva, viera armar aos passarinhos.
Não havia sitio melhor para descançar um bocado.
No fardel trazia um pedaço de pão e o conducto, meia duzia de azeitonas e um queijinho pequeno.
É comer! E, se nos der o somno, dorme-se uma sésta até que abrande o calor!
Saiu da estrada galgando a parede e encaminhou-se para a fonte, pondo em fuga as cotovias, muito mansas, muito alegres, que saltitavam nas pedras, emquanto muito alto, parecendo pontos negros no azul do ceu, umas poucas de aguias descreviam curvas enormes, com a mira n'um burro morto, que apodrecia entre os rochedos.
*
* *
Quando accordou, já o sol descera muito; o vento tinha virado para o norte e algum tanto abrandára o calor.
Do outro lado do cabeço ouvia-se um som de chocalhinhos. Eram as cabras da viuva, que andavam pastando. No alto, d'onde a propriedade se descobria quasi toda, um pastorito de dez annos, deitado sobre as pedras, com o chapéo de abas largas, todo roto, a servir-lhe de travesseiro, fazia dançar um bogalho na ponta esmagada de uma palha de centeio, por onde soprava.
Sensibilisou-o tal recordação da infancia, que ali passára como aquelle pequeno.
—Adeus, ó cachopinho! gritou.
—Saude! respondeu o pequeno.
Teria dormido duas horas e achava-se completamente descançado. Ergueu-se, espreguiçou-se, coçou desesperadamente a cabeça, bateu com os pés no chão para desentorpecer as pernas e porfim, agarrando no chapéo e no bordão, poz-se alegremente a caminho.
Como por ali não havia vinhas, e isto era no mez das vindimas, não encontrára ninguem por aquelles sitios, abandonados até ao tempo das sementeiras.
Caminhava depressa, batendo com o bordão nas pedras, querendo chegar a casa antes do anoitecer.
Faltava-lhe ainda quasi uma legua, quando o sol se escondeu.
As calhandras tinham erguido o vôo e trinavam doidamente, muito alto, constantes no mesmo logar, batendo muito as azas.
Chegou a uma encruzilhada e parou. Parecia estar em duvida sobre o caminho que havia de tomar. Passava a mão pela cara, devagarinho, sem se resolver. O caminho da esquerda parecia tental-o muito, sorria-se para elle, mas como quem tem medo de ceder á tentação.
E que tentação não era!... Se nunca mais vira uns olhos d'aquelle azul!
A pobre mãe, áquellas horas, sentada á porta de casa, cruzadas sobre os joelhos as mãos, onde umas veias em relevo resaem sobre uma rede confusa de rugas pequeninas, pensava n'elle talvez, cheia de amor e de quantas tristezas! Quem passava por defronte da porta tirava o chapéo áquelles cabellos brancos, muito bem alisados por debaixo do lenço negro da viuva. N'aquelles olhos meio apagados brilhavam talvez as lagrimas d'uma saudade... E elle parado ali... cheio de duvidas!
Seguindo sempre em frente, mal chegasse ao alto, veria na encosta fronteira a casa onde nascera, muito caiada, com a cimalha pintada de azul, a porta vermelha, a nogueira a que se encosta a vide cheia de cachos tentadores, e uma volutazinha de fumo azulado a subir, a subir até desvanecer-se, signal da recompensa depois do dia de trabalho, a boa ceia quente, o lume que desenregela. Seguindo sempre em frente, passado um quarto d'hora, estaria nos braços da mãe, seccando-lhe as lagrimas, trazendo-lhe o coração que levára.
E continuava em duvidas! Pois a quem mais do que á mãe queria elle?
E por fim quando se resolveu... tomou para a esquerda.
Pobre mãe!
Houve esta noite festa rija em casa dos padeiros.
Casados ha cincoenta annos, festejaram com estrondo o anniversario do casamento. E não pensem que por não haver lá gente moça a festa desmereceu. Isso sim! Das oito á meia noite, nem o Bento das mãos largou a guitarra, nem faltaram pares no meio da casa.
Ficou logo combinado, mal o Antonio Pataco falou n'aquillo:—quem não foi convidado para a boda, tambem não dançou n'aquella noite, nem comeu os leitões assados. Então é que se viu como as mulheres se atiram pela velhice fóra com alma e coragem; eram doze nem mais nem menos, e os homens apenas seis, todos muito atrapalhados, (tanto mais que o Prior não contava) tendo que attender a tanta senhora, não querendo escandalisar nenhuma.
A casa, segundo contam, estava um brinco. Começava logo pela illuminação. Das vigas do tecto pendiam sete candeias e, como reforço, ardiam quatro vellas sobre as mezas dos cantos. Á roda da casa, no friso caiado, tinham disposto a loiça branca e na chaminé um grande tronco de asinho ardia, rodeado de piorno, fazendo passar clarões vermelhos na bateria de cobre, disposta, como um tropheu, do outro lado da casa.
Quando um homem pensa que, além d'aquella riqueza, o Antonio Pataco tinha mais do que outro tanto em serviço na cosinha, e que tudo aquillo não é nada em comparação com o muito que nós sabemos que elle tem, haverá rapaz na aldeia que mereça a linda neta tão branquinha e tão rica, fechada provisoriamente n'aquella noite n'um dos quartos do sotam da casa?
O prior velho foi quem presidiu á festa como é de ver. Está cego de todo, coitado; mas, apezar d'isso e de andar algum tanto acabrunhado desde que não póde ler no missal, attendendo a ter sido quem os casára, lá se arrastou conforme pôde, e não foi talvez dos que menos se divertiram. Abordoado á grossa bengala de castãosinho de prata, amarellada pelo uso, tremendo na mão d'elle, assistiu a toda a festa, até de madrugada, sacudindo em ar de approvação a cabeça muito calva, onde apenas meia duzia de cabellos brancos muito compridos, esvoaçavam, tenuissimos, no ar agitado.
Até á meia noite não se fez outra coisa senão dançar e mais dançar.
O Bento não se cançou de tocar na guitarra, apresentando, como pretexto para não se mexer o tamanho do ventre, que vae tomando com a edade proporções medonhas. Alguns quizeram insinuar que eram as pernas que lhe começavam a enfraquecer, mas logo desarmou a intriga, atirando um pontapé, que acertou, como por acaso, nas canellas do mestre-escola.
A pobre guitarra, velha tambem, rachada e fanhosa, não se lembrou senão de fandangos antigos, e era de vêr como aquelles bons velhos, talvez enganados pelo som d'aquellas cordas que os transportava cincoenta annos para traz, ouvindo aquella musica alegre, que lhes trazia recordações risonhas da mocidade, crearam novas forças e, cheios de animação, dançaram, no meio dos bravos, ligeiros como arveloas, sorrindo-se como se ainda se namorassem, como, havia meio seculo, se sorriam e namoravam.
Quem abriu o baile foi o padeiro, dançando com a mulher.
—Ahi, rapaz! gritou-lhe o Bento.
Mas era lá preciso que o animassem! Com o seu bello calção de briche fino, o collete verde de botões de vidro, as boas polainas hespanholas, parecia ter voltado aos trinta annos, bem aprumado, de cabeça erguida, arqueando o peito, baloiçando os braços, fazendo estalar os dedos.
A mulher custou-lhe mais por causa do rheumatismo; mas, apezar de muito dobrada, lá se animou. Levando aquillo muito a serio, dançou perto d'um quarto de hora, diante do marido, que sapateava, tentando recordar as habilidades, que n'outros tempos o tornaram falado por todas aquellas aldeias.
E só a idéa d'aquella saiasinha amarella, remexendo-se, tremula, por toda a casa, perseguida por aquelle velho cheio de cabellos brancos e de rugas, fazia rir ás gargalhadas estrondosas o Prior, que não via nada e lançava o olhar incerto, ora para um lado, ora para o outro, n'um menear constante de cabeça.
—Está seculo e meio dançando, disse o mestre escola com a gravidade do officio.
—E muitos pósinhos, e muitos pósinhos! accrescentou o Prior, continuando a rir.
Todos applaudiam. O Bento na guitarra apressava o andamento.
—Não posso, não posso mais! declarou a velhinha deixando-se caír esfalfada num tropeço, ao pé da lareira.
—Quem vem então? perguntou o Antonio, limpando o suor.
E ficou parado no meio da casa, de mãos na cintura, olhar altivo, esticando a perna, com um sorriso orgulhoso.
Muito se dançou n'aquella noite, em casa dos padeiros!
*
* *
Mas o melhor foi a ceia.
O Bento esteve famoso. De mais a mais o Antonio, muito naturalmente de proposito, sentou-o logo entre a Marianna Coxa e a Maria do Rosario. Imaginem!
Todos se lembravam ainda de quando ellas, á volta da fonte, se arranharam, por detraz do moinho, no meio dos cacos das bilhas partidas.
Agora, muito tremulas, muito engelhadas, de um lado e outro d'aquelle coração de bronze, mastigavam lentamente, enchendo as bochechas, de beiços muito recolhidos, tocando quasi com as barbas para cima nos narizes para baixo.
Emquanto se tomou a canja, houve um silencio quasi geral, apenas interrompido pelos recados do padeiro á velha criada Mathilde ou pelos convites aos assistentes.
—O cangirão. Vai já deitando. Começa aqui pelo sr. Prior. Mais uma colherinha de canja, tia Ignez?
E os velhos, todos em volta, sopravam longamente com as colheres ao pé da bocca e sorviam depois o caldo, com uns apitosinhos gulosos, fechando os olhos; alguns amolleciam na canja as codeas de pão, e o padeiro, de pé, observando, com a concha mettida na enorme terrina, lançava em redor um olhar attento de bom dono de casa, prompto para dar mais a quem pedisse.
—Senta-te e come, disse-lhe a mulher. Que afflicção!
—Sente-se e coma; isso mesmo! Entre rapazes não ha cerimonias. Quem quizer mais peça por bocca, gritou o Bento, estendendo o prato.
Mas já então a Mathilde vinha trazendo os assados.
Os convidados limpavam os beiços á toalha e os homens despejavam os copos para abrir o appetite.
Então começou tudo a falar. Só o professor é que não tomou parte nas discussões, por não perder a gravidade. Chamando a si uma travessa, onde um magnifico perum ostentava a opulencia das carnes aloiradas, espetou-lhes o garfo e, pondo as lunetas redondas na ponta do nariz afiladissimo, depois de attentamente ter examinado o fio da faca, principiou, cheio de sua pericia, a trinchar, seguindo com olhares gulosos os bocados, que iam cahindo.
O cangirão já voltára por tres vezes á cosinha, quando a padeira começou a servir o pato bravo. E da pinha enorme de arroz, que tremia na colher, iam caindo os baguinhos na toalha.
O Bento repetia todos os pratos e desabotoava os botões do collete.
Foi então que, depois d'um segredo, que o Antonio Pataco lhe disse ao ouvido com ar de muito misterio, a Mathilde sahiu, entrando pouco depois com os leitões e trazendo debaixo dos braços umas poucas de garrafas, que poz sobre a meza defronte do padeiro.
—Sabem, meus senhores?... Garrafas lacradas por mim no dia do meu casamento. Os seus copos, façam favor... Ora adeus! O que é isso, sr. professor? O copo maior... Então? O vinho é o sangue dos velhos.
O sangue não sei, a lingua é com certeza. Instantes depois, a algazarra subira de tom a tal ponto, que o professor, de pé, examinando á luz a transparencia da amethista enorme que lhe refulgia no copo, teve de pedir auxilio ao dono da casa para impôr silencio á velhada.
—Meus senhores... começou.
Mas as velhas não se continham; haviam de palrar por força. Mal o mestre-escola, com ar choroso, começou falando de tantos que faltavam áquella festa, puzeram-se ellas a gritar:
—Basta! Basta! Não queremos tristezas!
Deus me perdõe, mas está me parecendo que o vinho lhes subira ás cabecinhas brancas.
Não sei se o professor tambem desconfiou da coisa. Muito offendido, todo vermelho, sem poder dominar com a sua fanhosa voz de falsete a immensa berraria, pousou o copo sobre a meza e começou a atacar o queijo, resmungando.
O Bento é que teve as honras da noite, contando historias da sua mocidade.
Rapaz perfeito, dono de tres moinhos, era mais a mim, mais a mim, todas o queriam.
—E mal sabes tu, Antonio, uma coisa. A tua Josepha tambem me esperava á porta, quando eu passava, atirando-me cada olhadella!
—Que é lá isso? perguntou o Antonio, erguendo-se, entornando o copo sobre a meza e deixando correr em dois fios pelas rugas do queixo o bochecho que tinha na bocca.
Como o Antonio tem mau genio, a questão esteve por um triz a azedar-se.
—Ainda tu acreditas n'aquelle traste! disse a Josepha levantando a mão e como que ameaçando o Bento d'uma tremenda bofetada.
—É verdade, sim senhores, é verdade! teimava o Bento, estirado por cima da meza, de collete já todo desabotoado.
Os outros velhos protestavam, rindo muito. O Prior serenava o Antonio. Elle bem devia ver que tudo aquillo era troça e que o Bento estava a brincar.
—E quem sabe? continuou este. Talvez que você não festejasse hoje o anniversario do seu casamento, se eu n'esse tempo não andasse meio parvo por causa ali da tia Domingas.
—Anh? perguntou a tia Domingas, approximando da orelha o concavo da mão.
—Que andou meio parvo por vocemecê, explicou o Prior a berrar.
A tia Domingas, um poucochinho tonta, engoliu com muito esforço um grande bocado de leitão, que ruminava havia um bom quarto de hora, e disse toda commovida:
—Não me fale n'esse tempo, sr. Bento, não me fale n'esse tempo!
E durante toda a ceia houve sempre alegria, menos na cara do mestre-escola.
—Que tem, sr. Matheus? perguntou-lhe o Prior. Ha muito que lhe não oiço a voz.
—Vossa Reverencia bem sabe que nunca fui...
—Sei, sei, interrompeu o Prior. Aqui a sr.ª Bernarda que diga o que vocemecê foi.
*
* *
Pela madrugada, quando já as cotovias cantavam pelos campos e as figas das janéllas luziam como fios de cristal, levantaram-se todos para sahir.
O Prior cabeceava, havia um bocado, e o Bento, depois de muito contar e muito mentir, assentara sobre o peitilho bordado a segunda barba rubicunda, olhando por baixo, com olhar acarneirado, cheio de meiguice avinhada e de somno mal combatido.
Havia longos silencios e bocejos profundos.
Então as velhas lembraram-se de, como havia cincoenta annos, acompanhar a Josepha ao quarto.
E pelo corredor a Josepha, com a sua saiasinha amarella, bordada, com largas fitas de velludo preto, muito envergonhada, era seguida pelo Antonio, que, por brincadeira, queria impedir que os amigos viessem, dizendo que não era costume.
Pararam todos á porta.
Pela janella entreaberta a luz fria da manhã entrava no quarto, enchendo-o d'uma serena meia claridade.
O quarto estava na mesma: o oratorio defronte da porta sobre a commoda de pau santo, á direita o bahu encoirado, tapado com uma chita de ramagens, ao fundo o leito antigo, muito alto, coberto com uma colcha escarlate e onde, uma ao lado da outra, muito chegadas, duas almofadas bordadas, pequeninas, alvejavam na penumbra.
Havia cincoenta annos!
Era em fins d'agosto, á hora do meio dia.
Havia um instante, que, na torre pequenina da egreja, o sacristão, com a cabeça abrigada do sol por um grande lenço de fundo vermelho com ramagens amarellas, tinha feito soar vagarosamente as ave-marias.
Hora do descanço. Alguns dos que trabalhavam mais perto recolheram a casa para jantar e socegar um pedaço, durante a sesta.
Depois tudo pareceu adormecer na aldeia. Junto aos muros, enfileiradas todas na nesgasinha de sombra, as gallinhas dormitavam; os passaros nos salgueiraes, que sombreavam o ribeiro, tinham emmudecido. No interior das casas nenhum rumor, por entre a folhagem nenhuma viração. Até as carroças, nos pateos, com os varaes aprumados, pareciam, como n'um espreguiçamento, dispôr-se para o somno.
O sol quasi a prumo dardejava sobre a aldeia os raios quentissimos, reverberados pelas paredes caiadas de fresco e pelos telhados novos vidrados, que pareciam em braza, e atravessava com elles as ramarias, enchendo o ribeiro de manchas movediças, multiformes, cheias de scintilações, como pedacinhos de metal.
Era aquella a hora a que d'antes costumava recolher a casa o José Miguel, o melhor caçador da aldeia, com a rede quasi a trasbordar, tão cheia a trazia sempre de perdigotos e laparos.
Ainda elle vinha longe, já se ouviam os latidos alegres do cão, correndo na frente.
Então a mulher, depois de haver posto a mesa, vinha para o limiar da porta, encostava-se á hombreira, e punha-se á espera, toda risonha, feliz, fresquinha como uma flôr, com o seu vestido de linho muito engommado.
Os que passavam iam-lhe dando as boas tardes.
—Não tarda ahi, diziam-lhe cumprimentando-a. E é como sempre: bolsa cheia e cartuxeira vasia.
*
* *
Tempos!... Tempos!
Havia quasi um mez que a pobre Marianna debalde esperava o marido áquella hora.
Agora, quando ouvia soar as ave-marias, vinha encostar a testa aos vidros da janella e, com as faces incendiadas, o ouvido attento, fitando os olhos numa casa que alvejava ao longe sobre a serra, deixava correr em fio as lagrimas silenciosas.
E os que passavam, recolhendo ás casas, olhavam para ella com um modo tão triste, que ainda mais a entristecia, e iam dizendo uns para os outros:—Coitadinha!
*
* *
O que lhe custava...! E quanto mais, ao recordar-se do outro verão que passára!
Para aquillo tinha casado, para mal decorrido um anno, um anno pouco mais, ali se vêr sósinha, chorando o marido que lhe fugira!
Porque assim fôra rebelde aos conselhos do pae? Bem lh'o tinha elle prégado no proprio dia em que dera por aquelles amores!
O pobre mestre-escola, ouvindo-a conversar uma noite, á porta da rua, viera buscal-a por um braço, arrastára-a pela escada até ao quarto lá em cima, e ali, meneando a cabeça, de braços cruzados, lançando chispas pelos olhos, dissera-lhe apenas:—Senhora!
E ella começara a chorar e logo elle, ternissimo e afflicto, a enchera de beijos.
Ainda não pensára n'aquillo...! Pois tão nova ainda, havia de assim deixal-o? E então por quem? Pelo José Miguel, um valdevinos, um doido, um conquistador!
Recordára-lhe a morte da mãe que a deixára com trez annos entregue a elle, o que elle soffrera, os cuidados de que a rodeara, a educação que lhe dera.
Era á noite, noite muito serena, cheia de murmurios misteriosos, que se elevavam dos campos n'uma grande serenidade. Ouvia-se ao longe a queda das aguas do ribeiro e o rodar das azenhas. A janella estava aberta e lá de fóra vinham perfumes quentes, fortes, no bafo carinhoso da primavera.
Junto da porta crescia uma roseira, que mettêra para dentro do quarto uma pernada insubmissa, toda cheia de cachos de rosas pequeninas. Um rouxinol cantava no salgueiral, porque isto era no tempo dos ninhos.
O mestre-escola approximou-se da janella e esteve por algum tempo respirando aquelle ar que o refrescava agora, mas que lhe trouxe não sei que recordações.
Olhou para a filha e viu-a crescida, com os peitos desenvolvidos, o pescoço muito bem torneado, o cabello farto, enrolado no alto em duas tranças; viu-lhe a carnadura branca, sadia e forte.
O rouxinol continuava a cantar e a pernada cheia de flores teve um movimento languido, vergando a um suspiro da noite.
O mestre-escola tomou uma respiração funda e fez um movimento d'hombros resignado.
—É preciso casar-te, não ha remedio.
Como por miudos se lembrava de toda a scena que tivera com o pae e dos conselhos que então lhe ouvira! Bem o previra elle que o José Miguel a havia de abandonar um dia, não porque fosse mau, mas porque era leviano, que havia de deixar a mulher como deixava agora as namoradas, que tinham sido, uma apoz outra, todas as raparigas da aldeia.
Que mal empregadas lagrimas ella chorára, até que afinal o pae consentira no casamento!
Quantas vezes, feitas as pazes, tinham os trez commentado aquella historia!
*
* *
Um dia o mestre-escola fôra pelo Prior e outros convidado para uma caçada a que iria tambem o José Miguel.
Foi este quem, bastante atrapalhado, veio pela manhã bater-lhe á porta.
—Prompto, sr. Eustachio? Olhe que o Prior, ha mais de um quarto d'hora que está á sua espera no adro!
—Lá vou! lá vou! gritou de dentro o Eustachio.
E appareceu pouco depois, com a sua bota alta branca e o bonnet de pala verde, que usava havia dez annos.
—Adeus! disse ao José Miguel com máu modo.
—Sr. Eustachio...! respondeu este, cumprimentando-o, entre ironico e atarantado.
E, erguendo os olhos, entreviu na unica janella do primeiro andar, detraz das folhas da roseira, uma carinha muito bonita, mas muito triste, que lhe sorria por entre muitas lagrimas.
—Vamos! disse o Eustachio, pondo-se a caminho e olhando de revez para o outro.
—Deixa estar, grande patife! ia pensando o José Miguel. Ainda hoje m'as has de pagar!
Chegaram ao adro, onde o Prior e mais dois amigos os esperavam com impaciencia.
Depois de muitas recriminações e descomposturas, a que o Eustachio respondeu com desculpas gaguejadas, começaram ali mesmo a caçada, porque a egreja era no fim da aldeia e no sopé d'um cabeço predilecto das perdizes.
Vinte minutos depois, o cão do mestre-escola parava, e este, com o dedo no gatilho, esperava que as perdizes levantassem.
—Entra, cão!
Ouviram-se dois tiros; mas as perdizes foram-se voando com saude. O velho caçador fez um movimento de máu genio.
Então o José Miguel, collocado um pouco mais longe, apontou serenamente, descarregou por duas vezes a espingarda, e as perdizes, depois de por um instante haverem batido convulsamente as azas, inclinaram as cabeças e deixaram-se cahir a prumo, como coisas inertes.
—Que é lá isso? perguntou o Eustachio.
—O sr. não vê? disse-lhe o José Miguel, mostrando-lhe a caça morta. São duas perdizes.
E depois baixinho para o Prior, mas não tão baixo que o Eustachio o não ouvisse:
—E dois bigodes. Elle que os vá contando.
E contou-os, e não foram poucos.
Felizmente o Eustachio não era de reservas. O rapaz enthusiasmou-o.
—Bravo! dizia elle ao fim da tarde, com o olhito a luzir, o que era tambem d'umas beijocas a mais na borracha do Prior.
E depois, muito amigavelmente, pondo-lhe a mão no hombro:
—Sabes que tens quasi uma riqueza n'essa espingarda?
*
* *
Com que saudades a Marianna recordava esse momento em que, pela primeira vez, ouvira da bocca do pae um elogio ao namorado!
—Mas isto não obsta. Não quero! teimava ainda o Eustachio. Aquillo é um cabeça no ar. Um dia deixa-te e ficas peor do que viuva!
Afinal consentira. Que lhe havia de fazer?
O José Miguel acirrára-se com aquella resistencia e, em vez de abandonar a rapariga, como fizéra ás outras, cada vez se mostrava mais assiduo junto da filha do mestre-escola. A Marianna definhava-se, que era um dó vel-a.
O Eustachio, bem contra vontade, não teve outro remedio, consentiu.
*
* *
O bom tempo tem azas.
Com os olhos fitos na casa pequenina, que alvejava no alto da serra, a triste chorava amargamente, lembrando-se d'aquelles primeiros mezes de casada e das alegrias que tinha, quando ouvia ao longe os latidos do Valente, que voltava da caça.
Logo tirava da arca a toalha de linho muito alva, riscada pelo ferro; puxava a mesa para defronte da janella, que uma parreira sombreava; dispunha-a com muito cuidado, o logar d'ella e o d'elle, um defronte do outro, o cangirão cheio de vinho, o pão alvo partido em quartos, os pratos de fructa, que perfumavam a casa.
Então o Valente entrava muito bruto, saltando, muito desordeiro, querendo que lhe abrissem a porta do pateo, para onde logo sahia a correr, enterrando o focinho na panella cheia de caldo e de grandes bocados de pão de munição.
O José Miguel muito estafado, atirava para cima da arca a bolsa de caça, sorria ao ver aquelles arranjos e, enchendo a caneca do vinho muito fresco, bebia-o depois, de uma vez, d'olhos continuando a sorrir, soltando ao acabar um bello ah! de satisfação.
—Vamos a isto mulher, vamos a isto! dizia approximando da mesa a grande cadeira de páu santo.
E, todo olhares gulosos, muito sorridente, de beiços estendidos, destapava a terrina e enterrava a concha nas sopas.
Emquanto ia comendo, vinham as historias do dia.
Ella pouco podia adeantar: estivera em casa trabalhando, não sabia nada de novo.
Elle então contava façanhas do Valente, que, saciada a fome, muito sujo, muito lambusado, sentado a um canto, d'olhos meio-cerrados, esperava com paciencia o fim do jantar e a codea de queijo da sobremesa.
Estava muito velho, coitado do bicho! mas ainda nenhum lhe chegava.
Depois queixava-se da caça. As perdizes por aquelle calor andavam levadas da breca! O que elle andára por aquelles mattos!
A mulher, sentada defronte d'elle, ria muito contente, mostrando-lhe os dentes muito brancos entre os labios vermelhos, com duas covinhas aos cantos.
Pois as perdizes andavam assim como elle dizia, e estava a rede ali tão cheia!
—Mas vê lá se outro consegue o mesmo, dizia o José Miguel todo orgulhoso. É que d'aquillo e d'estas não ha outro que as tenha na aldeia.
E apontava para a espingarda e batia nas barrigas das pernas.
—São de ferro!
O mestre-escola vinha muita vez, depois do jantar, ter com elles á sobremesa, beber um copo de vinho e depenicar no queijo.
Caçador velho, muito conhecedor d'aquelles terrenos, gostava de dar conselhos ao genro, que o escutava attencioso.
Isto não obstava a que, sahindo juntos, o José Miguel, fizesse enfurecer o sogro, matando-lhe a caça que este errava.
—Ora anda lá, meu velho, resmungava muito alegre, apanha lá mais este, para a conta.
*
* *
Agora o José Miguel continuava a sahir todas as manhãs, mas só recolhia alta noite. Ás vezes, nem recolhia, e ella, coitadita, levava as noites a chorar.
Quando o marido sahia, punha-se á janella e via-o desapparecer por detraz da egreja, onde o sol nascente batia de chapa. Passados minutos, avistava-lhe o vulto, ao longe, na calva do pinhal. O Valente seguia-o cabisbaixo, triste, desconfiado, como que a extranhar o dono. Desappareciam depois entre os pinheiros e ella já não podia cá debaixo tornar a avistal-os. Mas da chaminé da casa, que alvejava no alto, começava a elevar-se no ar muito sereno da manhã um penachinho de fumo azulado, que logo se desfazia no azul do céu.
Ella então deitava-se de bruços na cama, e chorava convulsamente.
*
* *
N'esse dia pela uma hora, o Eustachio entrou em casa da filha.
—O teu homem?
—Foi para a caça, respondeu a Marianna, sentando-se no leito e á pressa limpando as lagrimas.
O mestre-escola trazia o bonnet de palla verde, a espingarda a tiracolo, o polvarinho e o chumbo. Não trazia a rede.
—Bem. Deixa-te estar. Escusas de te incommodar. Deita-te, filha, que eu vou procural-o.
A Marianna quiz retel-o, extranhando-lhe os modos.
—Talvez o não encontre. Sabe Deus onde elle pára!
—Sabe-o Deus, sei-o eu e sabe-o a aldeia em peso, que é uma vergonha! respondeu o Eustachio, apontando com a espingarda para o alto do pinhal. Olha, sabes o que vou fazer?
—Ó meu pae!... disse a rapariga, levantando-se do leito e vindo segurar-lhe os braços.
—Deixa-me! Muito tenho eu esperado! Não teem mais que o castigo que ambos merecem. Tu sabes quem ella é?
A Marianna disse que não com a cabeça.
Mas não havia de saber!...
—A Maria da Escusa, aquella cigana, que, não contente com ter dado cabo do marido, morto de desgostos, quer fazer outro tanto ao teu homem... e a ti! Mas eu vou lá e mato-a, mato-a como quem mata uma loba!
E, apertando, nervoso, a espingarda contra o peito, saiu arrebatadamente.
A Marianna, cheia de susto, sem forças para seguir o pae, sem forças para gritar, deixou-se cahir no leito, desmaiada quasi, sem animo para pensar na desgraça, que lhe estava acontecendo.
*
* *
Assim esteve por muito tempo. Despertaram a afinal uns latidos alegres, tão conhecidos d'ella. Sentou-se no leito. Os latidos approximaram-se, e por fim o Valente rompeu pelo quarto, saltando, cheio de fome, pedindo o jantar, a arranhar na porta do pateo.
Ouviu então a voz do José Miguel. Vinha conversando com o pae e o que diziam não era coisa triste, porque ambos riam ás gargalhadas.
A Marianna correu, muito chorosa, até á porta, e, muito excitada, cahiu soluçando nos braços do marido.
—O que é isso? o que é isso? perguntava o Eustachio, tambem com um nósito na garganta. Choras então, porque eu te trouxe o homem? Se adivinhasse o disparate, tinha o deixado lá ficar.
—Então, mulher, então? Que tens tu? dizia o José Miguel muito commovido.
*
* *
Passada meia hora, arranjado o jantar á pressa, sentaram-se todos á mesa.
A curiosidade, que nem um dito, uma allusão deram motivo para saciar, sorria nos olhos vivos da Marianna.
Que se haveria passado?
Mas, quasi ao fim do jantar, o mestre-escola, que estava conversando muito animadamente, enganou-se e, querendo beber á saude da filha, pegou no copo d'agua; o José Miguel, muito lampeiro, antes que o sogro désse pela distracção, lançou-lhe mão ao vinho e bebeu-o de um trago.
—Não é só na caça que se apanham bigodes sr. Eustachio.
—Não, não, respondeu o velho. E tu que o sabes d'hoje...!
O José Miguel fez-se muito vermelho, e, porque percebesse na mulher um sorriso em que a malicia apagára a tristeza, levantou-se da mesa e veio beijal-a muito.
—Coitada da Marianna!
—Então ella... enganou-te?
—Porque falas n'isso? Que te importa? Que me importa?
A curiosidade da Marianna ainda não estava satisfeita.
—Com quem?... Dize... Dize... Com quem?
Então o mestre-escola, muito córado—era talvez da pinga? entendeu dever deixal-os sós, e sahiu a rir, com um arsinho trocista, muito contente, a esfregar as mãos.
Era no fim da azinhaga—uma azinhaga estragada pelas chuvas do inverno e tendo ainda marcada na lama secca a passagem do ultimo carro de bois. D'um lado e d'outro velhas piteiras misturavam a côr verde claro das largas folhas carnosas com o verde escuro, quasi negro, das silvas e pilriteiros; de espaço a espaço erguiam-se algum sobreiro decrepito, faias brancas e prateadas, loureiros embalsamando o ar com o cheiro forte e bom das longas folhas agudas.
No fim erguia-se a casa com o seu aspecto senhoril.
A hera apoderára-se do exterior e, aproveitando as fendas que o tempo abrira, espreguiçando-se sobre o leito do velho musgo amarello que revestia cada pedra da parede, ia unir as suas folhas delicadas aos cachos de arroz que desciam em elegantes pyramides das beiras do telhado.
Uma pequena escada, seis ou sete degraus gastos, abalados, partidos, conduzia do pateo ao vestibulo do palacio.
Sobre o portão, cuja tinta gretada pelo sol caíra pouco a pouco, ostentava-se, comido pelo tempo, o brasão da familia, sobre o qual ameaçava ruina uma grande coroa de conde transformada em coito de lagartixas.
Os vidros ennegrecidos e apenas translucidos tremiam de velhice nos caixilhos de chumbo.
Pelo pateo, nos intersticios das pedras, crescia livremente a erva, e a um canto um rallo juntava as estridulas melodias ao monotono coaxar das rãs do pantano visinho.
O Conde estava na livraria sentado n'uma velha poltrona de coiro com pregos de metal. Tinha na mão um livro latino, que lia attentamente.
A livraria era uma vasta sala alumiada por trez janellas de grande vão.
Avistava-se ao longe a aldeia com seu campanario branco, suas casinhas bem caiadas, e os cimos dos choupos erguendo-se acima dos telhados e indicando a estrada que a atravessava conduzindo d'uma villa a outra.
Entre as janellas e as portas estavam as estantes com os grandes in-folios amarellos, os grossos diccionarios e as obras classicas latinas, portuguezas e francezas.
A parede fronteira ás janellas, por cima da chaminé de marmore branco, era occupada pelo retrato do avô do Conde. Era um homem alto, bem feito, sympathico. Estava vestido á epocha de D. João V. Tinha uma das mãos nos copos da espada, as suas commendas ao peito e uma sombra exquisita, forte, brutal, na metade do nariz do lado esquerdo. A moldura deixára caír o doirado e estava rendilhada pelo caruncho. A um canto uma aranha tecêra a teia e esperava pela presa, escondida n'um rasgão da tela.
O sol descia e o Conde, para lhe aproveitar os últimos raios, puchára a cadeira para o vão da janella e, com o livro sobre o joelho, o cotovello sobre a perna traçada e a testa encostada á mão, lia attentamente uma passagem de Suetonio.
O crepusculo foi invadindo a sala. O sol, depois de ter com o ultimo raio brincado um instante na testa veneranda do avô commendador, desceu para detraz do cabeço, e as grandes sombras dos montes fundiram-se pouco a pouco n'uma tinta geral.
O Conde fechou o livro sobre o index e poz-se a contemplar a aldeia.
O vento do norte entrando pelas fendas das paredes sibillava tristemente no corredor, os vidros zuniam nos caixilhos de chumbo, as aves nocturnas, que habitavam as vastas chaminés do palacio, começavam a piar e aos ouvidos do Conde chegava a alegria da aldeia como nota extranha d'uma lingua esquecida.
Meiados de novembro, as noites eram frias.
O Conde olhou tristemente para as janellas das casas dos lavradores alegremente illuminadas pelo fogo vivo das lareiras, e, estremecendo de frio dentro da velha sobrecasaca parda, levantou-se, tocou uma campainha e, mettendo as mãos nas algibeiras, começou passeando pela sala.
Era um velho alquebrado e quasi completamente calvo; apenas duas ou trez madeixas de cabello branco e comprido desciam-lhe da nuca até á golla do casaco. Usava a barba toda; era curta e branca. Os olhos, cuja luz a edade ia apagando, eram da côr mal definida que teem os olhos dos velhos e os das creanças de mama: tinham comtudo uma expressão doce e melancholica. Ao canto da bocca uma prega vertical, desdenhosa e altiva quando o Conde estava serio, dava-lhe uma expressão de sympathica tristeza quando sorria.
Ao toque da campainha accudiu um criado.
Era um velho tambem, mais velho do que o Conde talvez. Trazia vestida uma casaca por certo verde, de tão velha que era, se não lhe occultassem o estofo accumuladas passagens de linha preta.
Entrou curvado um pouco pelo respeito, outro tanto pelos annos.
—José, disse o Conde, vae arrancar mais uma taboa á sala do docel a arranja o lume.
—Sr. Conde, eu sósinho não tenho forças.
—Chama o caseiro, como tens feito nos outros dias.
—O Manuel foi-se hoje embora, sr. Conde.
—Foi-se hoje embora! Porque?
—Foi trabalhar para a quinta do João Pereira. V. Ex.ª bem sabe que o homem, coitado, tem familia que sustentar e como os ordenados andam atrazaditos...
—Effectivamente, recordo-me de que ha já bastante tempo... Ora, coitado! Mas, porque não me disse elle?... Eu esqueço-me de tudo. Has de dar-lhe dois pintos da minha parte. Eu te ajudo hoje a arrancar a taboa.
E saíndo ambos, foram a um quarto proximo e arrancaram uma taboa do soalho. O José serrou-a n'umas poucas de partes, feriu lume n'uma pederneira, porque o Conde reprovava os fosforos como perigosos, e, pouco depois, uma chamma viva e alegre trepava pela chaminé.
O Conde tornou a abrir o livro e continuou a ler Suetonio á luz de um bocado do seu palacio.
Tinham-se ido as taboas pouco a pouco e já quasi não restavam senão trez quartos completos, o do Conde, o do José e a livraria. Taboas, vigas, portas e janellas tinham-se desfeito em cinzas.
E os velhos lavradores da aldeia, ao verem o fumo erguer-se acima da chaminé do palacio, sorriam tristemente e diziam:
—Coitado!
Mas o Conde continuava alegre e indifferente. Como até ali nada lhe faltára, Deus sabe á custa de quantos sacrificios do pobre criado, não pensava no estado de miseria a que se achava reduzido ou, para melhor dizer, não queria pensar.
Quando ao domingo voltava da missa, vinha conversando alegremente, com um certo ar entre familiar e protector, com os lavradores que o estimavam e gostavam de ouvil-o. Entrava nas choupanas mais pobres, e afflicto com a miseria que n'ellas encontrava, dizia baixinho para o velho José, que o acompanhava sempre, com o grande missal romano debaixo do braço:
—José, deixa um pinto em cima da mesa para esta pobre gente festejar o domingo.
E saía tocando ao de leve com os dedos nas faces rosadas das criancinhas, que olhavam para elle com os seus meigos olhos grandes, cheios de espanto e de curiosidade.
O José demorava-se como que para obedecer ao fidalgo e saia momentos depois, levando nas vastas algibeiras da casaca os bocados de pão negro e de carne, com os quaes e com a ajuda de mais uma taboa o Conde havia de jantar n'aquelle dia.
E o Conde continuava alegre e passava os dias conversando, como elle dizia, com os seus auctores favoritos e entretendo a imaginação com os sonhos doirados d'um futuro melhor.
Tinha um filho.
Havia trez annos que o seu genio desleixado o obrigára a partir para o Brazil, na esperança de, á força de trabalho, reparar os desastres da fortuna.
E não fôra a ambição que o levára tão longe. Não ignorava elle a maneira como se sustentava o Conde e o seu genio altivo custava-lhe sujeitar-se á compassiva esmola dos aldeãos.
Um dia, deu parte de suas tenções ao pae, mostrando-lhe a conveniencia d'aquella partida, occultando-lhe porém uma grande parte da verdade com receio que a revelação d'ella fosse um golpe fatal na vida do velho. Repellida primeiramente a ideia como absurda e pouco digna, o pobre pae, com o coração esmigalhado pela dôr e pela vergonha, teve por fim que render-se e sacrificar o seu orgulho ao orgulho mais nobre do filho.
Obtida a licença, partiu levando como capital a benção paterna e os poucos pintos que rendeu mais uma hypotheca.
*
* *
Os primeiros dias foram horriveis para o Conde. Sentia um vacuo enorme n'aquella casa, havia pouco tão cheia ainda. Depois a dôr foi abrandando pouco a pouco, e o Conde voltou aos habitos antigos. Tinha mais um sentimento no coração: a esperança.
*
* *
Uma tarde chegou uma carta que dizia:
«Meu caro pae, vou bem, vou muito bem. Pelo proximo paquete espero poder enviar-lhe cem mil réis, quantia que continuarei a mandar todos os mezes.»
O Conde procurou paquete no diccionario de Moraes, mas achou a palavra comida pela traça.
O José chorava de alegria e n'aquella noite deitou duas taboas no lume, acceitou um copo de vinho ao João Pereira, e, quando acabou o terço, disse para o Conde, com quem o resára em voz alta:
—Para que se realise o que sr. D. Carlos nos promette: Salve, Rainha.
*
* *
E passou-se mez e meio e o Conde dizia:
—O que será paquete?
De Agostinho de Macedo para cá não sabia nada, não lia jornaes, nem vêl-os queria. Detestava-os com um odio de velho, quasi instinctivo. Quando via algum jornal murmurava logo!
—Maçonaria!
E continuava a esperar o paquete, como um sebastianista espera D. Sebastião, com uma confiança cheia de misterios e de pequenas impaciencias.
O palacio já pouco mais tinha do que as paredes. Pouco a pouco, taboa, por taboa, viga por viga, o quarto do criado passára pela chaminé e este dormia agora na camara do Conde.
E o velho fidalgo dizia ao ver crepitar na vasta lareira as taboas carcomidas:
—Paciencia! Isto concerta-se depois, quando chegar o paquete.
E o José apenas respondia:
—Salve, Rainha.
Estava-se no principio de janeiro.
O Conde começou a separar os livros em duas classes: a dos livros uteis e a dos livros inuteis.
Os livros inuteis transformaram-se em calor, e, quando o Conde via as paginas amarelladas torcerem-se sob a acção do lume, olhava para ellas tristemente e depois, erguendo os olhos para o retrato do avô, dizia mentalmente, como que pedindo desculpa:
—São os peores.
Acabaram os livros inuteis e o Conde poz de lado os optimos e queimou os restantes.
Duraram dois dias.
E como o paquete não chegava, o Conde coçava a cabeça e olhava com um modo menos respeitoso para o missal romano.
O José triplicava o numero das salve-rainhas.
E o paquete não chegava, e os manuscriptos arderam, e o Conde queimou as gravuras e conservou apenas o Suetonio.
*
* *
Passados dias chegou uma carta.
Trazia um sobrescripto azul, um pouco transparente, muito boa lettra, uma lettra com muitos finos e grossos, como a d'um professor de caligraphia. Trazia a marca do Brazil e cheirava a carvão de pedra.
Foi o José quem a recebeu, e correndo para a livraria, onde o Conde estendia instinctivamente as mãos tremulas sobre as cinzas frias da chaminé, entrou gritando:
—O paquete! o paquete!
O Conde estremeceu, ergueu-se e pegou na carta.
Era talvez a riqueza!
Passou-lhe uma nuvem pelos olhos.
Encostou-se a uma poltrona e, tremendo, abrio o sobrescripto.
E leu:
«Temos o doloroso dever de dar parte a V. Ex.ª do fallecimento do seu filho...»
O Conde não poude ler mais e deixou cair a carta.
José exclamava:
—Perdidos! Perdidos!
E dava com a cabeça nas paredes.
O Conde conservava-se silencioso e fitava os olhos turvos na folha de papel azul, que tremulava no chão assoprada pelo vento.
—Resta-nos a caridade, José, disse porfim. Vae, vae ter com essa gente a quem hontem ainda eu dei esmolla, e dize-lhe que o Conde lhe pede, por amor de Deus, um bocado de pão.
E depois soluçando:
—Manuel! Filho!... Meu querido filho! E como fazia muito frio, o Conde queimou o Suetonio.
Quando ouviu ao longe, no campanario da freguezia, bater meia noite, entreabriu de mansinho a porta da choupana e escutou por longo tempo. Nem um sussurro!... Tudo dormia áquella hora.
Saiu e, pé ante pé, com a enxada ao hombro, approximou-se da aldeia, que tinha de atravessar.
Tudo era em silencio; apenas, muito ao longe, junto á fonte, uma rã solitaria coaxava tristemente.
A lua no minguante alumiava com uma serenidade triste umas trinta ou quarenta casas, dispostas no fundo do valle, ao acaso, entre os choupos da beira do riacho e os ultimos pinheiros da matta, que descia pela encosta em pujante vegetação sombria.
Pelas fendas das portas mal cerradas, ouvia-se por vezes o profundo ressonar compassado dos homens de trabalho. Então parava de ouvido á escuta, olho á espreita, com um pé para deante, o outro para traz, posto de bico, prompto para a retirada. E, quando tudo outra vez cahia no primitivo silencio, tornava a caminhar devagarinho, sempre cauteloso, sobresaltado, de olhar desconfiado, como se fosse commetter um crime.
Grossos rolos de nuvens pardacentas, com largas nodoas escuras, onde a lua, n'uma carreira seguida, mergulhava enchendo o campo de trevas, começaram deixando cair grossos pingos d'agua sobre a rama dos pinheiros.
O vento soprava rijo do sul e toda a serra soltava gemidos dolorosos, fantasticos, em meio do sussurro da folhagem.
Á medida que a encosta se ia elevando, cerrava-se mais e mais o pinhal. A chuva engrossára, e por entre as ramas mal coava um ou outro raio de luar, iriando, como perolas transparentes, as gottas d'agua, que tremeluziam no extremo das agulhas.
Era no alto da serra que o seu thesoiro junto pouco a pouco, desde tantos annos, fôra escondido. Vinha augmental-o n'aquella noite, vinha palpal-o, tomar-lhe o peso, tendo como unicas testemunhas de prazer tamanho o céo de temporal e os pinheiros a gemerem.
*
* *
Subitamente estacou