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Editado por Harlequin Ibérica.

Uma divisão de HarperCollins Ibérica, S.A.

Avenida de Burgos, 8B

28036 Madrid

 

© 2022 Harlequin Ibérica, uma divisão de HarperCollins Ibérica, S.A.

N.º 124 - junho 2022

 

© 2010 Kim Lawrence

Tempestade nos corações

Título original: Stranded, Seduced… Pregnant

Publicado originalmente por Harlequin Enterprises, Ltd.

 

© 2009 India Grey

Ao serviço do italiano

Título original: Powerful Italian, Penniless Housekeeper

Publicado originalmente por Harlequin Enterprises, Ltd.

Estes títulos foram publicados originalmente em português em 2011

 

 

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor, incluindo os de reprodução, total ou parcial. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Books S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, carateres, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos de negócios (comerciais), acontecimientos ou situações são pura coincidência.

® Harlequin e logótipo Harlequin são marcas registadas propriedades de Harlequin Enterprises Limited.

® e ™ são marcas registadas por Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas em que aparece ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

Imagem de portada utilizada com a permissão de Dreamstime.com

 

I.S.B.N.: 978-84-1105-807-0

Sumário

 

Créditos

Sumário

Tempestade nos corações

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Ao serviço do italiano

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Epílogo

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Capítulo 1

 

 

 

 

 

Levantando as chávenas até à altura da cabeça para evitar uma colisão, Neve sorriu em jeito de desculpa à mulher com quem estivera prestes a chocar e olhou à sua volta, procurando Hannah, que não estava onde a deixara.

O erro tinha sido dizer-lhe «Não te mexas», antes de ir para a fila para pedir duas chávenas de chocolate quente.

Neve suspirou. Quando é que ia aprender?

A qualquer ordem, por mais inócua que fosse, Hannah fazia exactamente o contrário. As possibilidades de que passarem juntas a White Week servisse para as unir mais um pouco tinham sido pouco realistas, mas, naquele momento, pareciam-lhe risíveis.

Neve procurou entre as pessoas que enchiam o café, pessoas como ela que estavam ali para escapar da tempestade. E quando olhou pela janela e sentiu um calafrio, a tempestade de neve que desacreditara os meteorologistas e fizera parar metade do país continuava com a mesma força.

Encolheu-se para deixar passar uma pessoa e, pelo canto do olho, viu uma coisa azul. As madeixas azuis eram da sua enteada, que se sentara num banco de madeira perto da janela.

Neve respirou fundo enquanto abria passagem entre toda aquela gente e conseguiu chegar ao banco sem queimar ninguém com o chocolate quente.

– Pensava que te tinhas perdido – Neve tentou sorrir, enquanto colocava as chávenas no parapeito da janela e tirava o gorro, abanando os seus caracóis ruivos.

«A lareira está acesa e está-se bem aqui», pensou, tirando o casaco.

– Pensei que uma chávena de chocolate quente nos animaria um pouco. E tem natas.

Ela apercebia-se de que as suas tentativas de forjar uma certa camaradagem soavam falsas e ligeiramente desesperadas.

Hannah parecia pensar da mesma forma, porque olhou para ela com aquele ar de desprezo tão típico dos adolescentes, antes de encolher os ombros.

– Tu sabes quantas calorias tem uma chávena de chocolate quente? Deverias estar gorda como uma vaca.

Muito bem, não tinham cessado as hostilidades.

Neve questionou-se se engordar vinte quilos faria com que a sua enteada a odiasse menos. Provavelmente, não. Além disso, seria muito difícil porque, comesse o que comesse, nunca engordava. Trocaria a sua figura adolescente por umas curvas femininas num segundo, mas isso não ia acontecer.

Hannah afastou-se um pouco, para evitar qualquer contacto com ela, e Neve abanou a cabeça.

– Não te preocupes, de certeza que deixará de nevar mais cedo ou mais tarde.

Embora não parecesse que isso fosse acontecer em breve e, até então, estavam presas ali. «Mas há coisas piores», pensou. Poderiam ter ficado presas no carro ou em Mount Devon.

Hannah virou a cabeça. As madeixas azuis responsáveis por que Neve tivesse sido chamada ao colégio Devon dançaram à sua volta.

Neve atendera à chamada da directora e sentara-se no seu escritório, com as mãos elegantemente unidas sobre o colo, a ouvir mais como uma aluna do que como uma adulta, enquanto a directora lhe falava da sua preocupação com Hannah. Uma preocupação que ela partilhava.

– Não é só o cabelo, senhora Macleod, ou os cigarros. Eu acho que esta situação requer atenção imediata.

Perguntando-se se notaria como se sentia inadequada, Neve assentira com a cabeça, demasiado preocupada para se zangar pelo tom condescendente. Precisava de toda a ajuda possível.

– Houve vários incidentes e, como sabe, nem todos eles pequenos. Tivemos sorte por os proprietários da carrinha não terem apresentado queixa. Imagino que saiba que, se não fossem as circunstâncias tristes de Hannah, isso teria significado a expulsão automática da escola.

– E estamos-lhe muito agradecidas – Neve não lhe dissera que a gratidão de Hannah consistia em não abrir a boca e fulminá-la com o olhar cada vez que voltava para casa.

– A atitude de Hannah é o que mais nos preocupa. É muito agressiva com as restantes meninas.

«A quem o diz!»

– Imagino que seja uma coisa temporária.

– E as suas notas pioraram.

– Está a sofrer, amava muito o seu pai – disse Neve.

– Sim, eu sei. É muito triste perder um pai e imagino que deva ter sido muito difícil para as duas.

Neve ficou horrorizada quando começaram a tremer-lhe os lábios. E ela à espera de dar uma imagem serena e madura…

A simpatia no tom da directora atravessara o escudo protector que os rumores e as máquinas fotográficas dos paparazzi não tinham conseguido atravessar.

Neve tirou um lenço da mala e assoou-se.

– Obrigada.

Simpatia não era algo a que ela estivesse habituada desde que as revistas tinham começado a descrevê-la como uma caçadora de fortunas fria e ambiciosa que se casara com um moribundo pelo dinheiro. E tinham-na apelidado de «viúva-alegre».

«Poderia ser pior», costumava brincar o seu irmão Charlie, poderiam ter-lhe chamado «viúva negra».

Ao princípio, algumas pessoas pareciam dispostas a dar-lhe o benefício da dúvida, mas, quando um jornalista descobrira que Charlie roubara dinheiro à empresa de James, essas pessoas tinham desaparecido.

Neve não tinha tentado defender-se. Como poderia fazê-lo? A verdade era que se casara com um moribundo e que Charlie roubara uma pequena fortuna.

Ninguém queria acreditar que ela não tinha tocado no dinheiro ou que tinha aceitado o pedido de James em agradecimento à forma como sempre se portara bem com Charlie e com ela.

– E fizemos o possível por Hannah – continuara a dizer a directora. – Mas há um limite. As crianças precisam de limites, senhora Macleod.

Neve aceitara a reprimenda pouco subtil, pensando que os limites só serviam de alguma coisa se a criança em questão estivesse disposta a ouvir. E se ela tivesse a autoridade que tinha a directora da escola, não haveria nenhum problema.

– Tenho a impressão de que Hannah vê esta expulsão temporária como uma brincadeira. Posso fazer uma sugestão?

– Sim, é claro.

– Vai passar a White Week a esquiar com a família Palmer?

Neve assentira com a cabeça, mas tinha a impressão de que a sua vida ia complicar-se.

E assim fora. A resposta da sua enteada à notícia de que ia passar as férias em casa com ela e não a esquiar com a amiga fora a que Neve tinha temido: gritos, insultos e, finalmente, silêncio total.

Tornara-se a sua inimiga número um. Bom, não houvera nenhuma mudança nisso. Para Hannah, ela era a causa de todos os males no mundo, de todos os problemas que tivera na sua vida. A responsável por tudo, incluindo o mau tempo.

«Devo estar a fazer alguma coisa mal», pensou.

O que dissera James? «Com vinte e três anos, ainda não te esqueceste do que é ser adolescente.»

Não, mas ela nunca tinha sido uma adolescente como Hannah.

«Não estou a pedir-te que sejas sua mãe, Neve, mas sua amiga. A minha filha precisa de uma boa amiga.»

Ela não partilhava o optimismo de James. Mas, embora não tivesse esperado que Hannah a visse como uma amiga, também não tinha antecipado que a odiasse de morte.

Era cansativo e muito deprimente.

Talvez a relação fosse tão difícil por causa do dinheiro que James lhe deixara no seu testamento. Ela tivera de o aceitar, mas isso virara-se contra ela mesmo antes de a imprensa saber.

Hannah sempre a tinha considerado uma caçadora de fortunas e o dinheiro tinha confirmado as suas suspeitas.

Neve sentia-se mal, mas a verdade era que não estava qualificada para cuidar de uma adolescente. Não sabia porque tinha aceitado casar-se com James.

– Não estou preocupada, estou chateada. Contigo! – exclamou Hannah naquele momento, caso não tivesse entendido a mensagem.

– Tenho algumas coisas interessantes planeadas para as férias. Podíamos ir às compras e, talvez, se quiseres…

– Obrigada, mas eu não vou a lojas de segunda mão – interrompeu-a a sua enteada. – Já agora, o cor-de-rosa não combina nada com esse cabelo cor de cenoura – acrescentou, assinalando a camisola e os caracóis de Neve.

Neve, que era dona de uma loja de roupa vintage, recusou-se a sentir-se ofendida. Além disso, a crítica era, até certo ponto, válida. Antes do seu casamento, ela fazia compras em lojas de segunda mão e tinha o que os amigos mais amáveis chamavam um estilo «especial» e os menos amáveis, «estranho».

Embora o seu estilo não tivesse mudado depois do seu casamento. James tinha insistido em dar-lhe cartões de crédito e uma mesada generosa, mas incomodava-a aceitar o dinheiro. Ao fim e ao cabo, o seu casamento era apenas no papel.

– A roupa vintage está na moda, sabias?

Era verdade, o seu negócio ia de vento em popa.

– Isso nunca esteve na moda – replicou Hannah, assinalando a sua camisola.

– Ah, não? Bom, se calhar, podias ajudar-me a escolher o que devo usar.

– Olha, não há ninguém aqui para quem tenhas de te fazer de santa, portanto, pára. Toda a gente sabe porque te casaste com o meu pai.

– Eu apreciava muito o teu pai, Hannah.

– Apreciavas o seu dinheiro. Ou vais dizer-me que te casaste com ele por amor?

– O teu pai era uma pessoa fantástica.

– E tu és uma aproveitadora que só quer dinheiro!

Tinha-o dito tão alto que as pessoas da mesa do lado olharam para elas. E, enquanto Hannah se levantava do banco, Neve só desejou que a terra a engolisse.

 

 

Quando ficou claro que só um milagre faria com que chegasse a tempo à reunião, Severo reagiu com calma. A possibilidade de ter de passar a noite no jipe não era agradável, mas, na sua opinião, era mais um inconveniente do que uma desgraça.

Estava a contornar uma curva naquele momento e resmungou um palavrão quando teve de carregar bruscamente no travão para não chocar com um carro que estava no meio da estrada.

Suspirando, saiu do jipe e, agachando a cabeça para evitar o vento e a neve, aproximou-se do carro abandonado. Estava trancado, de modo que os ocupantes deviam ter procurado abrigo em algum sítio.

Continuar a viajar naquelas condições era um risco desnecessário. Segundo o último boletim meteorológico, metade do país estava coberta de neve e a polícia pedia aos automobilistas que ficassem em casa.

«Mas para ficar em casa, tenho de chegar antes a casa», pensou.

Dez minutos depois, viu uma cabana de montanha. E, a julgar pela quantidade de carros que havia no estacionamento, ele não fora o único que tinha decidido parar ali.

Ia sair do carro quando o seu telemóvel tocou e, ao ver o número da sua madrasta no visor, Severo esteve prestes a não atender. A última vez que entrara em contacto com ele fora para lhe dizer que a tinham prendido por roubar numa loja.

E uma vez em que não lhe atendera o telefone, a sua madrasta conseguira o dinheiro que ia pedir-lhe vendendo uma jóia familiar que não era dela. Livia era cansativa, mas era muito perigoso ignorá-la.

Quando ele era criança e Livia gostava de virar o pai contra o filho, Severo consolava-se com pensamentos vingativos.

Agora, poderia vingar-se, mas as suas prioridades tinham mudado. O seu pai estava num sítio onde a caçadora de fortunas da mulher dele já não podia fazer-lhe mal e a única coisa que podia fazer-lhe a ele era envergonhá-lo. Bom, não a ele, à sua família.

Já nada o envergonhava. E quanto à honra do apelido, Severo pensava que com menos orgulho, menos romantismo sobre triunfos passados e menos medo de sujar as mãos aristocráticas a trabalhar, os cofres da família Constanza continuariam intactos.

A verdade era que tinha perdido a vontade de se vingar. Não porque lhe tivesse perdoado ou porque lhe desse pena. Embora Livia, que em tempos tinha sido uma das mulheres mais elegantes de Londres, se tivesse tornado alvo de pena para muitos.

Para quê desperdiçar energia quando ela mesma estava a destruir a sua vida sem a ajuda de ninguém? A única coisa que queria era afastar-se de Livia o máximo possível, que ela ficasse numa daquelas clínicas de reabilitação que visitava tão frequentemente.

– Diz-me, Livia.

Severo afastou o telemóvel da orelha, fazendo uma careta ao ouvir a voz estridente da sua madrasta, que o acusava de não ter sentimentos.

– Como vou viver com a miséria de mesada que me dás? Tu tens mais dinheiro do que precisas! – queixou-se amargamente. – Tudo aquilo em que tocas transforma-se em ouro.

Severo passou uma mão pela cara e continuou a fingir ouvir, enquanto pensava noutra coisa. Era a conversa de sempre e que não mudava, desse-lhe o dinheiro que lhe desse. Mas qual era a alternativa?

– Seria apenas um empréstimo.

Ele suspirou. Já tinha havido muitos empréstimos e não tinha a mínima dúvida de que haveria muitos mais.

– Devolver-to-ei, com juros. Sei que é o que o teu pai quereria e… – a chamada caiu e Severo guardou o telemóvel no bolso.

Voltaria a telefonar, não tinha a mínima dúvida.

Estava a chegar à entrada da cabana quando uma mulher saiu a toda a velocidade, tropeçando nele. Não usava casaco, nem gorro, como se não sentisse o frio polar que chegava das montanhas. Só usava umas calças de ganga e uma camisola cor-de-rosa com margaridas.

– Viu-a?

– Desculpe?

Tinha o cabelo vermelho e os olhos enormes, azuis, tão azuis que, por um instante, ficou como que hipnotizado.

A jovem lançou um grito ao ver que um carro saía do estacionamento.

– Oh, não, meu Deus!

Embora Severo não fosse um homem dado a ajudar raparigas em apuros, quase sem se dar conta virou-se para perguntar se podia ajudá-la.

Mas não pôde fazê-lo porque entrou num carro e arrancou a toda a velocidade. E ele demorou alguns segundos a dar-se conta de que os faróis que se afastavam eram os do seu jipe.

Tinha deixado as chaves na ignição!

E dentro do carro havia um computador que continha informação financeira de carácter privado. Ficara a olhar como um parvo enquanto alguém lhe roubava o carro, enfeitiçado por uns olhos azuis.

Severo fechou os olhos enquanto se recriminava, mas, como isso não serviria de nada, decidiu entrar na cabana.

Capítulo 2

 

 

 

 

 

As conversas e as gargalhadas cessaram quando Severo entrou na cabana, baixando a cabeça para não bater na ombreira da porta.

A maioria dos presentes estava de calças de ganga ou com roupa informal, mas ele parecia um modelo de uma revista para executivos… Desde que esses executivos tivessem o perfil de um deus grego e o corpo de um remador olímpico.

O único sinal de que acabava de atravessar uma tempestade era a neve que tinha no cabelo e na gola do casaco de caxemira. Os seus olhos escuros, rodeados de pestanas compridas, percorreram a sala antes de se dirigir para o balcão.

E as conversas reataram enquanto as pessoas se afastavam automaticamente à sua passagem.

– Acabaram de me roubar o carro – disse ao empregado. – Uma mulher, uma ruiva.

– Pois, com esta tempestade não creio que chegue muito longe. E receio que não possamos fazer nada – disse o homem, com o que lhe pareceu um sorriso muito pouco apropriado naquelas circunstâncias. – Havia alguma coisa de valor no carro?

Severo abanou a cabeça. Para que iria contar-lhe a verdade? Tinha no carro o passaporte, os cartões de crédito e, sobretudo, um computador com informação sobre uma fusão comercial que os seus rivais considerariam, se não fabulosa, de grande valor.

– Pois, teve sorte. Disse que era ruiva?

– Sim.

– Talvez alguém a conheça, mas, como vê, está muita gente aqui – o empregado bateu no balcão com a mão para chamar a atenção dos clientes. – Alguém viu uma ruiva?

Não foi uma surpresa para Severo que vários homens dissessem ter reparado nela, porque a ladra de carros não era uma mulher que passasse despercebida. Mas, infelizmente, ninguém sabia quem era.

– Não posso oferecer-lhe um quarto, mas a lareira está acesa e temos mantas e a despensa cheia.

Severo, que não partilhava a atitude relaxada do empregado, proprietário do café ou fosse o que fosse, abanou a cabeça quando o homem pegou numa garrafa de uísque.

– Não creio que vá muito longe com esta tempestade. Mas amanhã, quando tiverem limpo as estradas…

– Devíamos informar as autoridades.

– As linhas telefónicas estão cortadas e não há rede de telemóvel. Beba alguma coisa, não pode fazer mais nada.

Severo aceitou um café, pensativo. Tinha de haver alguma opção.

– Aqueles esquis que vi à porta, de quem são?

O homem assinalou um grupo de jovens.

– São estudantes, de Aviemore.

Depois, sugeriu, a brincar, que reunisse um grupo de pessoas para ir procurar a ruiva. E, embora fosse uma brincadeira, deu-lhe uma ideia.

Quinze minutos depois, resistindo às tentativas de o convencer a não o fazer, Severo estava a calçar uns esquis e a trocar o seu casaco de caxemira pelo blusão grosso de um dos estudantes.

Continuava a nevar, mas o vento tinha amainado um pouco, de modo que entrou na estrada, seguindo a direcção pela qual o seu carro tinha desaparecido.

E teria passado sem ver o veículo abandonado se não tivesse parado para olhar para o horizonte. A luz de um farol semienterrado na neve chamou a sua atenção e, um segundo depois, viu que era o seu carro na berma.

A porta estava aberta, mas a ladra tinha desaparecido, demonstrando que era estúpida e suicida. Com aquela neve, qualquer pessoa com dois dedos de testa teria ficado dentro do carro.

As suas coisas continuavam no interior, felizmente, e o mais sensato seria voltar para a cabana. Aquela louca não era responsabilidade sua. E se acabasse na estatística dos mortos devido à tempestade, o problema seria dela. Claro que ele morreria de culpa ao pensar que poderia tê-la salvado…

Depois de um breve debate interior, Severo suspirou, resignado. Não gostaria nada que suspeitassem que tinha consciência.

Depois de um olhar rápido à sua volta, descobriu rastos na neve, de modo que a ladra não estava muito longe.

 

 

Neve fazia um esforço para continuar em frente, mas estava assustada. A paisagem branca abafava todos os sons, salvo os seus próprios suspiros. Não tinha forças e estava morta de frio, mas o desespero e o medo obrigavam-na a continuar em frente.

– Eu gosto de neve – murmurava para si mesma. – Eu adoro neve.

Se algum dia tivesse netos, entediá-los-ia de morte com aquela história. Embora uma história que começava com «No dia em que a avó roubou um carro» pudesse não ser um grande exemplo.

Neve tropeçou na neve e achou que não tinha forças para se levantar. «Vou descansar um pouco», pensou e, depois, levantar-se-ia porque, se não o fizesse, não haveria netos a quem contar a história.

Levantar-se-ia porque James confiara nela e não podia defraudá-lo.

Quase conseguia ouvir a sua voz…

– Tenho de te pedir um favor, Neve.

– Tudo o que quiseres – dissera ela.

James Macleod tinha sido colega de universidade do seu pai e fora por isso que dera um emprego a Charlie. Mas o seu irmão tinha-lhe devolvido o favor roubando aos clientes para continuar a jogar no casino.

Sabendo que estavam prestes a descobri-lo, Charlie, que pensava fugir do país, tinha-lhe confessado tudo. E Neve, angustiada, tinha ido falar com James para lhe suplicar que não chamasse a polícia.

Felizmente, James não o fizera. Antes pelo contrário, disfarçara o roubo com o seu próprio dinheiro, impondo como única condição que Charlie procurasse ajuda para o problema que tinha.

De modo que Neve não lhe negaria nenhum favor.

– Casa-te comigo.

Nenhum favor, salvo aquele.

– Surpreendi-te.

– Não, não – mentira Neve, atónita. Nada em James alguma vez a tinha feito pensar que a via daquele modo e ela nunca o tinha considerado como um possível pretendente. – É muito amável da tua parte, mas…

– Não me amas, eu sei. Tenho idade suficiente para ser teu pai.

– Não é isso, é que…

– O nosso casamento não seria permanente, Neve. Sim, sei que parece estranho, mas confia em mim. Não digas nada, deixa-me explicar-te – James deixara escapar um suspiro. – Sabes, a questão é que… voltou.

Neve soubera imediatamente que se referia à doença contra a qual lutava há anos.

– E, desta vez, o diagnóstico não é bom. Tenho dois meses de vida no máximo… Não chores, Neve. Tive tempo para me habituar à ideia e, se queres que te diga a verdade, estou muito cansado. A minha única pena é deixar Hannah. A minha filha ficará sozinha e é tão jovem que poderia tornar-se alvo de gente interessada só no seu dinheiro. Quando eu morrer, Hannah herdará tudo, mas, se nos casarmos, tu tornar-te-ás a sua tutora legal. Sei que posso confiar em ti e sei que tu a protegerás.

Os olhos de Neve encheram-se de lágrimas.

– E olha como estou a protegê-la! – murmurou, batendo na neve com o punho. – Vá, não sejas patética. Levanta-te de uma vez por todas.

Teve de apertar os dentes para lutar contra a vontade de fechar os olhos e ficar ali. Deitou-se de costas, mas o esforço deixou-a exausta e, quando estava a tentar ganhar forças, pareceu-lhe ouvir um grito… Sim, era um grito, não era o vento. Alguém estava a gritar.

– Aqui! – conseguiu responder, quase sem voz. – Estou aqui!

Quando conseguiu sentar-se na neve, viu uma sombra a alguns metros dela.

– Hannah?

Mas não, não era uma rapariga, senão um homem muito alto… de esquis. Um homem que, pela velocidade a que vinha, sabia o que estava a fazer.

Não era Hannah, mas alguém que podia ajudá-la a encontrá-la.

O homem estava prestes a passar ao seu lado sem a ver e, com o coração apertado, Neve começou a gritar e a mexer os braços para chamar a atenção dele, até que, finalmente, o homem pareceu reparar nela.

Quase a chorar de alívio, abriu a boca para lhe avisar que havia uma inclinação, mas o homem estava a tirar os esquis para fazer os últimos metros a pé. Ao contrário dela, não escorregava e tropeçava, mas andava com a graciosidade de uma pantera.

– Não imagina como me alegra vê-lo.

Ele também poderia estar alegre ou aliviado, mas Neve não tinha maneira de saber, porque o seu rosto estava escondido por um passa-montanhas preto. A única coisa que conseguia ver eram os seus olhos escuros.

Sem dizer uma palavra, o estranho estendeu uma mão enluvada e Neve agarrou-se a ela como a um salva-vidas.

– Muitíssimo obrigada – tinha de inclinar a cabeça para trás para lhe olhar para a cara. E muito, porque o homem era muito alto. – Viu alguém por aqui, uma rapariga de catorze anos? Tem o cabelo escuro e usa um blusão vermelho.

– Não.

– Mas temos de a encontrar.

– De encontrar quem?

– Quem? – repetiu Neve, surpreendida. – Hannah. Tem catorze anos e…

– Também é ruiva? – interrompeu-a ele, tirando o blusão para lho pôr sobre os ombros.

– Não, é morena e usa um blusão vermelho. Mas não é muito grosso e… Não é preciso que me dê o seu. Agradeço-lhe, mas não posso deixar…

– Não lhe pedi permissão.

– Mas você terá frio.

Quando começou a tirá-lo, Severo agarrou-a pelos ombros. Não era altura para tacto ou diplomacia. A mulher que lhe roubara o carro recusava-se a aceitar um simples blusão?

O que precisava, na sua opinião, era de ir a um psiquiatra. E ele também, por estar ali.

– Eu adoraria ficar a conversar consigo, mas não temos tempo. E, para sua informação, não estou a ser cavalheiresco, mas prático. Eu tenho uma camisola grossa e você não.

Embora o frio lhe chegasse aos ossos.

E o frio aumentava ao pensar no que poderia ter acontecido se não a tivesse encontrado. Quanto tempo teria aguentado com aquele frio… Uma hora, menos?

– Está vestida para dar um passeio pela cidade, não para estar em plena montanha. As pessoas como você, sem respeito pela natureza, esperam sempre que os outros arrisquem as suas vidas para as salvarem.

– Do que está a falar? – perguntou Neve.

– Esqueça, estamos a perder tempo.

– Tem razão. Pensei que tinha chegado a uma zona alta de onde conseguiria ver a estrada…

– Temos de procurar um abrigo, não uma zona alta.

– Não, temos de procurar…

– Procurar o quê? – interrompeu-a Severo.

– Hannah – disse ela.

– Quem é Hannah?

– Não a viu? Se veio da estrada, deve tê-la visto.

– Não vi ninguém – Severo fez um esforço para controlar a sua impaciência. – E não estamos equipados para organizar uma expedição de resgate.

Era um pouco tarde para se dar conta disso. Além disso, a tal Hannah poderia ser uma invenção da ruiva. E, se não fosse, esperava que tivesse encontrado abrigo em algum sítio. Se continuassem ali durante muito mais tempo, acabariam na lista de mortos pela tempestade.

– Essa mulher, se existir, terá de cuidar de si mesma.

– Não é uma mulher, é uma menina! Temos de…

– Temos?

Neve fez uma careta ao dar-se conta de que o homem não ia ajudá-la.

– Muito bem, não se preocupe, fá-lo-ei sozinha. Por favor, diga às autoridades que se perdeu uma menina de catorze anos… Se não for muito incómodo.

– Pode contar-lhes você mesma quando voltarmos para a cabana.

– Não entende? Não posso voltar, não posso deixar Hannah sozinha… Tenho de a encontrar.

– O que temos de fazer é encontrar um abrigo o quanto antes.

Embora não fosse tão fácil como tinha pensado, porque a tempestade tinha mais força do que antes. Mais meia hora e seria de noite, de modo que o melhor seria voltarem para carro abandonado, assim, pelo menos, estariam a salvo do tempo.

Mas nem sequer voltar para trás seria fácil porque a neve tinha apagado os seus rastos. Ele tinha bom sentido de orientação, mas, naquelas condições, seria muito fácil desorientar-se.

– Não, não – disse ela, afastando-se quando voltou a agarrá-la pelo braço. – Não entende, eu…

– Talvez queira morrer de frio, mas eu não.

– Muito bem, vá-se embora. Eu não vou sair daqui.

Severo olhou para ela e, naquele momento, quando todos os seus sentidos deveriam estar concentrados em sobreviver, não pôde deixar de pensar que era bonita.

Mas tinham de procurar um abrigo rapidamente, não havia tempo para tolices.

– O que está…? – Neve lançou um grito quando o estranho a pôs ao ombro. – Largue-me imediatamente!

Ele lançou um gemido quando lhe deu um pontapé, mas não disse nada. Continuou a andar, com a cabeça agachada para evitar o vento.

Capítulo 3

 

 

 

 

 

Severo depositou a sua carga no chão.

– Está bem?

Parecia mais irritado do que preocupado e Neve deu-lhe uma estalada quando tentou segurá-la. Se estava bem? Fora azar que precisamente ele a tivesse salvado… Ou tê-la-ia raptado?

Era um homem de poucas palavras e todas elas estúpidas.

– Não, não estou bem!

Tinha-a carregado ao ombro como uma saca de batatas contra a sua vontade. Estava dorida, gelada e, sobretudo, morta de medo pelo que pudesse ter acontecido a Hannah.

Mas, respirando fundo, disse a si mesma que não era covarde. Podia ter tendências covardes, mas não era covarde.

Severo rodou os ombros doridos, apercebendo-se do esforço que aquela mulher fazia para não se ir abaixo. A ruiva podia ser tola, mas era valente.

– Está viva, portanto, pare de se queixar.

– Não sei quem pensa que é… – Neve não acabou a frase ao dar-se conta de que não sabia quem era ou o que era, salvo que era grosseiro, insensível e egoísta. E muito forte. Depois de quinze minutos a carregá-la ao ombro sobre a neve deveria estar exausto, mas não parecia. Nem sequer respirava com dificuldade.

– Quem é você?

– O homem que lhe salvou a vida. Pode agradecer-me mais tarde, quando lhe contar a história da minha vida.

– Um nome seria o suficiente e eu não lhe pedi que me salvasse – replicou Neve. – Não precisava que me salvasse.

Ele sorriu, irónico, enquanto tirava o telemóvel do bolso.

– Pois, dei-me conta de que tinha a situação totalmente controlada.

– Há rede?

– Não.

Suspirando, Neve olhou à sua volta. Não era altura para se deprimir. A alguns metros deles via-se luzes e, se havia luzes, haveria pessoas.

– O que é aquele sítio?

Precisava de pedir ajuda urgente. Claro que a equipa de busca e salvamento já teria entrado em acção se tivesse parado para pensar, em vez de ter entrado naquele carro, e Hannah estaria a salvo… Neve abanou a cabeça, angustiada.

Encontraria Hannah.

– Não sei, parece uma casa. De qualquer forma, é um abrigo.

Severo perguntava-se se aquela mulher saberia o perigo que tinha corrido. Pela sua atitude, não parecia ter ideia.

Felizmente para ela, ele parecia ter desenvolvido um fascínio repentino pelo cabelo vermelho e pelos olhos azuis.

– Com um pouco de sorte, as pessoas da casa não serão daquelas que só querem salvar a sua pele. Ao contrário de outras…

– Importa-se de deixar de me insultar até que estejamos a salvo? Os covardes não conversam no meio de uma tempestade. E não tente correr, porque irei atrás de si.

– Está a ameaçar-me? – perguntou Neve. Tremiam-lhe os dentes de frio, mas não ia deixar que aquele grosseiro a tratasse daquela forma.

– Encare-o como quiser.

Alguns minutos depois, chegavam à casa. Conseguiam ver luz atrás do vidro chumbado da porta e Severo bateu várias vezes com o punho. Quando não recebeu resposta, continuou a bater e a tocar à campainha. Fez ruído suficiente para acordar os mortos, mas ninguém veio abrir. Ou eram surdos ou não tinham intenção de abrir a porta a um estranho.

Era indiferente. Se estivesse a assustar alguém, desculpar-se-ia mais tarde. Não precisava de um termómetro para saber que a temperatura tinha descido e a sua prioridade era entrar na casa antes que a situação piorasse.

Claro que não sabia como poderia piorar a situação, se estava no meio de uma tempestade de neve com uma louca que roubava carros e que depois se perdia no meio do campo.

O blusão chegava-lhe pelos joelhos e tinha um aspecto frágil, vulnerável. Era o tipo de mulher que despertava o instinto protector nos homens… ou, pelo menos, nos que não tinham sofrido os seus pontapés.

Ele não era um desses homens. Magoara-o. Ainda bem que não usava botas, mas uns sapatos totalmente inadequados para andar pela montanha.

– Fique aí! – gritou-lhe, antes de contornar a casa. Esteve prestes a não ver uma porta lateral, quase totalmente tapada pela neve, mas uma olhadela rápida disse-lhe que não era tão grossa como a porta principal. «Estou com sorte e já estava na hora», pensou, enquanto começava a afastar a neve.

– Não lhe disse que não saísse dali?

Era incrível! O tipo nem sequer se virara. «Parece ter olhos na nuca», pensou Neve.

– Sim, disse-me – respondeu, disfarçando um calafrio quando enfiou as mãos na neve.

– Pode saber-se o que está a fazer?

– Ajudá-lo.

«Pelo menos, não fugiu em direcção contrária», pensou ele, contendo um suspiro de irritação. Quando ia afastar-lhe as mãos, viu que tinha os pulsos muito magros e os dedos roxos.

Irritado com ela e consigo mesmo, tapou-lhe as mãos com a mangas do blusão, antes de retomar a tarefa de afastar a neve.

– Não se mexa. E não tire as mãos das mangas.

– Sou perfeitamente capaz de…

– Sei do que é capaz.

– Só tento ajudá-lo.

Qualquer outra pessoa se sentiria agradecida, mas aquele homem era um monstro.

– Não me ajudará se lhe congelarem as mãos.

«Tem razão», pensou Neve, que já não sentia os dedos. Teria Hannah as luvas calçadas? Imaginou a sua enteada perdida na neve, à mercê da intempérie, e o medo apoderou-se dela.

– O que posso fazer, então? Tenho de fazer alguma coisa, não posso ficar a olhar.

– Pois, penso que seja o mais seguro.

Felizmente, demorou apenas dois minutos a afastar a neve que tapava a porta e, depois, olhou à sua volta, procurando um objecto contundente. Ao contrário do vidro da porta principal, o daquela não parecia muito grosso.

Severo encontrou uma pedra.

– Vire-se e tape a cara.

– Vai partir o vidro?

– Ah, estou a ver que vai contra as suas convicções! Um pouco hipócrita, não lhe parece?

O comentário deixou Neve boquiaberta. «Deve estar louco», pensou.

– Não pode bater novamente à porta? Se calhar, agora ouvem-nos.

– Ou podemos voltar amanhã – disse ele, sarcástico. Mas, quando pôs a mão na maçaneta, a porta abriu-se. – Bom, parece que, afinal, não temos de partir nada.

cara

Nenhum homem cordato, mas Severo começava a duvidar da sua prudência.

A questão não era que lhe parecesse bonita, mas porque raios estava ali. Ele apreciava a sensatez e orgulhava-se do seu bom senso, mas só um louco arriscaria a vida no meio de uma tempestade de neve.